Apenas 14% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma vez por mês; 92% da população nunca frequentou museus; 93% nunca foram a exposições de arte, enquanto 78% nunca assistiram a um espetáculo de dança; 92% dos municípios brasileiros não têm cinema, teatro ou museu.
Esses dados são do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e deixam claro o tamanho do desafio que o Brasil precisa enfrentar para, de fato, universalizar os serviços culturais, dar acesso e favorecer a produção fora dos grandes eixos econômicos.
A história brasileira sempre foi marcada pelo que podemos chamar de “concentração”. O dinheiro público sempre cai nas mãos das oligarquias e dos grandes conglomerados empresariais, sobretudo da indústria, do setor financeiro e da mídia. No setor cultural, essa concentração salta aos olhos ao analisarmos a Lei de Incentivo, mais conhecida por Lei Rouanet.
Criada em 1991, a lei estabeleceu mecanismos que possibilita empresas e cidadãos aplicarem uma parte do Imposto de Renda em ações culturais. Mas, se por um lado a lei estimulou uma indústria cultural que cresceu de mãos dadas com o meio empresarial, por outro fez com que toda a produção artística que não dialoga com o mercado ficasse excluída, sendo até hoje ameaçada pela falta de mecanismos estatais responsáveis por suprir os desafios da infraestrutura, da pesquisa e do acesso.
Em entrevista exclusiva ao The Brazilian Post, o cientista político e membro do Conselho Nacional de Políticas Culturais, Manoel de Souza Neto, falou sobre as origens da concentração das verbas culturais no Brasil, sobre a relação entre sociedade civil e governo, Lei Rouanet e possíveis soluções para o setor, como os Pontos de Cultura – iniciativa que busca democratizar o acesso à cultura por meio do incentivo da produção comunitária. Confira abaixo:
The Brazilian Post: O que estimulou e/ou ainda estimula a concentração das verbas de cultura no Brasil?
Manoel de Souza Neto: A Lei de Incentivo foi um instrumento criado com objetivo de prover produção e fruição cultural, mas foi rapidamente deturpada devido ao modelo neoliberal de Estado não interventor que se instalou no Brasil na década de 1990. Neste modelo o Estado lava as mãos e entrega ao mercado as decisões. A lei Rouanet é um instrumento de manutenção de poder e ferramenta de exclusão social. O modelo é excludente em si; esta é a própria função paradoxal das leis de incentivo que, ao incentivar a produção cultural, geram uma dicotomia entre cultura e mercado, favorecendo os campos econômicos e sociais privilegiados e agindo em detrimento das comunidades, etnias, artistas e culturas periféricas, justamente os que mais precisam.
As decisões são do mercado, o patrocinador; são sempre eles os maiores beneficiados e, graças ao sistema que só permite patrocínio de empresas com lucro presumido, somente grandes empresas são patrocinadoras; o restante vem do próprio governo. O mercado e o mundo publicitário assumem a forma de agentes intermediários do modelo, que de tão afunilado gerou uma moeda de troca ilegal, um cambio negro. Políticos, agências de publicidade, departamentos de marketing e captadores exigem comissões “extras” para liberarem recursos, tornando os fazedores de arte em pagadores de propina, criminalizando o artista, que acaba refém da “turma” instalada ao centro do poder.
A exclusão ocorre por via estrutural e linguística, regras que eliminam a ampla maioria por não deterem o conhecimento do campo cultural de mercado e de política, orçamentos, publicidade, serviços, por não terem como ocupar espaços privilegiados, por questões burocráticas, enfim, por não deterem redes de relações de poder. Se o ex-ministros da Cultura Gilberto Gil e Juca Ferreira tentaram apoiar um modelo de cultura em três dimensões – cidadã, econômica e simbólica -, a atual ministra Ana de Hollanda só fala em economia criativa e reforço das leis de direito autoral no sentido de dificultar o acesso. Os mesmos que não querem mudar a Lei de Incentivo também não querem mudar as regras da Lei de Direitos Autorais para uso na educação.
