Rosa Minine
No Tabuleiro do Brasil do 'matuto' Geraldo do Norte tem muita música popular cultural brasileira. Esse operário/artista que partiu do Rio Grande do Norte para o Rio de Janeiro em busca de melhores condições de vida, não esquece suas raízes nordestinas, mas também não deixa de apreciar e divulgar a de todo o país, de norte a sul, encontrando no regionalismo os segredos de um povo.
— Eu tinha um projeto de nome Brasil caboclo que pretendia apresentar em uma rádio comunitária ou mais adiante quando me aposentasse e conseguisse alugar um horário em uma rádio. Até que o presidente da Casa Lima Barreto, que também gosta de música boa, levou o projeto para a diretoria da Rádio Nacional, por ocasião de sua reforma, que me chamou — explica Geraldo, que há anos trabalha em obras, com carteira assinada, para garantir o sustento dos filhos.
Geraldo gosta de usar o termo matuto por se considerar um e principalmente, para resgatar a figura do verdadeiro matuto, que diz ter sido deturpada na cidade grande.
— Meu avô foi tropeiro, considerado matuto, e nos dava muitos ensinamentos de homem da roça. Mas o nome 'matuto' passou a ser destinado à pessoa que carregava droga, 'oh! O matuto veio e foi preso', e eu disse 'que negócio é esse? Matuto são os tropeiros, são os poetas, são os repentistas'. Com esse pensamento gravei meu primeiro CD. Empolguei, porque o povo merece, e fiz o segundo, com muita poesia matuta, e a partir daí começou a aparecer cantador matuto, e está muito bom — conta Geraldo, acrescentando que declama muitas de suas poesias e de outros grandes poetas.
O programa é transmitido de domingo a domingo, das 3 às 6 da manhã, ao vivo.
— A maioria dos nossos ouvintes são pessoas que estão levantando e saindo para trabalhar. É o caminhoneiro que repousou no posto de gasolina, o pescador que está saindo com sua rede, é o agricultor, o bóia-fria, o trabalhador em geral. E cobrimos todo o país por causa do horário, que normalmente proporciona que as ondas alcancem maior distância, tocando de Zé da Onça a Chico Buarque (risos) — expõe.
— A idéia do projeto Brasil Caboclo é tocar a música que a maioria das rádios não toca. Aquela que é consumida na 'sala de reboco' em Recife, na 'Capitania das Artes' em Natal, no 'Dragão do Mar' em Fortaleza, no 'Galpão Crioulo' em Porto Alegre, no 'Espaço Mamberte' em São Paulo, o 'Via Roça' em Campinas, o 'Bip-bip' no Rio, e muitos outros pontos de resistência espalhados pelo país — explica.
— É o Brasil de norte a sul, esse regionalismo fantástico: a viola caipira, a música gaúcha, os ritmos nordestinos, enfim, onde tem povo, cultura, manifestação popular, tem algo para tocar no programa. Na primeira hora apresento uma poesia matuta ou caipira, e nesta hora entra muito São Paulo e Minas Gerais. Na segunda tocamos folclore: é a hora de Jararaca e Ratinho, Alvarenga e Ranchinho, Capitão Furtado, Rolando Boldrin e outras personalidades. Na terceira hora tem os repentistas, que são a resistência maior em termos de crítica social — acrescenta.
— Muita gente diz que eles fazem palavreado escancarado de pornografia, mas isso é um equívoco, e aconteceu também com o coco. Na verdade, esses palavreados que incentivam a prostituição não é coco e nem repente, e sim 'punha de feira', só que muita gente confunde, porque parece que é feito para confundir mesmo. São imitadores baratos, e o mesmo acontece em diversos gêneros da música brasileira: tem os que cantam, tocam, compõem, e os que imitam, de forma negativa, e são trabalhados pela mídia — continua.
Música ruim não é música
— Nem tudo que se toca por aí é música. Tião Carreiro falou certa vez: 'música ruim não é música', e é exatamente o que penso. Esses axés, funks e muitos outros, são apenas apêndices. A maioria nem é brasileira, cheia de elementos de fora. E não posso considerar que um país que tem Pixinguinha, Zé Fortuna, Luis Gonzaga, possa aceitar que qualquer 'menino' com um teclado faça um negócio qualquer e fale que é música. A cultura não aceitou colonização e nem dinheiro: não adianta ser rico e dizer que é artista, tem que mostrar a sua arte — declara.
Geraldo diz que, infelizmente, a Feira de São Cristóvão, considerado reduto nordestino no Rio, atualmente tem pouca coisa que se aproveite.
— Culturalmente falando, aquela música que eles consomem lá não tem nada a ver com região nenhuma do Brasil. É um apêndice do forró, que chamamos de 'forró de granja' ou 'miojo', que já vem pronto e faz mal. São produtos culturais de '1,99', que eles passaram a consumir, o que é uma pena. Os tradicionais que estiveram por lá não receberam consideração, como Dominguinhos, que passou pela Feira e não teve o respeito que merece — comenta.
— É muito mal estruturada. Por exemplo, temos bons repentistas por lá, mas para sobreviver com uma barraca tocando rap de um lado e outra uma 'coisa safada' qualquer, muitos desses aderiram a 'punha de feira', o que é lamentável, até porque ali existia um projeto, que eu fui convidado até a participar, em que as atrações seriam selecionadas por horário. O repentista estaria no palco de nove da manhã as duas da tarde. Então as pessoas estariam almoçando e ouvindo aquela coisa bonita. Depois era a vez do forró e de madrugada soltavam a 'lixarada', mas não foi nada disso — acrescenta.
— Vemos os 'repentistas' se esgoelando no meio de um canto e de outro, fazendo com que fiquem horrorizados os que passam perto. Muita pornografia nas letras, ensinando tudo de ruim. O pior é que temos um problema enorme de prostituição infantil no país, com um governo gastando milhões para combater isso e, ao mesmo tempo, não fazendo nada contra uma propaganda aberta igual a essa, que incentiva claramente essas coisas. É uma grande contradição e falta de respeito com o povo. Uma delas, inclusive — continua.
Uma das alegrias de Geraldo do Norte é que no Nordeste essa realidade tem mudado bastante nos últimos anos.
— Hoje o carnaval de Recife, o São João nordestino, e em muitas outras partes estão maravilhosos. As únicas porcarias mesmo aconteceram em Campina Grande e um pouco em Sergipe, mas Recife e Caruaru não aceitaram forró de granja. Está havendo uma reação contra lixos, com oportunidade para a música brasileira — declara.
— Essa filosofia do USA de se comprar uma muda de coqueiro por cinco dólares e gastar quinze para adubar, ou seja, fazer um disco com dez mil reais e gastar cinquenta para divulgar, pagando jabá e algo no gênero, tomou conta do mundo, mas como fala o poeta José Atanásio Borges Pinto 'é preciso não seguir sinuelo e nem ter canja de novo, que na ânsia de copiar modelo, se mata às vezes a raiz de um povo'. E já é hora de se acordar para isso — conclui Geraldo do Norte.
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