Embora tenha sido um homem de posições políticas bem definidas, Graciliano Ramos em nenhum momento da sua vida literária transformou as obras de ficção por ele escritas em manifestos panfletários.
Por Clóvis Campêlo
Graciliano Ramos, por Cândido Portinari
Tal atitude, no entanto, não impede aos leitores de visualizar, por trás desse aparente despojamento, o contexto social e político não explicitado onde as histórias se dão.
Se, no aspecto conteudístico, os romances do escritor alagoano aproximam-se das características regionalistas que alimentaram uma boa parte dos autores da sua geração, no aspecto estrutural, ao se submeterem a certos procedimentos técnicos, aproximam-se também da corrente subjetivista que marcou a nossa ficção a partir do Modernismo.
Nesse sentido, Angústia é, em suas obras, a que melhor reflete essa feliz síntese entre as duas tendências que caracterizaram a nossa moderna ficção, o que faz do texto de Graciliano algo ao mesmo tempo local e cosmopolita.
Partamos, porém, para o texto em busca dos elementos que justifiquem estas afirmações iniciais e que sirvam para pautar a nossa análise.
Narrador protagonista, é através de Luís da Silva que o universo do romance para nós se desvenda. Do mesmo modo, todos os outros personagens nos são mostrados sob a ótica parcial e distorcida do narrador, o que levou o crítico Álvaro Lins a afirmar que Marina e Julião Tavares existem apenas para que o protagonista se atormente e cometa o seu crime.
Homem solitário, Luís da Silva tem na infância as raízes da sua solidão. Descendente de uma família aristocrática rural em decadência, cujos dias de glória não alcançou, sofre na pele as consequências dessa derrocada. Perdida a fazenda, após a morte do avô, parte com o pai para a vila onde este se estabelece como comerciante. Após a morte do pai, ainda adolescente, vê os credores se apossarem do pequeno patrimônio de que a família ainda era possuidora.
A essa altura do relato já algumas particularidades nos chamam a atenção: a ausência total de referências à figura materna do protagonista e a visão crítica do protagonista em relação às figuras do avô e do pai. Ora, sabemos, de acordo com os pressupostos freudianos, onde bebeu a corrente subjetivista e introspectiva da nossa ficção moderna, que na construção do arcabouço psicológico do indivíduo, a infância, notadamente a primeira infância, constitui-se em período de grande importância, onde as figuras dos pais compõem os primeiros referenciais. Por outro lado, esse é um mundo em suposto equilíbrio e segurança. Não é isso, no entanto, o que se passa com Luís da Silva e que irá marcá-lo de maneira definitiva.
A busca da cidade grande é a solução encontrada pelo protagonista para empreender a luta pela sobrevivência. Sociologicamente, tal movimento – da zona rural para o perímetro urbano de um grande centro, da aristocracia agrária decadente para a classe média metropolitana – mostra um deslocamento do centro do poder econômico de uma classe para outra, de um espaço social para outro e reflete o momento de transformação por que passava o nosso país no primeiro quarto do século 20. A derrocada da aristocracia rural açucareira corresponde à ascensão da burguesia urbana mercantil da qual Julião Tavares é o lídimo representante. Podemos considerar que aí se encontra um dos aspectos da aversão sentida pelo protagonista em relação a este último, muito embora esse processo de transferência se dê de maneira inconsciente.
Se, do ponto de vista sociológico, Julião Tavares representa a burguesia dominante e bem sucedida, existe um outro personagem, “seu” Ivo, que representa o lumpem-proletariado, a escória humana produzida por uma sociedade dividida em classes. Situando-se em um pólo oposto ao de Julião Tavares, “seu” Ivo também difere de Luís da Silva por não pertencer ao mesmo segmento social - a classe média. Daí não causar nenhum estorvo ao protagonista que sabe ter sobre ele uma certa ascendência (“Um sujeito inútil, sujo, descontente, remendado, faminto”). Apático, vivendo de favores e de pequenos furtos, é através dele que o instrumento do crime – um pedaço de corda – chega às mãos do narrador. Fica latente, desse modo, no assassinato de Julião Tavares, a existência de todo um simbolismo de justiça social que transcende a visão esquizofrênica e restritiva do narrador para mostra-se ao leitor mais atento.
Por outro lado, nas lembranças de Luís da Silva estão “seu” Evaristo e Cirilo de Engrácia, personagens da sua infância, ambos enforcados e vítimas de uma estrutura social implacável. Do mesmo modo, os homens que o menino Luís via indo para a prisão também estavam amarrados com cordas. Assim, tanto no passado quanto no presente, a justiça se faz com cordas. A ideia de estrangular Julião Tavares passa-lhe pela cabeça ao perceber o seu envolvimento com Marina (“Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um desejo enorme de apertar-lhe as goelas”). Consideremos também que o narrador, no estado esquizoide em que vive, apresenta impulsos compulsivos (“Lavo as mãos uma infinidade de vezes por dia, lavo as canetas antes de escrever, tenho horror às apresentações, aos cumprimentos, em que é necessário apertar a mão que não sei onde andou, a mão que meteu os dedos no nariz ou mexeu nas coxas de qualquer Marina. Preciso de muita água e sabão”).
Ora, o presente de “seu” Ivo, que o narrador passa a levar consigo no bolso das calças, somado à revolta crescente contra Julião Tavares, principalmente após a descoberta da gravidez de Marina, vão fazendo com que a ideia do assassinato se consolide em seu pensamento. A morte de Julião Tavares, no entanto, não será apenas um ato impensado. Será também, como vimos anteriormente, uma atitude de justiça social na concepção equivocada do narrador. A ausência de sentimentos de culpa, após a realização do crime, dá-nos essa confirmação.
