Rosa Minine |
Ela tem uma voz belíssima, capaz de encantar a todos. Ouvindo-a, qualquer um percebe tratar-se de uma profissional do canto. Seu repertório é o da mais autêntica música brasileira e latino-americana, das primeiras as mais modernas expressões de indubitável qualidade. Conhece tudo de música, lembra-se de todas as letras e melodias que mereçam ser interpretadas. Mas apesar do talento, do despreendimento, e de muita experiência em apresentações nos bares e clubes de Belo Horizonte ou no Rio de Janeiro, a mineira Maria Antônia jamais conseguiu gravar comercialmente um CD e iniciar uma projeção pelo país.
É certo que, desde os seis anos, Maria Antônia, às escondidas, concorria aos ingressos oferecidos pelo parque ou circo de passagem pelo bairro Padre Eustáquio (Belo Horizonte) à criança que cantasse melhor os sucessos do momento. Desnecessário dizer que a jovem cantora ganhava todos os ingressos e sonhava com o dia em que seria tão famosa quanto Angela Maria, Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso...
De origem proletária, voz limpa e maravilhosa, Maria Antônia começou sua carreira por acaso quando, aos dezessete anos de idade, saiu com seu irmão e a noiva para um bar e teve o primeiro contato com o pianista Paulo Modesto, que tocava no local e se interessou pela sua voz ao ouvi-la solfejando alguma coisa. Já familiarizada com a música, mesmo sem entender ainda suas técnicas, ela foi convidada pelo pianista a acompanhá-lo. Isso era 1967.
— Ele me deu alguns tons e eu comecei a cantar. Ouvindo, o proprietário do local me convidou para passar a cantar lá profissionalmente e foi o meu primeiro trabalho. Por nove anos cantei no Top Bar. E foi um tempo muito bom para mim, porque lá tive a oportunidade de aprender bastante de música, primeiramente com Paulo Modesto, chegando a fazer prova para o conservatório de música de Belo Horizonte e passando a estudar com João de Deus Peluci, que era diretor da Ordem dos Músicos de Minas Gerais — conta.
O Top Bar, com um repertório repleto da boa música nacional, era frequentado por pessoas importantes. E numa determinada noite de 1968 foi convidada para cantar para alguém especial, cujo nome não tinha sido revelado. Ela imaginou que se tratasse de um empresário de destaque, uma personalidade política etc. A tal pessoa havia pedido que ela interpretasse Viola Enluarada, de Marcos e Paulo Sérgio Valle, que na época fazia grande sucesso. Ela cantou e foi aplaudida de pé e recebeu muitos cumprimentos. O homenageado, até então anônimo, levantou-se e, se dirigindo à cantora, teceu inúmeros elogios à interprete e a convidou para dançar. Era o Dr. Juscelino Kubitscheck.
— Não hesitei em pedir-lhe um autógrafo, que ainda guardo com muito carinho. Este acontecimento jamais sairá de minha lembrança. Eu havia sido aplaudida por uma pessoa que admirava e que, sem dúvida era uma apreciadora da boa música brasileira.
MAS POR QUE CANTAR?
Maria Antônia diz que sempre teve necessidade de conhecer a essência das coisas, nunca se satisfez com as aparências. Quando gosta de uma música, pesquisa para saber a fundo como foi produzida, em que circunstâncias surgiu, qual a sua relação com o momento etc. Foi na adolescência que passou a ouvir mais atentamente os grandes autores nacionais. Embora ouvisse tudo, passou a dar especial atenção à letra, ao que de fato dizia, à construção poética; à qualidade da obra musical.
— Passei a entender que toda música tem sua história, suas razões e foi produzida em determinadas circunstâncias. Então, parto para pesquisar o seu significado, a relação com uma cultura, uma fase. Na verdade sempre fui uma pessoa com necessidade de conhecimento. Durante a gerência militar, por exemplo, nunca me conformei em ouvir certas pessoas dizendo que os estudantes, pelo fato de deflagrarem greves, passeatas, comícios etc., estavam errados, e daqueles que estavam morrendo nas celas mereciam o castigo. Isso me indignava porque sabia que aqueles prisioneiros eram patriotas, gente do nosso povo — declara.
