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quinta-feira, 17 de maio de 2012

Série de textos do Professor, Pintor Nelson Macedo

Por Nelson Macedo - Mestre em Ciência das Artes-UFF, Professor de desenho Modelo Vivo UFRJ
SOBRE O TEMA E OBJETOS DE UM QUADRO
“Da observação do movimento me vem o sentimento exagerado                                                    de viver que é a origem da obra de arte” (Kirchner)
    Quando consideramos o tema de um quadro temos que considerar também os objetos que participam desse tema. Uma simples maçã sobre uma mesa constitui um tema que pode ser nomeado: “maçã sobre a mesa”, “natureza morta com maçã”, etc.,ou simplesmente “maçã”. O gênero “natureza morta” poderá ser composto, p. ex.,com objetos retirados ao plano de realidadedo nosso cotidiano imediato, que podem ser frutas, garrafas, jarros, cestas, tecidos, etc.Nesse caso, se o artista pretende realizar uma natureza morta, ele necessariamente terá que eleger os objetos que existem ao seu alcance para compor seu tema.Os objetos podem ser tambémretiradosde qualquer plano de realidade pelo qual o artista se sinta motivado, como, p. ex., o das recordações, da imaginação, da literatura ou poesia, etc.
    A motivação éfundamental, deve existir uma relação de intimidade afetiva entre o artista e os elementos com os quais ele trabalha. Daí que a eleição desses objetos deve ser uma consequência das suas inclinações particulares, deve refletir as afinidades de cada um.Essas afinidades devemser respeitadas, pois a primeira qualidade do artista é a autenticidade, o compromisso com seu mundo interno, com sua própria sensibilidade. A motivação individual éum componente essencial à produção e tem que permanecer durante todos os estágios da realização de um quadro. A separação entre o artista e o quadro só acontece ao final do processo, quando a obra está pronta. É como disse certa vez Picasso: “quando o quadro está pronto, o pintor já saiu dele”.Sob este aspecto, é importante ter clareza com relação aos critérios de valor a priori na produção artística que sempre afastam o artista de si mesmo, como p. ex.,a preocupação com a “originalidade”, quenunca fundamentou a produção da arte.Pelo contrário, quando queremos ser originais, fatalmente caímos nas projeções estereotipadas daquilo que se considera como sendo “ser original” e, logicamente, nos tornamos qualquer coisa, menos “originais”. O mesmo se dá com relação a todas as definições que tentam estabelecercritérios de valor para a produção artística, tais como os de “expressão”, “modernidade”, etc. Assim é porque toda definiçãoteórica nesse âmbito é sempre arbitrária, não existindo nenhuma relação entre a interpretação intelectual e o objeto artístico que ela pretende definir e qualificar.
Simultaneamente, temos que considerar que todo tema corresponde a um REAL e que todo real corresponde a um acontecer, existe como acontecimento em nossa consciência, pois o real vivo não é fixo, mas móvel. Daí que pensar em um tema significa pensar em algo como se esse algo fosse umacontecimento, algo que se dá no tempo.Por outro lado, todo acontecimento possui seus objetos, que são os “personagens” desse acontecimento. Em resumo, existe o tema (que, como todo real, é um acontecimento) e  existem os objetos   desse tema  (que são também os “personagens” do acontecimento). Assim, no ex. da natureza morta acima, tanto a maçã como qualquer outro objeto devem ser considerados, para os fins da produção artística, como personagens vivos de um acontecimento-tema. Foi nessa direção que Matisse afirmou: “todo objeto é como um ator: um mesmo objeto pode exercer diferentes papéis em quadros diferentes”.
Todo acontecimento possui ainda uma hierarquia interna que estabelece uma relação entre seu centro e a periferia desse centro.Segundo essa hierarquia, os “objetos-personagens” do acontecimento podem ser definidos segundo funcionem como elementos centrais ou periféricosno seu interior.
Como exemplo, vamos imaginar um lago onde alguém atirou uma pedra em seu centro. O impacto vai criar ondas suaves que se irradiarão até as margens do lago. Ao chegar às margens, as ondas vão produzir fatos diversos de acordo como que as ondulaçõesdas  águas  encontrem como obstáculo na margem: pedras, folhagens, areia, etc., ou seja, acidentes geográficos diferenciados aonde vão dar as ondulações que partem do centro. De acordo com cada um desses acidentes as ondas criarãomomentos específicos e diferenciados, individualizados, que, em seu conjunto e juntamente com o fato central, vão compor o acontecimento total que chamamos “pedra atirada no lago”.Apesar de serem fatos individualizados, esses pequenos eventos ocasionados nas margens existem como uma consequência do fato central que lhes deu origem e são, pois, secundários e periféricos em relação a ele. Logicamente, o fato central é a pedra caindo na águaenquanto os eventos nas margens pertencem à sua periferia. Ainda: se esse fato central é algo unitário ouunificado, a periferia não: ela é múltipla.Os elementos periféricos nãodefinem o núcleo central, mas remetem para ele, existem comoafirmações veladas que fazemalusãoa ele.
