No plano geopolítico, todos os progressistas – da América do
norte e do sul, ao mundo árabe – bem fariam se começassem a pensar sobre como aconteceu que, a partir de junho de 2009, quando do golpe contra Manuel Zelaya em Honduras, a América Latina foi transformada em uma espécie de laboratório gigante, no qual se testam todos os tipos de mutações e variantes de golpes “democráticos” de Estado.
Por Pepe Escobar, no Asia Times Online
Comecemos com uma bomba. Há dez dias, aconteceu no Paraguai um golpe de estado novinho em folha, contra o presidente eleito Fernando Lugo. Passou praticamente sem registro na mídia-empresa global. Surpresa? Não. Telegrama da embaixada dos EUA em Assunção, de março de 2009, revelado por WikiLeaks,[1] já trazia informes detalhados de como oligarcas paraguaios davam tratos à bola para montar um “golpe democrático” no Congresso, para depor Lugo.
Naquele momento, a embaixada dos EUA constatava que as condições políticas não eram ideais para o golpe. Destacado articulador golpista, naquele momento, era o ex-presidente Nicanor Duarte (2003 a 2008), severamente criticado pelos governos progressistas na América do Sul por ter aberto as portas do Paraguai a Forças Especiais dos EUA para que ministrassem “cursos educacionais” em solo paraguaio, além de “operações domésticas de manutenção da paz” e de “treinamento para contraterrorismo”.
Esse movimento das Forças Especiais dos EUA acontecia décadas depois de “um dos nossos [deles] filhos-da-puta”, afamado general-ditador Alfredo Stroessner (que permaneceu no poder de 1954 a 1989) ter permitido a criação de uma pista de pouso gigantesca, semiclandestina, próxima da Tríplice Fronteira Argentina-Brasil-Paraguai – que adiante seria usada na guerra às drogas e, depois, na guerra ao terror.
Assim sendo, ninguém se surpreenderá ao saber que os EUA foram o primeiro governo a reconhecer os golpistas da semana passada como novo governo paraguaio.
Esqueçam a conversa de dividir o bolo
Os egípcios progressistas estão-se dando conta agora de que novas democracias exigem anos, às vezes décadas, de íntima convivência com o pesadelo da ditadura. Aconteceu, por exemplo, no Brasil – hoje universalmente saudado como nova potência global. Durante os anos 1980 e 1990, houve alguma modalidade de redemocratização de algumas instituições. Mas o Brasil, por anos a fio, continuou sem ser melhor democracia do que antes – economicamente, socialmente e culturalmente.
O país teve de esperar longos 17 anos – até o presidente Luiz Inácio Lula da Silva chegar à presidência, pela primeira vez, em 2002 –, quando o Brasil afinal pôde começar a trilhar o caminho que levará o país a ser menos escandalosamente desigual do que nos sonhos das rapaces elites locais.
O mesmo processo histórico opera agora no Egito e no Paraguai. Os dois países enfrentaram décadas de ditadura. Quando uma ditadura entra nos estertores finais, nas vascas da morte, só partidos políticos unidos ao – ou tolerados pelo – antigo regime estão em posição interessante para aproveitarem-se da longa e sempre tortuosa transição até a democracia. Certos países então se convertem no que Emir Sader, cientista político brasileiro, apelidou de “democraturas”[2].
Aplica-se bem ao Partido Liberal no Paraguai e à Fraternidade Muçulmana no Egito. Nas eleições presidenciais no Egito, concorreram um ex-ministro do governo de Hosni Mubarak e um quadro da "Ikhwan" (Fraternidade Muçulmana). Resta saber
(a) se o orwelliano Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito permitirá que essa nova democratura venha algum dia a ser democracia real e
(b) em que medida a "Ikhwan" está realmente comprometida com a ideia de democracia. O Paraguai estava em estágio mais avançado que o Egito. Mesmo depois de quatro anos de uma eleição presidencial democrática, o Congresso continuava dominado por dois partidos amigos-de-ditaduras, o Partido Liberal e o Partido Colorado. A operação foi mamão com açúcar, e essa oligarquia bipartidária conseguiu derrubar o governo de Lugo.
Rápido, por favor, um "impeachment" mal-passado
Lugo foi derrubado por golpe disfarçado em impeachment, processado em apenas 24 horas. Crentes praticantes, em Washington, da mudança de regime, devem ter alcançado o êxtase: ah, se conseguíssemos fazer o mesmo na Síria...
