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sábado, 5 de janeiro de 2013

José Bonifácio, o patriarca da ciência


José Bonifácio
José Bonifácio, cientista

Pesquisa feita em 2011 pelo Congresso Nacional revelou que apenas 8% dos 652 deputados e senadores têm mestrado ou doutorado. No Senado, 9,5% dos parlamentares não ingressaram num curso superior. 


Por Carlos Haag


As estatísticas, talvez, não afetem o desempenho dos congressistas, como querem alguns especialistas, mas a comparação com o currículo de um político do passado, José Bonifácio (1763-1838), dá o que pensar. Cientista reconhecido por seus pares, com uma carreira de nível mundial, raridade no século 18, era versado em mineração e metalurgia, na teoria e na prática, com vários artigos publicados nos principais jornais acadêmicos da Europa, em várias línguas.

Afinal, ele falava e escrevia em seis idiomas e lia em 11, um homem erudito e ávido leitor de estudiosos das mais diferentes áreas do pensamento. Foi membro das principais academias de ciências do planeta, descobriu diversos minerais, foi professor na Universidade de Coimbra e dirigente de algumas das principais indústrias de Portugal e do Brasil. É também o único brasileiro ligado à descoberta de um novo elemento químico, o lítio, e, em sua homenagem, a granada de ferro e cálcio foi batizada de andradita. Pregava, muito antes da ecologia, a exploração “racional” dos recursos naturais, esbravejando contra a destruição das florestas. José Bonifácio via as ciências como fundamentais para o desenvolvimento do Brasil: projetou a criação de universidades, de escolas de minas, de expedições científicas para mapear o território e de sociedades econômicas e científicas.


Precursor da ecologia: livro de José Bonifácio
sobre bosques em Portugal

“Mas foi reduzido ao papel político de Patriarca da Independência, um movimento que ele rejeitou até o último momento. Bonifácio, acima de tudo, foi um cientista, formado pela Ilustração, e que desdenhava o conhecimento de gabinete. Acreditava numa ciência com sentido propositivo e prático. Para ele, sua condição de cientista o capacitava a encontrar soluções racionais para os problemas enfrentados pelo Estado”, explica a historiadora Miriam Dolhnikoff, da Universidade de São Paulo (USP) e autora da biografia recém-lançada José Bonifácio (Companhia das Letras). “Como político, sua faceta mais conhecida, ele esteve à frente do processo de construção de uma nova nação, mas a maneira como pensou essa nação foi determinada pela formação de cientista”, diz. Segundo a pesquisadora, o “cientista político” quis fabricar a nacionalidade em seu laboratório social, bastando misturar nos tubos de ensaio do cotidiano as diversas matrizes culturais para produzir uma única, sintetizada na mestiçagem.

“Há mérito no conhecimento concentrado nas realizações de Bonifácio como político. Mas a política se restringiu, no Brasil, a apenas dois anos na vida de um senhor de 59 anos, já aposentado, dono de uma longa carreira como mineralogista em Portugal”, lembra o jornalista e cientista político Jorge Caldeira, responsável pela digitalização da obra completa de José Bonifácio, disponível no portal Obra Bonifácio (aqui). “Foi o erudito brasileiro mais respeitado na comunidade científica internacional na época. Por isso, não aceitava compromissos e sofreu preconceito por ser um cientista de renome internacional que também tinha muito poder político.”

Pátio da Universidade de Coimbra, em Portugal, onde 
Bonifácio tomou contato com as ideias modernas
Bonifácio fez parte de uma nova geração de brasileiros em Coimbra. “Se a maioria seguia a tradição de estudar leis para voltar ao Brasil e administrar os negócios da família, a nova mentalidade ilustrada atraiu muitos estudantes da Colônia que viam no conhecimento científico a chance de desenvolver suas capacidades e as potencialidades do império”, conta Miriam. Assim, entre 1772 e 1822, dos 866 brasileiros formados em Coimbra, 450 cursariam matemática; 250 estudariam filosofia natural (ciências naturais); e 65 se dedicariam à medicina. O jovem de 20 anos chegou a Portugal em 1780 em meio ao movimento de modernização que deveria combater o que os contemporâneos diagnosticavam como a “decadência do reino”. “Havia, então, uma forte identificação entre ciência e política. O Estado arregimentava naturalistas para postos importantes na administração para garantir que a política reformista fosse aplicada”, afirma o historiador Alex Varela, autor de Juro-lhe pela honra de bom vassalo e bom português: análise das memórias científicas de José Bonifácio (Annablume).