Voltemos, porém, para Julião Tavares. É interessante observarmos pela descrição que dele faz Luís da Silva (“Era um sujeito gordo, vermelho, risonho, patriota, falador e escrevedor”) que Julião Tavares lhe é justamente o oposto, tanto do ponto de vista físico quanto psicológico. Em relação aos personagens, aliás, cabe observamos que, sob a ótica de Luís da Silva, demonstram sempre aspectos negativos. Emocionalmente são todos desajustados, vivendo uma vida que não é celebrada. Embora Julião Tavares fisicamente não fuja a essa caracterização, psicologicamente diverge dos demais. É o único que se lança à vida com a disposição de vivê-la e de a usufruir, talvez respaldado pela sua condição de burguês bem sucedido. Filho de família rica, reacionário e católico, Julião de imediato ganha a antipatia do protagonista que, admirador de ideias revolucionárias, autodefine-se como “um molambo que a cidade puiu demais e sujou”. Nessa tensão entre o real e o imaginário, alimenta-se o processo neurótico do narrador e seria absolutamente simplório atribuirmos aos ciúmes de Luís da Silva o assassinato de Julião Tavares. Nesse ato compulsivo (Lembremo-nos que no capítulo inicial o protagonista diz que dinheiro e propriedade são coisas que lhe despertam sentimentos de mortandade e destruição), ao matar Julião Tavares estrangulado o narrador simbolicamente tenta destruir um mundo que lhe é hostil e insatisfatório, responsável pelo seu sofrimento e pelo sofrimento de diversas outras pessoas (Marina, dona Adélia, “seu” Ivo, as prostitutas da Rua da Lama, etc.) e que é representado por Julião Tavares. Procura um equilíbrio que supõe haver existido anteriormente, embora não possamos localizá-lo em suas recordações. O que o leva ao desespero, entretanto, é perceber que após o ato criminoso o mundo continua o mesmo, havendo sido inútil o seu gesto. Restar-lhe-ia, então, o suicídio como última forma de contestação, o que não ocorre, ao menos no tempo da narrativa, embora chegue a ser considerado pelo personagem (“Uma viagem, embriaguez, suicídio...”). Nesse complexo jogo de forças, portanto, a sedução de Marina por Julião Tavares teria sido apenas o último ingrediente a catalisar o desfecho fatal.
Voltado para dentro de si mesmo, recriando o mundo externo a partir das suas sensações, Luís da Silva faz da sua narrativa um texto introspectivo. Não é o mundo visto o que o leva a ter tal concepção cósmica, mas sim o que imagina ter visto. São sentimentos complexos e fora do comum que o levam a afastar-se da realidade até desaguar no mais completo delírio. Como bem observou o crítico Álvaro Lins, Luís da Silva vive da sua memória e da sua imaginação. A memória, aliás, chega a ser retocada pela imaginação como o próprio personagem admite (“Saíram do entorpecimento recordações que a imaginação completou”). A necessidade de reorganizar esse mundo interior, da qual o narrador em vários momentos tem consciência, leva-o a se distanciar cada vez mais da realidade que, contraditoriamente, deveria ser tomada como referência. Mas como aceitá-la se a ela o narrador atribui os seus sofrimentos? É desse emaranhado de sentimentos introspectivos (negação do presente, retorno ao passado, uso da imaginação) que nasce a força da narrativa.
No que se refere aos aspectos formais, ao utilizar-se da narração na primeira pessoa, com um narrador protagonista (autodiegético), o autor repete um artifício já utilizado em Caetés e São Bernardo, os dois romances que antecedem Angústia. Difere este do primeiro, no entanto, pela abstração temporal e pela utilização constante do espaço não-dimensional, onde se dão as recordações e os delírios de Luís da Silva. Se em Caetés temos uma utilização mais convencional dos elementos tempo e espaço, o que o leva a ser considerado por vários críticos como um romance fraco e sem grandes pretensões, em Angústia tais elementos são diluídos levando o leitor a se perder, em vários momentos, entregue aos pensamentos desconexos do protagonista. Consequentemente, diferindo da maioria dos autores da Geração de 30 que buscaram nos elementos externos aos personagens os fatores antagônicos fortalecedores da narrativa, Graciliano Ramos, tanto em São Bernardo quanto em Angústia, situa a tensão do texto no conflito interior vivido pelo narrador. Nesse sentido, Luís da Silva é um personagem dinâmico que evolui vertiginosamente em direção ao seu destino, forçando o autor a ter um tratamento mais estático em relação aos demais personagens.
No que tange ao foco narrativo (a posição tomada pelo narrador para contar a história), se na tríade inicial –Caetés, São Bernardo e Angústia – temos narradores protagonistas, mas de focalização externa (em relação aos demais personagens, já que a narração é na primeira pessoa), restritiva e fixa, em Vidas Secas temos um narrador que não participa como agente da história narrada, mas que apresenta uma focalização interna, onisciente e variável, o que nos leva a supor que, esgotados nos primeiros romances os processos de narração autodiegética, voltava-se o escritor para a narrativa ficcional na terceira pessoa e para as obras memorialistas em busca de novas formas de expressão.
Nesse sentido, se Angústia, conforme o parecer de Alfredo Bosi, “foi a experiência mais moderna, e até certo ponto marginal, de Graciliano”, não é de se estranhar que, após atingir tal limiar, estabelecesse o autor a necessidade de explorar novas estruturas.
Recife, 1993
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