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terça-feira, 17 de julho de 2012

Textos do Professor Nelson Macedo II - Professor UFRJ - EBA



A TEORIA ARTÍSTICA DA FORMA E O PROCESSO CRIADOR
                           “Em nosso domínio, só conta a experiência vivida, visto que não pode haver definição sem experiência prévia”  Kandinsky

    Existe, da parte daqueles que buscam o estudo da arte do desenho, uma expectativa natural acerca de conhecimentos ou mesmo “segredos” dessa arte que presumidamente lhes dariam o poder de representar qualquer coisa visível ou imaginada. Quase sempre querem saber “como” se representa isto ou aquilo, este ou aquele objeto. Logicamente, a frustração vai sempre acompanhar essa expectativa, pois o conhecimento teórico da arte não é constituído por regras ou normas que, aplicadas, produziriam representações dos objetos do mundo visível. Se assim fosse, existiriam regras para desenhar animais, árvores, crianças, etc., que seriam utilizadas pelos artistas quando desejassem representar tais objetos. É isso o que prometem os livros didáticos de desenho que ostentam em suas capas os títulos: “como desenhar a figura humana”, “como desenhar paisagens”, “como desenhar retratos”, etc. Esses títulos refletem o senso comum, que entende o ato de desenhar como sendo o de desenho “de” alguma coisa e não como algo que é objeto por si mesmo e que tem um fim em si mesmo. Seguindo esse modo de considerar a produção artística, nas escolas de arte usa-se nomear algumas disciplinas de desenho segundo o objeto-modelo da aula. Assim, a aula em que a figura humana é objeto da representação, é chamada de “aula de modelo vivo”, como se o objetivo da aula fosse estudar a própria figura humana e não o entendimento do ato de desenhar com todas as suas implicações. O desenho é entendido como uma consequência do modelo apenas. Daí os estudos de anatomia, proporções, etc., que geralmente acompanham essas aulas. Deveríamos afirmar, entretanto, que essas aulas são “aulas de desenho com modelo vivo” e não “aulas de modelo vivo”, e o mesmo ocorre quando falamos em “aulas de paisagem” ou “aulas de anatomia”. É obvio que um nome tem que ser dado às disciplinas para diferenciá-las umas das outras, mas não se pode confundir o objeto representado com o conteúdo da aula. O modelo é apenas um pretexto, ele não é o compromisso final da aula nem o seu objetivo. Uma aula de desenho deve privilegiar, antes de tudo, a compreensão dos fundamentos do desenho e esses fundamentos ultrapassam o plano de realidade do objeto-modelo utilizado na aula. Por outras palavras, existe um conhecimento específico da disciplina do desenho que não pode ser confundido com o conhecimento acerca da realidade do objeto utilizado como modelo.
    É necessário ter em mente que não se aprende a desenhar “coisas”, mas se aprende o desenho como realidade em si, os conteúdos da aula são os elementos constitutivos da forma visual e suas possibilidades de construção formal. Na verdade, desenha-se o próprio desenho e não os objetos representados: o objeto do desenho é, pois, ele mesmo, o desenho. Do contrário, quando usarmos garrafas como modelo, p. ex., teremos que afirmar que o conteúdo da aula é a própria garrafa, ou seja, ao mudar o objeto estaríamos mudando também os conteúdos programáticos da aula. Segundo essa interpretação do ato de desenhar, se um professor convidar seus alunos para uma aula de desenho no jardim zoológico, ele estará se propondo a dar aulas de “onça”, de “tamanduá”, de “elefante”, etc., e, logicamente, todos teriam que estudar a anatomia desses animais para poder desenhá-los, assim como se estuda a do corpo humano para desenhar a figura humana. Lamentavelmente é essa visão equivocada que predomina no ensino do desenho.