— Lembro-me que no Colégio Estadual Central de Belo Horizonte, quando eu era adolescente, não podíamos nos reunir para falar de música ou de alguma questão cultural séria (ora, em pleno colégio!) que em poucos minutos apareciam delatores de toda a sorte, inclusive militares a paisana que ficavam observando tudo e a todos. Outras vezes, diziam: 'Sobre o que estão conversando? Não podem fazer aglomerações.' E tínhamos que nos dispersar mesmo — continua.
Mas a adolescente daqueles dias aprofundava suas preocupações no universo da realidade do povo brasileiro e da sua música. Gostava das letras de poetas sérios como Chico Buarque — assim como qualquer assunto que pudesse revelar o pensamento do povo brasileiro — coisas que não eram bem aceitas na direção da escola.
— Eu gostava de investigar as contradições de classes dentro da sociedade, de enfrentar os estigmas contra o povo brasileiro e contra a nossa história. Era muitas vezes rotulada de "ista" (de socialista, comunista), por conta disso. Mas não me importava. Eu não tinha vínculos com qualquer partido político e, além do mais, eu tinha as idéias que o meu povo verdadeiramente tem.
A cantora fala das dificuldades que o proletariado tem para obter informações, porque as notícias para ele também custam mais caras. Como teve uma infância sem muitos recursos, para conseguir seus livros e assim informações sobre as questões culturais de maior expressão e a realidade política do Brasil de uma maneira geral, ela chegou a fazer faxina em residências de parentes e da própria professora.
— Nunca tive vergonha disso. Eu acho que tudo que eu aprendi me serviu muito e ainda me serve. O trabalho não é vergonha, exceto quando desonesto.
CANTORA DO POVO
Quando se tornou cantora de um sofisticado piano bar, Maria Antônia usava roupas feitas por sua própria mãe:
— Quando eu chegava, muitos nem imaginavam que eu fosse a cantora do local, porque eu não me vestia da maneira como imaginavam, cheia de brilho. Eu me vestia com a minha roupa simples, como eu era. Mas quando me ouviaam cantar, aí diziam: "Sim, é de fato uma cantora".
De fato uma cantora e "de fato filha de gente honrada", acrescentariam se soubessem:
— Meu pai foi um sargento da cavalaria do exército, em Ouro Preto, mas expulso depois de discutir com um superior, passando a trabalhar como sapateiro e vindo a falecer ao 59 anos. Minha mãe, que era professora do interior, não pôde mais lecionar. Teve que trabalhar fazendo costuras para fora — continua.
— Éramos bem pobres. Mas a música nunca faltou na minha casa. Minha mãe gostava de cantar serestas, meu pai tocava seu violão e, às vezes, me acompanhava em alguma música. Nossas condições não permitiam acesso aos ambientes musicais, como os programas de auditórios, em Belo Horizonte, ou círculos famosos de músicos — acrescenta.
Apesar do talento, ela não pôde se dedicar inteiramente à música, pois o que ganhava cantando não era suficiente para sobreviver e ajudar em casa. Durante o dia trabalhava como atendente em uma papelaria, depois como secretária e, à noite, seguia seus estudos.
Mas Maria Antônia não se acomodou e em 1980, anos depois de ter iniciado sua carreira, ela conseguiu mudar-se para o Rio de Janeiro.
— Na época, eu trouxe uma carta de apresentação para um determinado apresentador de TV, que prefiro não citar o nome. Infelizmente não me fez uma proposta honesta. Interrompi, por uns tempos, minhas atividades musicais para trabalhar como secretária. Depois, fui convidada a cantar no bar da piscina do hotel Copacabana Palace, mas não me trouxe o retorno financeiro esperado,nem ao menos razoável, embora cantasse para um público rico — conta.
A TODO VAPOR
— Passando por Belo Horizonte, reencontrei-me com os amigos músicos que me acompanharam em várias apresentações: saxofonistas como Manoel Chaves, Mordentte; violão sete cordas como Lamartine e Trisquei; cavaquinhos, Milton e Sorriso; violão seis cordas Betinho e Haroldo, na timba. O programa do Acir Antão, na Rádio Itatiaia, divulgou minha presença na cidade por várias semanas. No programa da Bianca Lage, na Band, me apresentei com o Balé Batuque, com o Carlos Afro, que é fantástico — elogia.