    Quando nomeamos esse acontecimento afirmamosque “uma pedra caiu no lago”, ou seja, nomeamos o acontecimento através de seu elemento central, ou melhor, nomeamos apenas esse elemento central sem fazer nenhuma referência à sua periferia, que fica excluída no ato da nomeação. Essa nomeação é um ato do pensamento e é assim que se dá no plano do nosso cotidiano com relação à realidade à nossa volta: o pensamento toma a frente da experiência e nomeia o acontecimento. Com isso ele afirma o fato central e despreza os elementos periféricos. Nesse processo, ficamos com as representações do pensamento e perdemos a experiência viva, a qual tem que se dar sobre o acontecimento inteiro em seu devir. É assim que, diante de uma árvore, nãoficamos com a árvore, não entramos em contato com ela, não a “vivemos”, substituímos a experiência pelas representações mentais que carregamos sobre ela. A ação do pensamento impede, pois, o contato íntimo e afetivocom a árvore, impede aquelas vivências internasque são asnossas respostas naturais a todo estímulo externo.O pensamento “fixa” o real e anula seu movimento no tempo, anula a realidade em seu vir-a-ser. Por outras palavras, a intromissão do pensamento na experiência cotidiana produz duas reduções: por um lado, ele “esquece” os objetos da periferia e, por outro, imobiliza o movimento vital.  O pensamento, sob o ponto de vista da realidade poética, é uma espécie de “túmulo” do real, pois ele impede as vivências íntimas que são as que nos dão, na verdade, o nosso sentido de realidade, a qual não é um fato externo a nós mesmos, mas uma construção interna. Aquilo que chamamos de “real” repousa justamente sobre essas vivências e, logicamente, quanto mais intensas e ricas, maior o nosso sentimento de realidade, maior o sentimento de “estar vivo”. A realidadevivanão é, pois,uma idéia, não é um conceito: as representações mentais estão mortas.
    No plano da arte poética ocorre o oposto e a relação se inverte: o que surge exaltado à nossa apreensão são justamente aqueles elementos periféricos do real-acontecimento que são desconsiderados pela mente racional devido à  nossa visão “interesseira” da realidade na nossa vida prática.A produção artísticacorresponde à realização de um real e portanto não é um subproduto das cogitações e projeções do pensamento. Pelo contrário, ela é uma ultrapassagem, uma superação dessa condição presente na experiência comum em que a atividade do pensamento predomina. Nesse caso é o pensamento que se retrai e imobiliza.  O que é vitaltem que ser vividono plano interno da imaginação e da afetividade.Daí que é na provocação de um movimento interno imaginário no leitor/observador que pode existir uma realidade artístico-poética. Esse movimento íntimo existe como resposta íntima aos estímulos externos e, por isso mesmo, inclui nossa naturezaafetiva que, em nossa vida prática, fica em segundo plano.Podemos, pois, definir de modo simplificado o acontecimento artístico-poético como uma sucessão ou conjunto de vivências que o poema ouquadroevoca  naquele que lê um poema ou  observa um  quadro. A forma artística é uma provocação: se na experiência comum aquele movimento íntimofica inibido, diante de uma obra de arte ele é exigido, é parte integrante e constitutiva do processo.
Assim, a arte poética recupera o devir no tempo e induzuma experiência intensa de realidade viva.Antes de tudo, o poder sugestivo da forma deve ser buscado e resguardado. Ao contrário do pensamento, a poesia não nomeia, não “fixa” o real. Ela faz apenas “alusões”, tal como escreveu Mallarmé: “Penso em ser preciso...que haja somente alusão...Nomear um objeto é suprimir três quartos do prazer do poema...”, ou seja, deve-sesugerir e não apresentar diretamente; e Oscar Wilde: “o escritor que dá a uma enxada o nome de enxada deveria ser obrigado a usá-la”, ou seja, deveria deixar de usar a pena; e Juan Gris: “eaquele que, ao pintar uma garrafa, pensa em expressar a matéria de que está constituída, deveria ser vidreiro melhor que pintor”. E podemos lembrar aindao compositor paulista, Adoniran Barbosa que, na sua música “Iracema”, escreveu: “de lembrança, guardo somente suas meias e seu sapato/ Iracema, eu perdi o seu retrato”. Ora, o que é mais central como objeto de lembrança com relação a uma pessoa? Obviamente, é o seu retrato, que é uma representação visual da pessoa. As meias e o sapatopertencem à sua periferia e apenas fazem alusão a ela mas não a representam. O fato principal é que a imagem viva da mulher é evocada através dos elementos periféricos que faziam parte de sua vida e que provocam não apenas uma lembrança, mas evocamsua presença como um conjunto de vivências relacionadas a ela, em lugar de a apresentaratravés do “elemento central” que seria o da visão de seu rosto representado em uma fotografia.Esta última a representamas não a evoca comouma sugestão de vivências,  o retrato a  recorda mas não provoca a imaginação. Como representação que é,o retrato pode ser nomeado, e diante dele podemos dizer: Iracema! A lembrança aqui, no entanto, é apenasum fato da memória, enquanto a poesia, o real poético e da vida, existe noreviver aquilo que foi vivido anteriormente o qual não corresponde à sua simples recordação. Memória todos temos de muitas coisas, mas nem por isso essas coisas surgem vivas em nossa consciência.
Daí a importância do periférico, do “ermo”, do vago,do solitário, do fragmento, dos objetos de devaneio e de sonho, daqueles objetos que existem afastados ou como resíduos de algo que já se foi (cujo exemplo mais emblemático são as ruínas), pois eles são matéria prima para a imaginação, elesnão definem – e, consequentemente, não representam - o acontecimento ao qual eventualmente possam ser associados masaludema ele por participarem da sua constituição.



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