    Qual a origem dessa concepção? Ela está constituída por noções disseminadas na sociedade que têm origem em abordagens e teorias extra-artísticas, ou seja, aquelas teorias não comprometidas com a produção da arte e que são de natureza interpretativa, concepções que falam sobre a arte mas não pensam o objeto artístico segundo aquilo que o define enquanto tal: sua forma.
    Nas suas “Cartas a um Jovem Poeta”, Rilke escreveu este conselho: “leia o menos possível trabalhos de estética e crítica” (1997, p. 31). Uma das razões desta afirmativa reside no fato de que existem dois modos de aproximação teórica à realidade da arte. A natureza dos textos a que Rilke se refere vem motivada e se caracteriza pela intenção de definir o sentido ou mesmo “decifrar” a obra, de encontrar nela “significados” que estariam ocultos ao olhar do leigo. O outro modo de abordagem teórica é aquele que tem como motivação o entendimento dos fundamentos que informam e legitimam a produção da arte. São duas, pois, as teorias: uma de natureza interpretativa e outra dos pressupostos da produção. O problema começa quando a primeira é colocada no lugar da segunda. E é o que normalmente acontece: quando temos acesso a alguma teoria sobre arte é quase sempre com a primeira e quase nunca com a segunda. Praticamente nunca o público em geral e mesmo o que visita exposições tem contato com a teoria da forma artística. Daí que, ironicamente, são justamente as variações sobre aquela primeira concepção que são aceitas como abordagens válidas para a compreensão da arte, as quais, substituindo a experiência do fazer pelas interpretações e análises puramente intelectuais, pretendem até mesmo indicar caminhos para a sua produção. É nesse âmbito que tiveram origem as noções de “belo”, “originalidade”, “expressão”, etc., e a consequência é que, nas opiniões generalizadas no senso comum, predominam essas concepções, como, p. ex., quando alguém, interpretando as intenções do artista, afirma que ele “busca o belo” ou que ele “busca se expressar”: quem assim fala não tem consciência de que está fazendo afirmações que são apenas interpretações equivocadas com relação à natureza do processo criador.
           Tradicionalmente, o ensino do desenho é pensado sobre uma relação que coloca, de um lado, o estudo da estrutura dos corpos no espaço e, do outro, os procedimentos de natureza técnica. Essa abordagem implica em considerar que existe uma forma e existe um sentido como dois fatos separados e, consequentemente, o desenho teria sua razão de ser justamente no fato de veicular significados externos à forma. Mesmo quando se substitui a preocupação com a estrutura dos corpos pelas noções de “expressão”, “mensagem”, etc., o problema continua o mesmo: pois implica em considerar a forma como veículo de um conteúdo independente dela mesma. Esta interpretação parece natural porque estamos habituados com a noção de significação tal como ocorre nas formas da linguagem. Lemos um texto e compreendemos o seu sentido e esse sentido torna-se algo que pode ser comunicado a outra pessoa, e que, além disso, pode também ser traduzido para outras formas de linguagem como, p. ex., a dos surdos-mudos. Isso significa que o sentido apreendido na linguagem existe como um fato separado da forma que o veicula e esta, por sua vez, como mero veículo do sentido. Entretanto, não podemos comunicar a outros o sentido que apreendemos no contato com uma obra de arte: o sentido experimentado não pode ser comunicado, o sentido corresponde à experiência particular de cada um diante da obra e, por mais que se fale da experiência, que se tente comunicá-la, continuará a pertencer ao indivíduo que a experimentou. Assim é porque uma imagem artística não cumpre uma função comunicativa, a arte não é uma forma de linguagem, não é uma forma que existe para comunicar alguma “mensagem”, onde os significados possam ser identificados como algo independente e separados da forma que os apresenta. Na raiz de toda abordagem interpretativa existe esta separação entre sentido e forma.