O simulacro de legalidade aconteceu, como seria de esperar, no Parlamento mais corrupto das Américas – o que é ainda dizer pouco. Lugo foi considerado “culpado de incompetência” no trato de uma história imundíssima associada – inevitavelmente – a uma questão absolutamente chave em todo o mundo em desenvolvimento: a reforma agrária.
Dia 15 de junho, um grupo de policiais e "commandos", encarregados de cumprir ordem de desocupação em Curuguaty, a 200 km de distância de Assunção, próximo da fronteira brasileira, foi emboscado por atiradores infiltrados entre os fazendeiros. A ordem de desocupação foi emitida por um juiz, para proteger interesses de um rico latifundiário, Blas Riquelme, não por acaso ex-presidente do Partido Colorado e ex-senador.
Mediante manobras legalistas, Riquelme obteve a posse de 2.000 hectares de terra que pertenciam ao estado paraguaio. Aquela terra estava ocupada por camponeses sem-terra, que, já há algum tempo, pediam que o governo de Lugo emitisse seus documentos de propriedade.
O Observatório da Escola das Américas[3] já documentara que vastas porções do território do Paraguai haviam sido roubados de fazendeiros e “doados” a militares e seus ‘sócios’, da classe dirigente, durante as décadas da ditadura de Stroessner.
O resultado, em Curuguaty foi 17 mortos – seis policiais e 11 fazendeiros – e mais de 50 feridos. Nada, nessa história, faz sentido; os comandantes da força de desocupação, uma unidade linha-duríssima, denominada “Grupo de Operações Especiais”, foram treinados em táticas de contraguerrilha na Colômbia – sob o governo de direita de Uribe –, como parte do Plano Colômbia, concebido pelos EUA.
Quanto ao Plano Paraguai, é simplíssimo: criminalização absoluta de todas as organizações de camponeses, para forçá-los a trocar o interior do país por empregos no agronegócio transnacional.
Tudo isso para dizer que, na essência, foi uma arapuca. Os direitistas paraguaios – unidos como irmãos xifópagos a Washington, operando, dentre outros objetivos, para impedir a qualquer custo que a Venezuela seja admitida ao mercado comum do Mercosul –só esperavam uma oportunidade para derrubar um governo que, até ali, sequer atacara os interesses da direita paraguaia ou de Washington, mas abrira amplos espaços para a organização social e protestos populares.
Lugo, ex-bispo, eleito em 2008 com grande apoio nas áreas rurais, talvez tenha percebido o que viria, mas nada fez para impedir o golpe. Comparado à capacidade para mobilizar gente nas ruas, não tinha apoio parlamentar algum: apenas dois senadores. Mais de 40% da população paraguaia vive na área rural, mas não se pode dizer que estejam mobilizados. E 30% dos paraguaios vivem abaixo da linha da pobreza.
Os “vencedores” no Paraguai teriam de ser os suspeitos de sempre: a oligarquia dos latifundiários – e a campanha orquestrada para demonizar os agricultores sem-terra; o agronegócio multinacional, como a empresa Monsanto e seus interesses; e a mídia associada à Monsanto (como se vê no diário ABC Color que, todos os dias, acusa de “corruptos” todos os ministros que não operem como fantoches da Monsanto).
As empresas gigantes do agronegócio, como Monsanto e Cargill virtualmente não pagam impostos no Paraguai, por ação do Congresso controlado pela direita. O latifúndio tampouco paga impostos. Desnecessário dizer que o Paraguai é dos países mais desiguais do mundo: 85% da terra – cerca de 30 milhões de hectares – é controlada pelos 2%, a aristocracia rural, quase todos envolvidos em negócios de especulação com a terra.
Quer dizer: com mansões estilo Miami Vice, em Punta del Este, no Uruguai ou, e tanto faz, em Miami Beach; e o dinheiro, é claro, bem guardado nas ilhas Cayman, o Paraguai é governado, de facto, por esses 2% em que se misturam o agronegócio e o cassino financeiro.
E, nas palavras de Martin Almada, conhecido ativista paraguaio dos direitos humanos, que recebeu o Prêmio Nobel Alternativo – tudo isso se aplica também a latifundiários brasileiros. O mais rico plantador de soja do Paraguai é o ‘brasiguaio’ [duas nacionalidades] Tranquilo Favero, que enriqueceu durante a ditadura de Stroessner.
Um golpe, por favor, on the rocks
A UNASUR, União das Nações Sul-americanas [ing. Union of South American Nations] tratou os eventos no Paraguai como o que são: golpe. Assim também o Mercosul. O contraste, em relação à posição de Washington não poderia ser mais visível. Frederico Franco, golpista chefe, é frequentador assíduo e queridinho da embaixada dos EUA em Assunção.