— Paralelamente cantei, durante dois anos, no restaurante do Agostinho, no Prado, um local famoso e muito bem frequentado por músicos de várias categorias, com um repertório cheio de música brasileira, canções antigas e modernas. Nesse período, fui muito elogiada pelo mestre Afonso (grande compositor e apresentador em Minas). Antes de 1980 eu já havia me apresentado no Barroca Tênis Clube e na Sociedade Mineira de Engenheiros — diz.
Em termos de divulgação e de reencontro com grandes músicos de Belo Horizonte, além de ligações com outros artistas, a temporada foi muito proveitosa, esclarecedora inclusive no que diz respeito à atividade musical que ela gostaria de desempenhar e, principalmente, em relação ao papel que a música de fato exerce na sociedade.
Desde muito cedo Maria Antônia se via atraída pelos grandes autores brasileiros — do samba de raiz à chamada bossa nova, da linda e verdadeira música caipira, enfim, a autêntica música brasileira de uma maneira geral:
— Ao ouvir músicas hispano-americanas primeiro me interessei pelos ritmos: o romantismo dos boleros, o dramatismo dos tangos, a malemolência tropical dos cubanos etc. Para entender e melhor interpretá-las, aprendi espanhol.
É que, ao aprofundar seus conhecimentos na música autêntica do nosso povo, deparou-se com a riqueza das letras na poesia profunda dos versos que contam histórias verdadeiras do nosso país. Esse instante se completou quando se fez ouvir mais alto, irrompendo por todo o continente, a poesia e as vozes de Mercedes Sosa, Violeta Parra, Victor Jara, Atahualpa Yupanqui, Félix Luna (quando conheceu a história de Juana Azurduy, grande revolucionária peruana — 1780/1862), Daniel Viglietti e muitos outros intérpretes de nossa América proletária.
— Agora eu sei que não basta alegrar, cantar bem, revelar repertório de boa qualidade, mas sobretudo é preciso transmitir conhecimentos, explicar ao povo, expressar sua verdadeira cultura, proclamar que temos muito mais do que tentam nos impor de espúrio, de estrangeiro. E quanto mais conhecemos os folclores, a história e toda a cultura desses lugares vizinhos, mais nos vemos refletidos. Somos todos descendentes de índios, negros e brancos — no Brasil e em toda a América Latina. E sempre o império querendo tirar tudo o que é nosso, até mesmo nossa consciência. Por isso, tantas vezes encontrei nesses versos de língua espanhola paralelos idênticos na vida das pessoas que conheci em Minas Gerais e na minha própria família. São tempos de necessidade, alegrias e tristezas. E é assim, que além das técnicas vocais ou qualidade de voz, é a emoção e o sentimento, elevados ao nível de raciocínio, o que mais considero em minhas interpretações.
Portas de aço fecham fortemente os caminhos para o melhor da música e dos artistas dos povos de nossa América explorada. Mas não há porque desanimar, porque o caminho tradicional é quase sempre o do sucesso individualista, mesquinho, popularesco. No entanto, a glória que o artista do povo persegue não é a sua glória pessoal, mas a do povo. Assim, Maria Antônia explica:
— Nos tempos de BBBs, sucessos instantâneos, marketeiros, jabás, gravadoras transnacionais, a fama é produto a ser vendido, negociado. Tudo é tratado como mercadoria, até mesmo o homem, a honra. Nunca me vendi na minha juventude, tampouco agora eu o faria. Não basta concluir que os monopólios de divulgação fecham todas as portas, mas é preciso responder a isso. A resposta tem que vir com a poética verdadeira, e ela pertence ao povo e só pode vir de seu meio, de suas entranhas. Por isso, o artista do povo tem que entender que ele não está isolado, como querem que pense. Sempre podemos nos juntar em estúdios e gravar muitas coisas, o melhor da música do povo. Eu mesma busco isso o tempo todo, e tenho amigos, grandes músicos, que pensam igual. Quando reconhecemos nossas qualidades não precisamos pedir favores. Nos juntamos trocando trabalhos, uns pelos outros, nos ajudando mutuamente.
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quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
Ouvir o povo, cantar, ouvir o povo...
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