   Simplificadamente, toda linguagem se define pela presença de um significante e de um significado: a palavra “casa”, p. ex., remete para um objeto genérico que todos conhecemos e que carregamos como referência em nossa mente. É a essa referência mental que a palavra nomeia. A palavra não nomeia o objeto real anterior às representações mentais que temos dele, ou seja, a linguagem sequer remete para o objeto em si. O sentido na linguagem é, pois, não só independente da forma que o veicula como também da referência que ela designa ou descreve.  Como essa independência e separação entre sentido e forma não existe na forma artística, daí advém uma interdição radical à ação do pensamento sobre ela, pois este atua por comparação entre pelo menos dois termos e seu instrumento é justamente a linguagem. Quando essa separação não existe o pensamento fica inoperante. Por esse motivo, ou seja, devido à coincidência entre forma e sentido na arte, a realidade artística é inacessível ao pensamento e, consequentemente, toda tentativa de definição ou nomeação nesse campo corresponderá sempre a um falseamento do fato original. Nesse sentido, não se pode falar das “significações” de uma obra de arte porque ela não “significa” nada, não “diz” nada, mas instaura um campo próprio de sentido ao qual só se tem acesso pela experiência direta com a própria obra. As nomeações do pensamento são um modo de apropriação daquilo que está sendo nomeado. Quando nomeamos, perdemos a coisa nomeada e caímos na “armadilha” do pensamento, “esquecemos” o nomeado e ficamos com o nome, substituímos a experiência real pela palavra e o conceito que ela carrega. É assim que nomes como “Impressionismo”, “Fauvismo”, etc., correspondem apenas a apelidos que oferecem pistas falsas a quem quer compreender algo sobre aquilo que eles nomeiam. Sob este aspecto, o exemplo da música é emblemático: o que “entendemos” quando ouvimos música? Resposta: entendemos a própria música, entendemos um sentido musical. E o mesmo para a poesia e para a pintura: o sentido artístico é a própria experiência pessoal da obra de arte. Nenhuma descrição ou explicação intelectual vai substituir a experiência do contato direto com a forma. Para saber o que é música, poesia e pintura, temos que ouvir a música, ler (ou ouvir) o poema, ver a pintura.  Não há outra opção: ou ficamos com a interpretação ou com a experiência real.
    O sentido artístico não é, pois, algo que possa ser separado da forma em que o apreendemos, como um elemento à parte, pois ele está identificado à forma, é imanente a ela, falar de um é falar do outro. É por essa razão que se diz que o sentido é a forma e a forma é o sentido. Ambos existem simultâneos no ato de observar um quadro, ouvir uma música, ler um poema. O sentido é essa experiência e não uma idéia ou conceito, não é, em absoluto, uma mensagem a ser decifrada. Afirmar que uma obra é “bela” não é um juízo real de valor mas uma declaração de natureza subjetiva, ou seja, quem a formula está falando de si próprio, da sua relação pessoal com a obra, e não da obra em si mesma. Essa opinião diz respeito apenas ao universo pessoal daquele que fala. Reconhecê-la como uma referência objetiva à realidade da obra é reconhecer o autor da afirmação como uma autoridade no assunto.
    Ainda dentro das concepções que habitam a ótica do senso comum e que separam forma e sentido, o processo criador estaria dividido em duas fases: concepção e realização. Segundo essa interpretação, o artista primeiro conceberia a obra e depois a realizaria materialmente por meio de uma técnica específica. Daí a preocupação com o “como?”, o qual abre um problema de natureza puramente técnica. O “como se faz?” pressupõe e existência preconcebida de algo que será realizado num segundo momento. Isso significa que esse “algo” já está dado, não vai acontecer durante o processo, não vai ser criado no decorrer da sua produção. Aquela pergunta, portanto, deve então ser seguida de outra: “como se faz... o quê?”, pois se há algo a ser feito esse algo deve estar definido de antemão. Esse modo de considerar o processo leva em conta apenas o aspecto técnico da produção artística, só consegue ver a técnica, como se tudo na esfera do fazer se reduzisse a problemas técnicos e, nesse sentido, a diferença que existiria entre um artista e outro seria uma diferença de competência técnica. Assim, o leigo verá na Gioconda de Leonardo da Vinci uma obra de arte “respeitável” mas, diante de uma obra de Picasso, p. ex., poderá dizer: “isso eu também faço!”. Mas ninguém pode culpá-lo, pois é só o que ele consegue racionalizar diante do quadro, ele não percebe que está sendo impressionado por outros dados que escapam à sua racionalização. Por outras palavras, é o grau de sofisticação técnica que o impressiona. Ele não considera a obra pelo que ela realmente é, mas pela competência técnica que identifica nela.     
