Nestes dias até mesmo comecei a escrever um conto de Natal. Mas tão amargo ele vinha, de tamanha dureza era pleno, ou dito de outra maneira, tanta verdade incômoda ele trazia, que julguei tal coisa injusta para com os amigos e raros leitores que arranjamos. Seria como um estraga-festa, como um bêbado desagradável numa noite feliz. Porque estes são os dias em que de sã vontade procuramos não incomodar a quem julgamos digno de qualquer amor.
Por Urariano Mota
Cartas de Natal
Cartas de Natal
Duas semanas antes, um amigo de outra cidade me disse pelo telefone, “Você está perdendo a capacidade de rir, relaxe, homem”, e como a ligação era interurbana nada pude lhe responder, para não aumentar a conta.
Guardado o conto amargo, que até agora não me largou, surgiu uma outra dificuldade. Para escrever um novo texto, que faça referência a mensagens recebidas neste Natal, o título com mais acerto deveria ser Mensagens de Natal. Mas isso iria me lançar no Google ao lado de “A Melhor mensagem de Natal é aquela que sai em silêncio de nossos corações e aquece com ternura os corações daqueles que nos acompanham em nossa caminhada pela vida", por exemplo. Ou esta, exemplar: “Aprendi que a hora mais sombria nunca dura mais que sessenta minutos”. O Google, na sua santa inteligência, tem disso. Se você escrever sobre Memoria de mis putas tristes verá o seu nome inscrito entre os sites de putas de todo o mundo. Por isso julguei que o nome mais próprio, para fugir dessa inteligência que nada seleciona, seria o Correspondências de Natal, que digitado entre aspas no Google me dará apenas 3 leitores, se muito. É o que faço agora. Paciência, acabo de perder um bom número de leitores entre os 5.090.000 buscadores de Mensagens. Menos mal. Se conseguir manter uns três até o fim, acreditaremos todos juntos que entramos no espírito do Natal.
Antes, no entanto, devo pedir perdão aos amigos por utilizar suas mensagens sem autorização prévia. Espero que no escrito a seguir eu não seja comprometedor.
A primeira mensagem que me chegou veio de Otaciel, a quem chamamos de Bocage, mas o Bocage popular, da anedota, que nada tem a ver com o poeta romântico. E aqui ele não veio fazendo graça, veio sério.
“Apesar de todas as decepções e da putaria generalizada da qual participamos na qualidade de observador, conseguimos chegar ao final deste ano. Quando eu tive tuberculose pulmonar, fiquei pensando que dificilmente eu passaria dos 40... Vamos ver se atravessamos o tumultuado e próximo ano”.
Em três frases ele põe três momentos distintos, no calendário e no que somos ao longo do tempo. O diálogo entre amigos comporta sempre esse gênero lacônico, lapidar, porque divide experências, algumas nem sempre de boa lembrança. Como os possíveis três leitores não sabem quais experiências, cabe um breve esclarecimento. A primeira, neste ano, é mais óbvia. É a situação política criada pela reação, pelos partidos corrutos por natureza e gênese, que apontaram o dedo sujo contra a sujeira de alguns militantes do Partido dos Trabalhadores. Isso doeu e nos encheu de raiva. Banqueiro não tem direito a falar em ética. Servidores da ditadura não podem apontar o dedo da tortura para ninguém. No entanto, assim foi. Se pensássemos com um cérebro ausente do coração, menor choque teríamos neste ano. Como pode alguém ser casto nas palavras, nos atos e no pensamento, se vive em meio a ladrões e putas? O que é mesmo governar em um país de secular exclusão? Esperávamos muito, ou o nada absoluto, porque aguardávamos apenas uma revolução. O resultado foi este ano... Conseguimos chegar ao final, e muitos de nós quase não chegávamos.
O segundo momento é mais íntimo, e nos remete ao distante, para nós bem perto, ano de 1970. Ele aqui somente se refere a esse momento para dar uma força, um estímulo a este que agora aos 3 leitores escreve. Naquele ano, para se tratar melhor na casa de uma parenta no Rio de Janeiro, e se tratar melhor, em se tratando de tuberculose, é comer melhor quando se tem fome, naquele ano o nosso amigo não esteve conosco no fim do ano. Mas foi uma ausência bem lembrada. Na mesa do bar enchemos um copo e nele não tocamos. Dizíamos, meio bêbados, bebedores que éramos de primeira viagem: “Este copo é de Bocage. Nele ninguém toca”. Não sabíamos que estávamos repetindo um ritual de jogar uma bebida para o santo, ou para os deuses, uma oferenda, uma invocação pela saúde do nosso amigo. Não sabíamos, ateus que éramos. Não sabíamos de nada, enfim. Mas possuíamos bem sólido o sentimento da amizade, antes de toda a safadeza dos anos que viveríamos. O terceiro momento é uma previsão, é um lema, uma divisa: Vamos atravessar este próximo ano, ainda que sob tormenta. Melhor, como aprendemos nos livros de História, “melhor, combateremos à sombra”. Mas bem que gostaríamos de uma sombra leve, rápida e menos aterradora.