Argentina, Uruguai, Venezuela e Equador não reconhecerão o governo dos golpistas. A Venezuela interrompeu as vendas de petróleo ao Paraguai. Dilma Rousseff, presidenta do Brasil, propôs a expulsão do Paraguai das duas organizações, da Unasul e do Mercosul.
O Paraguai já está suspenso. Implica que o golpista Federico Franco foi impedido de participar de uma reunião chave do Mercosul, semana passada, em Mendoza, Argentina, quando o Paraguai receberia a presidência do Mercosul. A oligarquia paraguaia – cumprindo ordens de Washington – sempre bloqueou a admissão da Venezuela como parceira do Mercosul. Isso acabou. No final do mês, a Venezuela torna-se membro pleno do Mercosul.
Mas os governos progressistas da América do Sul que tomem muito cuidado. Se o Paraguai for expulso da Unasul e do Mercosul, inevitavelmente pedirá socorro comercial a militar a Washington. Aí está algo que facilmente pode traduzir-se por “pesadelo”: bases militares dos EUA, no Paraguai.
Os oligarcas paraguaios, a imprensa-empresa por eles comandada e, por último, mas nem por isso menos importante, também a reacionária alta hierarquia da Igreja Católica no país estimam podem ampliar ainda mais seu poder parlamentar, se as eleições acontecerem em abril de 2013.
Lugo, de fato, enfrentava missão de Sísifo: governar democraticamente estado fraco, que praticamente nada arrecada em impostos (menos de 12% do PIB), sob violenta pressão dos poderosos lobbies transnacionais e elites locais comprador. Essa é, afinal a realidade estrutural de grande parte da América Latina – e também, nas linhas gerais, pode-se dizer, do Egito.
No plano geopolítico, todos os progressistas – da América do Norte e do Sul, ao mundo árabe – bem fariam se começassem a pensar como aconteceu que, a partir de junho de 2009, quando do golpe contra Manuel Zelaya em Honduras, a América Latina foi transformada em uma espécie de laboratório gigante, no qual se testam todos os tipos de mutações e variantes de golpes “democráticos” de estado.
O Paraguai é uma dessas mutações. Outra, foi o fracassado golpe contra Rafael Correa do Equador, em setembro de 2010. Todos esses golpes foram tentados contra governos progressistas que favorecem avanços sociais.
Não por acaso, Correa, que por pouco não foi derrubado, disse que, um golpe bem-sucedido no Paraguai “abriria perigoso precedente” para toda a região.
Em termos de justiça poética, nada supera a história do próprio Correa – alvo de tentativa de golpe de estado – e que, hoje, analisa a possibilidade de dar asilo político a Julian Assange... cuja página WikiLeaks revelou, dentre outras revelações, como a elite paraguaia obrava na preparação de golpe para tirar do governo o próprio Correa.
No Egito, aconteceu um golpe militar antes, mesmo, de ter havido eleições e haver presidente eleito. Os egípcios progressistas, que lideraram de fato a Primavera Árabe, que fiquem bem espertos, em alerta máximo: o Paraguai aí está, mostrando ao mundo o quanto a estrada até a democracia pode ser difícil e traiçoeira; e que tudo sempre pode acabar em “democratura”.
[1] 09ASUNCION189, criado: 28/3/2009, 20h24; vazado: 30/8/2010, 1h44 SECRETO; Embaixada de Assunção, Paraguai, em http://wikileaks.org/cable/2009/03/09ASUNCION189.html# (em ing.)
[2] 24/6/2012, Boletim Carta Maior, Blog do Emir, “Democraturas”, em
http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=1019
[3] Orig. School of the Americas Watch. A School of the Americas, a partir de 2001 renomeada como Western Hemisphere Institute for Security Cooperation (WHINSEC) — Instituto do Hemisfério Ocidental para a Cooperação em Segurança, é instituição mantida pelos EUA que ministra cursos sobre assuntos militares a oficiais de outros países. Atualmente situada em Fort Benning, Columbus, Georgia, EUA, a escola esteve, 1946 a 1984 situada no Panamá, onde se graduaram mais de 60.000 militares e policiais de cerca de 23 países de América Latina [NTs, com informações dehttp://pt.wikipedia.org/wiki/Escola_das_Am%C3%A9ricas].
Traduzido pelo coletivo de tradutores do Vila Vudu
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