    O ponto de vista da criação, entretanto, tem outro foco: a obra a ser produzida não existe nem mesmo idealmente, ela não habita uma hipotética esfera transcendental de realidade à qual o artista teria eventualmente o acesso e da qual ela seria retirada para o nosso plano atual de realidade. Quando se considera a criação nestes termos, o que encontramos são as projeções e estereótipos do pensamento. Uma mesa comum, puramente utilitária, p. ex., pode ser racionalmente projetada por inteiro, sua forma pode ser antecipada e os passos da sua produção podem ser orientados pelo pensamento, pois ela já existe idealmente antes de ser construída ou até mesmo concebida. Podemos considerar que, se no caso de um objeto dessa natureza a sua produção pode ser racionalmente conduzida, a obra artística, por sua vez, tem outra fonte: na produção da arte o pensamento fica de fora. A obra de arte não é um subproduto da atividade do pensamento e a sua intromissão no processo de criação corresponderá a um impedimento, nunca a uma abertura de possibilidades. Pretender realizar uma obra de arte segundo a lógica e os paradigmas do pensamento é o mesmo que pretender flutuar num lago abraçado a uma pedra. O processo de criação é ação pura, ação em si mesma, sem ser “contaminada” por uma intenção, seja ela de natureza subjetiva ou conceitual. Uma obra de arte está além daquilo que um olhar desinteressado é capaz de abarcar, daí que a natureza do trabalho do artista passará sempre despercebida ao leigo. O “em si” da obra fica oculto à primeira vista e o que particularmente não fica evidente de imediato na observação de uma pintura é justamente aquilo que é o fator determinante da existência da obra e, consequentemente, da natureza da teoria da produção: o processo pelo qual a obra veio à luz.  
    As concepções teóricas sobre a arte que guardam compromissos alheios à produção da própria arte deveriam, por esses motivos e na melhor das hipóteses, ser consideradas com desconfiança por parte daqueles que estão interessados na sua produção. Essas noções, em lugar de instrumentalizar e nortear o artista, são um fator de alienação. Não há relação entre o sentido artístico da forma e aquilo que essas teorias definem como sentido na arte. Conceber a criação como sinônimo de, p. ex., “originalidade” ou “expressão pessoal”, ou seja, assumir essas noções como fundamento da ação criadora, significa assumir compromissos falsos, alheios à natureza da forma, e perder de vista os problemas reais da formação da imagem, significa se atirar no mundo vazio da especulação gratuita e inconsequente sobre, p. ex., o que é ou não é a natureza do “belo”, da “expressão”, do “moderno”, do “contemporâneo”, etc. Daí o obscurantismo das tendências atuais de se voltar as costas a toda a milenar tradição da pintura que nos precedeu através dos tempos, daí também a noção arbitrária e corrente de “ruptura” com o passado, que cinicamente pretende desautorizar todos os milênios de produção artística que nos antecedem e legitimar todas as arbitrariedades dos discursos da crítica através de uma obscura e simplória oposição à arte do passado.