A segunda mensagem vem do jornalista Paulo Carneiro, que todos chamamos de Capitão, um Capitão sem patente, porque o nome veio do super-herói Capitão América. Quando todos os conhecidos e estudantes liam Proust, e nada entendiam, mas falavam sobre isso como autoridades, quando todos se referiam a Joyce, sem nunca o haver lido, o Capitão exibia seus profundos conhecimentos, em lugares públicos e em apartes em conferências, sobre o senhor Capitão América. Os que o ouviam ficavam entre a incredulidade e o riso. Mais tarde, no curso de jornalismo da USP, o Capitão “entrevistou” Fellini, e pôs na boca do cineasta coisas tão verossímeis e espirituosas, que houve quem lhe perguntasse de onde ele havia copiado tão boas declarações. Pois vejam como é grave esta época do ano. O Capitão compareceu esta semana vestido em sua personalidade civil. É dele a mensagem:
“Você certa vez me citou o poema Resíduo. Te re-cito agora este.
PASSAGEM DO ANO
Carlos Drummond de Andrade
O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventres te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura, promoção, glória, doce morte com sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.
O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e o seu contrário,
uma mulher e seu pé,
um corpo e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...
Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo. Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.
O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles... e nenhum resolve.
Surge a manhã de um novo ano.
As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está entupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa, mortal, sub-reptícia.”
Esta seriedade do Capitão, dizendo melhor, esta citação do poema de Drummond feita pelo intelectual Paulo Carneiro, também se faz dentro daquela linguagem cifrada dos amigos. “Recebe com simplicidade este presente do acaso. / Mereceste viver mais um ano” é a senha. Ela vem como uma resposta, muitos anos depois dos versos que em algum momento, com algum fio de esperança eu lhe disse, “De tudo ficou um pouco. / Do meu medo. Do teu asco. / Dos gritos gagos. Da rosa / ficou um pouco. .../ Se de tudo fica um pouco, / por que não ficaria um pouco de mim?”. Uma boa resposta para aqueles que atravessamos os sessenta e poucos, e sobrevivemos. E prometemos mais que sobrevivência, contra todas as previsões e exames. “O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida”, ouviu do pneumologista o jovem Manuel Bandeira, antes de viver fecundos 82 anos.
Do poeta e escritor Nei Duclós, lembro mensagem de Natal, logo depois de sua crítica a meu romance “Os corações futuristas”. Nei enviou um autêntico chamamento à luta, a um não-esmorecer jamais, porque a jornada é boa e justa. É mensagem que revigora e remete ao azul do céu e ao cheiro do mar:
“Ontem, quando recebi tua mensagem, chovia torrencialmente e as rãs invadiram a parte de trás da minha casa. Tive tempo apenas de enviar o seguinte:
’Mais não digo. Chegou a minha vez de chorar. Este é o meu presente de Natal’.... Fico orgulhoso de que meu ensaio sobre teu livro tenha tido tamanha repercussão."
Que dizer, como explicar tais palavras? Aguardem, por favor, um próximo texto.
Preferível encerrar aqui com uma lição de amizade, que por ser de amizade será sempre uma lição de ética. Em 2005, ao se referir a uma angústia vivida por um amigo comum, Jesús Gómez, editor de La Insignia, assim se expressou a tradutora e escritora Carolina Broner:
“En cuanto a lo que los amigos podemos hacer,diria que la respuesta está implícita en la pregunta. Basta con hacerle saber que, como en cierta película adorable, ‘Arsénico por compasión’, de Frank Capra, ni siquiera hace falta que silbe... Cary Grant y Priscila Lane se silbaban de ventana a ventana cuando se necesitaban. Eso quería decir, que lo mejor que podemos hacer los amigos es hacerle sentir que no hace falta que silbe para tenernos al pie del cañón”.
O que em bom português quer dizer: na angústia de um amigo, basta que ele saiba que nem é preciso assobiar para que nos tenha de imediato, no cumprimento do dever, em qualquer circunstância. Simples, não? Reconhecemos, em espanhol é mais bonito. Por eso, Feliz Navidad, amigos.
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