Como resultado, em 1772, a Universidade de Coimbra, centro do conhecimento lusitano, passou por uma grande reforma, importando professores para suprir as carências locais. Um dos mais influentes foi Domingos Vandelli, célebre naturalista amigo de Lineu, contratado para lecionar história natural e química. Em pouco tempo, o italiano criou um grupo de discípulos que defendiam o domínio da natureza como alternativa para Portugal superar a defasagem econômica com o resto da Europa ilustrada. “Para ele, era preciso inventariar a natureza das colônias em instituições científicas, pois essas produções naturais recuperariam o reino”, observa Varela. Bonifácio, aluno de Vandelli, passou a entender a ciência não como mera forma de conhecimento, mas como instrumento capaz de transformar a sociedade. “Era uma ciência aplicada, pragmática, que teria a função social de resolver problemas. A natureza da colônia deveria ser cientificamente conhecida e explorada, para contribuir para a industrialização portuguesa”, analisa o pesquisador.

“A opção de Bonifácio pela mineralogia se enquadrava nessa perspectiva da ciência utilitária. Ele levou a visão de cientista ilustrado para a política. Como um mineralogista, quis amalgamar os metais de que dispunha para criar a têmpera da nação civilizada. A natureza e a história davam todos os elementos necessários. Bastava apenas a razão e o saber, aliados ao poder do Estado, para transformá-los em metal nobre”, diz Miriam. “O homem de ciência deveria se ligar ao Estado e aceitar os valores hierarquizados dessa sociedade. Em troca, o estudioso ganhava honra e privilégios, no espírito hierárquico do Antigo Regime”, avalia a historiadora Berenice Cavalcante, professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e autora de José Bonifácio: razão e sensibilidade (FGV). Assim, o cientista Bonifácio era basicamente um funcionário do Estado. Esse, por sua vez, investia pesadamente na formação de quadros acadêmicos que deveriam trazer ao império o que ele mais carecia: conhecimento técnico. Para tanto, eram concedidas viagens de especialização e profissionalização, como a que Bonifácio fez entre 1790 e 1800 pela Europa central e setentrional, onde visitou as grandes escolas e regiões de mineração.

Não se tratava de “viagens filosóficas”: o beneficiado deveria observar tudo para trazer os ares da modernidade ao império. “Só se visitavam locais de importância como centros de conhecimento mineralógico, de filosofia natural e química”, conta Berenice. Na França, fez o curso de química de Fourcroy; na Alemanha, conheceu Humboldt e teve aulas com Kant, trabalhando nas minas; visitou as minas da Boêmia e fez pesquisas na Suécia e Dinamarca. O artigo sobre os minerais encontrados, em especial a petalita e o espodumênio, teve grande repercussão, e sua leitura pelo químico inglês Humphry Davy possibilitou a descoberta de um novo elemento, batizado de lítio.

“Foi também nessa viagem que retomou a visão crítica de Vandelli sobre a destruição irracional da natureza, reformulando-a, em seus moldes, numa preocupação intensa com a questão ambiental. Essa parte do pensamento de Bonifácio, infelizmente, é subestimada pelos historiadores”, afirma o historiador José Augusto Pádua, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e autor de Um sopro de destruição: pensamento político e crítica ambiental no Brasil escravista (Zahar). “Bonifácio conviveu diretamente com o processo de gestação do novo universo teórico sobre a dinâmica da natureza. Acima de tudo, em seus escritos não traz uma mera transposição da discussão europeia para o meio luso-brasileiro, mas uma interpretação pessoal derivada das suas vivências e reflexões”, observa Pádua. Segundo o autor, para Bonifácio, o desenvolvimento não poderia basear seu crescimento na destruição anticientífica das florestas, pois essas ações ameaçariam o futuro. “Nossas preciosas matas desaparecem, vítimas do fogo e do machado, da ignorância e do egoísmo. Sem vegetação, nosso belo Brasil ficará reduzido aos desertos áridos da Líbia. Virá então o dia em que a ultrajada natureza se ache vingada de tantos crimes”, escreveu em 1828.