   Em contraposição a essa postura temos as declarações e atitudes dos artistas através dos séculos, as quais se situam em franca oposição às concepções estranhas aos problemas da produção. Desde sempre os artistas tomaram como referência os que os antecederam, e muitos exemplos poderiam ser lembrados, como os de Cézanne, Degas, Picasso, Matisse, etc. Nesse contexto, não podemos esquecer a advertência de Constable, de que “o pintor autodidata é alguém que aprendeu com um professor muito ignorante” e também Goya, nascido no século XVIII, que afirmou só ter tido dois mestres: Rembrandt e Velázquez, ambos do século XVII, pintores com os quais ele nunca teve contato direto, pois faleceram muitas décadas antes dele mesmo ter nascido. Sua relação com eles, seu “aprendizado” com ambos, se deu, portanto, pela observação e estudo das suas obras. E ainda Kandinsky, que explicitamente escreveu: “os ensinamentos ‘mortos’ jazem hoje nas obras vivas tão profundamente que só com grande esforço podem ser trazidas à luz” (1974, p.15). O exemplo de Goya e a afirmação de Kandinsky demonstram que mesmo não tendo acesso a textos teóricos referentes à produção, um artista vai sempre encontrar os fundamentos da sua arte no estudo das obras dos pintores que o antecederam. Outro exemplo é o de Degas, solicitando permissão a Delacroix para fazer uma cópia do seu quadro “A Barca de Dante e Virgílio no Inferno”, o qual foi também copiado por Cézanne. Esses exemplos ilustram a importância do estudo das obras de arte da tradição ou mesmo dos seus contemporâneos (quando eles existem), pois uma teoria da produção vai emergir essencialmente do contato com as obras realizadas, é nelas que vamos encontrar os fundamentos da produção. São esses ensinamentos presentes nas obras, com absoluta independência do século em que elas foram produzidas, que vão fornecer fundamento à produção e a uma teoria artística da forma, pois a arte surge da própria arte e nunca da simples relação com a natureza. Esta última só tem interesse para o artista quando ele sabe o que nela está buscando. Esta afirmação fica mais clara quando consideramos o interesse intrínseco e diversificado das diversas atividades humanas diante da própria natureza: observando uma árvore, p. ex., um botânico buscará nela os elementos de sua disciplina, um industrial aqueles dados necessários à sua indústria e um pintor, por sua vez, buscará a configuração, a dinâmica linear, o claro-escuro, as relações cromáticas, os conjuntos visuais, etc.
   A primeira evidência que emana da observação das obras desde o Paleolítico e através de todos os séculos que nos antecedem, é que uma imitação pura e simples das aparências dos objetos, ou seja, a tão propalada “cópia”, nunca foi objeto nem fundamento da produção artística, mas sim que, pelo contrário, “a arte é, antes de tudo, um conjunto de problemas de forma” (P.Klee, 1978, p.25), e que “são as forças vivas nas formas que materializam o conteúdo da obra artística” (Kandinsky, 1974, p.31). Então, tanto para os fins da produção como para os de uma pedagogia da arte, a teoria artística da forma deverá se ocupar primordialmente da natureza desses “problemas de forma” e dessas “forças vivas”, visando estabelecer os fundamentos da criação através da definição das possibilidades de construção formal:
“O mundo da obra de arte está na feliz utilização das forças obstinadas dos recursos artísticos...não se podem ensinar os ímpetos da inspiração. Porém o que em grande parte pode ser ensinado e dirigido são as possibilidades de elaboração. Temos que saber que, no fundo, são as forças dinâmicas dos recursos que podem dar alma e vida à obra de arte” (Hoelzel, ap.Hess, 1970, p.137).
     A composição da imagem artística corresponde a um conjunto simultâneo de eventos formais e esse fato faz com que o processo da sua produção encerre uma complexidade que não é aparente à primeira vista. É natural, pois, que os fatos da forma passem despercebidos, é natural que o observador só conscientize aquilo que consegue racionalizar e identificar. Assim é porque “ainda que o ato de percepção da pintura seja um ato total, único, mal poderíamos qualificar de igual modo o ato (teríamos que dizer: os atos) de criação” (D’Allones, 1977,p. 93). A sequência dos eventos no tempo, os “atos de criação”, estão presentes em superposição na forma final mas esta é quase sempre mascarada pela visão unitária que se tem do conjunto realizado.