Como você avalia os 20 anos da Lei Rouanet e o que precisa ser mudado para que ela democratize o acesso à cultura?
Com o tempo a captação das leis se profissionalizou, democratizou em algum sentido a produção, mas em outro sentido ela descumpre a função de políticas públicas prevista na constituição, porque não garante o acesso, nem promove a diversidade cultural. Se por um lado a distribuição de recursos da Lei Rouanet já supera mais de 10 bilhões de reais desde a década de 1990, chegando na atualidade a mais de um bilhão de reais ao ano, de fato 95% dos patrocínios ainda vem das empresas do governo.
Muitos projetos importantes como preservação de museus, edição de livros, difusão de manifestações e atividades culturais foram apoiados, mas o saldo é negativo dada a concentração das verbas que geram ampliação das desigualdades sociais no território nacional. O problema se agrava com a questão da concentração de beneficiados por metro quadrado, já que os dados revelam que 80% das verbas ficam no eixo Rio-São Paulo. Célio Turino, ex-secretário do Ministério da Cultura nas gestões de Gil e Juca, vai além; repito aqui e faço das palavras dele as minhas: 3% do total dos proponentes de projetos culturais captam 50% dos patrocínios. Outros 20% de proponentes ficam com o restante dos recursos, sendo que quase 80% dos autores de propostas culturais a serem incentivadas nada captam. Uma concentração inacreditável, em que 3% significam menos de 100 pessoas, empresas ou instituições no país. Mesmo com o sucesso do cinema nacional, a produção gerada pela Lei de Incentivo não chega nem a 10% da população; e este dado é otimista, pois inclui um ou outro sucesso de bilheteria.
Quais medidas são exemplos bem sucedidos na tentativa de descentralizar os investimentos nessa área? Os Pontos de Cultura são uma dessas iniciativas?
Os Pontos de Cultura se tornaram um grande instrumento de descentralização de recursos, beneficiando mais de 2.000 pequenos equipamentos culturais direto nas comunidades. A própria gestão do Ministério da Cultura, com participação da sociedade civil, gerou o chamado emponderamento e governança através das esferas de participação, gerando pesos e contra pesos na fiscalização das políticas, através de colegiados e conselhos. Com isso não apenas ocorreu diálogo, mas também, através de conferências, conselhos, colegiados setoriais e encontros de culturas populares, mudanças nas relações entre sociedade civil e o governo, que passou de um ministério de poucos para um representante de toda a cultura brasileira. Mas isso somente até 2010.
No campo do orçamento, na última década, a criação do Fundo Nacional de Cultura, com fundos setoriais, gerou o estimulo para criação de fundos estaduais e municipais com objetivo de diminuir as distorções. O Sistema Nacional de Cultura em construção aproximou políticas públicas de cultura, desafogando as regiões ilhadas por visões arcaicas. Com o enfraquecimento do programa Pontos de Cultura, ocorreu um claro retrocesso, um rompimento de um projeto de governo.
Como a sociedade civil tem se organizado para estreitar o relacionamento com o governo nessa área?
O diálogo ocorreu em larga escala na gestão dos ex-ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, mas foi interrompido com a gestão de Ana de Hollanda. Nem o Conselho Nacional de Cultura (CNPC) consegue manter diálogo com a cúpula principal. Atualmente existe um clima de violência simbólica evidente no ar contra a sociedade civil. Durante da última década o Brasil pôde observar o avanço dos movimentos civis se organizaram fóruns, coletivos e outras organizações em todos os segmentos. A participação em colegiados, câmaras, conselhos, seminários e conferências mobilizou o Brasil ao redor do Ministério da Cultura. Infelizmente tudo isso está em risco porque existem outros tipos de mobilização de grupos de interesses.
Fonte: The Brazilian Post
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