    Devido a essa complexidade formal, torna-se impossível abranger a forma no seu conjunto em um só ato teórico e, consequentemente, a teoria só pode pensar a forma como possibilidade, pode apenas abrir o campo dos possíveis para a produção. A teoria não é constitutiva de nada, não dá “soluções”, nem é uma resposta à pergunta “como se faz...?”, ou seja, a teoria não tem natureza técnica. Todo conhecimento técnico participa da produção, mas não define o processo de criação, não é, por si mesmo, teoria. A teoria existe para dar suporte e fundamento ao processo de produção.  Esta é, em resumo, a função da teoria artística da forma, tal como escreveu Juan Gris, “para fazer pintura é necessário conhecer as possibilidades da pintura” (1957, p.54). Esta é, também, a necessidade primordial, a condição necessária da produção: se não se sabe das possibilidades, como iniciar um movimento? As “intenções”, sejam elas de caráter subjetivo ou as projeções do pensamento, apenas nos dão a ilusão de que algo está sendo criado, de que um caminho está sendo percorrido, quando, na verdade, ficamos no mesmo lugar, giramos em torno de nós mesmos e não vamos a parte alguma.
   Essa ênfase na obra como identificada à sua realidade formal caracteriza o ponto de vista da produção, pois o que chamamos de “obra de arte” é essencialmente e antes de tudo, uma forma. Considerar objetivamente a imagem artística implica também, por sua vez, um necessário “contato interior com os meios artísticos” (Kandinsky, ap. Wick, 1989, p. 269), ou seja, implica na experiência da produção como base para as definições teóricas. Daí a importância da palavra do artista, de seus textos e declarações, pois só a vivência do processo de produção pode esclarecer a dinâmica dos fatos da forma e fundamentar uma teoria dessa mesma produção. Nesse sentido, se quisermos encontrar os pressupostos da criação, teremos que, além do estudo das obras, nos debruçar principalmente sobre os escritos e testemunhos dos artistas, pois uma teoria da arte só pode existir a partir da vivência dos problemas da criação, da qual os artistas são, obviamente, os únicos que possuem as necessárias e indispensáveis referências para a sua definição. Daí mais esta advertência de Kandinsky: “quem não seja capaz de observar deve deixar em paz a arte teórica” (1974, p.23).
    Todavia, devido à hegemonia do pensamento lógico racional na tradição ocidental, a teoria interpretativa predomina sobre a palavra do artista, ficando esta relegada a um segundo plano de importância e, até hoje, apesar da grande quantidade de seus escritos e declarações, nas escolas de arte em geral eles permanecem praticamente ignorados. No plano teórico, as aulas giram em torno da estética e da história. A estética, entretanto, nunca foi nem nunca será uma teoria da arte e, por esse motivo, as escolas de arte são conceitualmente vazias com relação a uma teoria real da arte. Este problema - que remonta ao nascimento do discurso filosófico - vem atravessando os séculos e se mantém até hoje. Essa relação opositiva da arte com o pensamento na história ocidental foi assim definida por O. Paz:
“Desde Parmênides nosso mundo tem sido o da distinção nítida e incisiva entre o que é e o que não é. O ser não é o não ser. ... Sobre essa concepção construiu-se o edifício das ‘idéias claras e distintas’ que, se tornou possível a história do Ocidente, também condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas de apreender o ser por caminhos que não fossem os desses princípios. Mística e poesia viveram assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (1982, p.123).
Ou, como escreveu um autor, “a estética veio depois, ainda que seja para dizer que já estava antes” (D’Allones, 1977, p.31). No séc. XIX encontramos o desabafo de Delacroix que, no Prefácio do seu “Dicionário das Belas-Artes”, escreveu:
“Ainda que o autor seja do ofício e dele conheça o que pode ensinar uma longa prática acrescida de inúmeras reflexões particulares, não insistirá tanto quanto se poderia supor sobre essa parte da arte que parece ser toda a arte para muitos artistas medíocres, mas sem a qual a arte também não existiria. Em matéria de estética ele invadirá assim o domínio dos críticos, que pensam, sem dúvida, que para alguém se elevar às considerações especulativas acerca das artes não é necessária a prática. / O autor tratará mais da parte filosófica do que da parte técnica. O que pode parecer estranho num pintor que escreve sobre artes – já que muitos sábios de meia tijela abordaram a filosofia da arte. Tudo leva a crer que a sua profunda ignorância da parte técnica lhes pareceu até uma vantagem, convencidos que estavam que a atenção prestada pelo artista de ofício a esta parte vital de qualquer arte devia constituir para ele um obstáculo às especulações estéticas. /  Tudo leva a crer que eles jugaram que o seu profundo desconhecimento da parte técnica era afinal uma razão a mais para de erguerem a considerações puramente metafísicas já que, no seu entender, as preocupações técnicas tornavam os artistas profissionais pouco capazes de se elevarem aos píncaros proibidos aos profanos da estética e da especulação pura” (1979, p.39-40).   
    Mesmo assim, já no século XX (que ofereceu ao artista uma pseudo-valorização controlada, pois a hegemonia continua a ser a da palavra dos críticos, culminando com os “artistas” atuais que são verdadeiros “reféns” da crítica e os mais “domesticados” de toda a história), encontramos em Pierre Francastel essa “advertência”: “Foi a época romântica que deu origem a uma espécie perigosa de homens: os artistas-escritores” (FRANCASTEL, 1982, p.58).
    Ao artista, entretanto, independentemente de qualquer reconhecimento social, basta a consciência da realidade do seu próprio ofício, a qual, para além das considerações de natureza estritamente técnica, existe na consciência das condicionantes e possibilidades da produção.  É a ele que interessa saber que a obra não pode ser pensada de antemão, que ela existe apenas como possibilidade, e que todo o interesse da produção vai então convergir naturalmente para o próprio processo de produção, isso pela simples razão de que não há outra alternativa. Toda a responsabilidade de realização incide, então, sobre o movimento produtor, sobre a dinâmica operativa da formação da imagem artística. Assim sendo, é a qualidade do processo que engendra a qualidade da obra.
   São esses três fatores, a imagem como fato e sentido identificado e imanente à forma, sua autonomia com relação ao pensamento e o primado do processo formador, que definem a natureza da criação artística. Nesse contexto, se aquilo que é um produto do pensamento terá necessariamente a mesma natureza do pensamento, terá um sentido intelectual e será, portanto, intelectualmente inteligível, assim também o sentido formal da imagem artística, sendo ele mesmo uma qualidade de “inteligível” (do contrário ela não teria nenhum sentido para nós), será, tal como no exemplo da música acima (p. 2), inteligível em seu plano particular de significação e realidade, corresponderá a um “inteligível mas não traduzível" (Cohen, 1982, p.116). Por extensão, se aquilo que é inteligível deve necessariamente possuir uma causa “inteligente”, então, tal como existe uma qualidade de inteligência da ordem do pensamento racional, do mesmo modo, no plano da produção, vai existir uma outra qualidade de inteligência que é da ordem exclusiva do fazer. Assim, se o projeto de uma mesa é uma construção da esfera da inteligência racional, uma obra de arte será o produto de outro tipo de inteligência: uma inteligência agregada ao próprio ato construtor da forma, que está presente no processo mesmo de sua produção. Existe, pois, uma inteligência anônima presente no movimento formador da imagem artística que corresponde à inteligência da criação e, como tal, não pertence ao artista individualmente. Nesse sentido, por mais que se fale no famigerado conceito de “estilo”, a obra de arte continuará a não ser uma “fabricação pessoal” do artista. É como disse certa vez Picasso: “quando eu pinto, todos os pintores pintam junto comigo”, ilustrando essa expansão para além de si mesmo, essa descentralização do artista, que é inerente e necessária ao ato criador. Logicamente, se o sentido e a forma são inseparáveis, assim também o fazer e o conceber estão identificados. Aquela inteligência atua no momento mesmo da produção: “a obra cresce e é executada ao mesmo tempo” (Arnheim, 1976, p.248). A obra é então uma consequência direta do processo pelo qual vem à luz, é o produto de uma estratégia formadora e, como a ela não pode ser prevista como resultado final, este será sempre uma surpresa para o próprio artista. A consciência do artista é uma consciência “em ato”, não tem natureza reflexiva, mas é uma forma de lucidez operativa com relação àquilo que é um quadro, um poema, etc. Não existe o artista, existe o percurso da produção. Esta natureza anônima do ato criador foi exemplificada por Paul Klee, com a sua “parábola da árvore”, na qual o artista ocupa o lugar do tronco, a meio caminho entre as raízes e a ramagem. Nessa condição, ele
não faz outra coisa, no sítio que lhe foi assinalado no tronco, que recolher o que sobe das profundezas e transmiti-lo para mais além. / Nem submisso servidor, nem amo absoluto: simplesmente intermediário. / Desta maneira, pois, o artista ocupa um lugar muito modesto. Não reivindica a beleza da ramagem: esta apenas passou por ele” (1978, p. 36).
     Não podemos, pois, confundir questões filosóficas com problemas artísticos, pretender falar da arte discutindo questões de natureza metafísica, relacionando-a a conceitos como a natureza do “belo”, etc., não é falar das possibilidades construtivas da pintura, é deslocar o problema da esfera da arte para a esfera filosófica, é perder de vista e negar aquela objetividade construtiva da forma que é talvez a maior conquista do artista. Todo discurso dessa natureza vai inevitavelmente cair no vazio quando relacionado aos problemas da produção, pois na criação não há a separação conceitual entre o pensar e o fazer, se há um “pensamento” é o pensamento da produção e, para além de toda elucidação teórica, a lucidez do artista continuará a ser uma lucidez do fazer. A teoria da produção somente situa o artista na ante-sala da criação, ela não pode antecipar o sentido plástico, o produto final, pode apenas estabelecer as bases da sua produção: em lugar de definir a arte em si mesma ela apenas esclarece os problemas da sua produção,
“...problemas importantes e decisivos para a ciência das formas, porém não arte ainda, no mais estrito sentido. Em sentido mais alto, o mistério último da arte subsiste mais além de nossos mais pormenorizados conhecimentos, e nesse nível as luzes do intelecto se desvanecem lastimosamente” (Klee, 1978,p. 64).
 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1.      ARNHEIM, R. El “Guernica” de Picasso – Génesis de uma Pintura. Barcelona: Gustavo Gili, 1976.
2.      COHEN, J. El Lenguage de la Poesia. Madrid: Gredos, 1982.
3.      D’ALLONES, O. Creación artística y Promessas de Libertad. Barcelona: Gustavo Gili, 1977.
4.      DELACROIX, E. Diário (Extratos). Lisboa: Estampa, 1979.
5.      FRANCASTEL, P. A Realidade Figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982.
6.      GRIS, J. Possibilidades de la Pintura y Otros Escritos. Córdoba: Assandri, 1957.
7.      HESS, W.  Documentos para la Comprensión del Arte Moderno. Barcelona: Seix Barral, 1970.
8.      KANDINSKY, W. Punto y Linea Sobre el Plano. Barcelona: Barral, 1974.
9.      KLEE, P. Teoria del Arte Moderno. Buenos Aires: Caldén, 1978.
10.  PAZ, O. O Arco e a Lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
11.  RILKE, Rainer Maria. Cartas a um Jovem Poeta. A Canção de Amor e de Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke. São Paulo: Globo,1997.
12.  WICK, R. Pedagogia da Bauhaus. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

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