“É preciso ter cuidado em ver Bonifácio como um ‘ecologista’, porque, na época, não se colocava a possibilidade do esgotamento das riquezas naturais e não se vislumbrava que a destruição da natureza colocaria em risco o meio ambiente. Era preocupação de um cientista no uso mais eficaz e racional da natureza para garantir melhores resultados econômicos”, adverte Miriam. Essa visão pragmática atraiu a atenção de dom Rodrigo de Souza Coutinho, ministro da Marinha e do Ultramar. Membro da Academia Real de Ciências, o nobre era um ilustrado que defendia a recuperação da mineração da colônia, considerada por muitos “esgotada”, como a chave para a regeneração do império. Desde que conduzido com “ciência”. Assim que retornou da peregrinação pela Europa, Bonifácio foi convidado por dom Rodrigo a criar uma cadeira de metalurgia em Coimbra e nomeou-o, em 1801, intendente das minas do reino de Portugal. Era o início da união orgânica do cientista e do homem público, mantida em perfeita sincronia até o retorno ao Brasil.

Além das minas, Bonifácio ficou responsável pela Casa da Moeda, onde promoveu estudos e cursos de química, e pelos bosques reais, quando pôde empregar seus ideais de harmonia da natureza e o “progresso”. Incansável, inventariou os problemas da mineração em Portugal, fez funcionar a primeira máquina a vapor de Portugal, tornando a extração de carvão mais eficiente, e colocou em atividade a fábrica de ferro de Figueiró, usando um gerenciamento racional e moderno, alcançando patamares consideráveis de produção do minério. Como se não bastasse, descobriu um novo veio de carvão no Porto que ele afirmou ser capaz de abastecer o reino por 1.500 anos. Mas a morosidade da burocracia imperial, que o impedia de implantar com eficiência a “tecnologia” em Portugal, cansou Bonifácio, que decidiu voltar ao Brasil em 1819. Num discurso de despedida, defendeu as potencialidades da colônia para o “novo” Império Português: “E que país, esse, senhores, para uma nova civilização e para o novo assento das ciências! Que terra para um grande e vasto império!”. Poucos anos mais tarde veio o choque da realidade: “No Brasil, as ciências e as boas letras estão por terra. Tudo o que interessa é vender açúcar, café, algodão e tabaco”. Ainda assim, no início, o país natal encantou o homem desgostoso dos “vícios” da modernidade europeia.

Em 1820, ao lado do irmão Martim Francisco, realizou uma “viagem mineralógica” que partiu de Santos e percorreu 72 léguas de sertão paulista, irrequieto em avaliar os recursos naturais. “Diante do que encontrou, lamentou o imenso potencial perdido pelo atraso e ‘desleixo’ dos brasileiros no cultivo da terra. Irritou-se com a destruição despropositada da natureza e previu que, após esgotarem os recursos, as populações migrariam constantemente, dificultando ainda mais a chegada da civilização”, afirma Berenice. Bom iluminista, esses obstáculos não o desanimavam; antes, o estimulavam a agir, galvanizando o naturalista aposentado. “Ele via o Brasil como uma massa bruta, prenha de potencialidades a ser modelada segundo a sua vontade ilustrada. Bonifácio inaugurou uma linhagem de estadistas que se propuseram a elaborar para o país um projeto global de nação numa perspectiva mais ampla e generosa do que a ditada pelos seus pares e contemporâneos”, analisa Miriam.

Logo, para a pesquisadora, a pecha de conservador, adquirida pela defesa ferrenha da monarquia, é injusta. “Foi um dos políticos mais reformistas da sua época. A preocupação de criar uma nação homogênea, através da mestiçagem, do fim da escravidão, da assimilação dos índios, garantindo algum grau de educação e meios de sobrevivência para todos, era o cerne de seu projeto nacional, produto da formação de cientista”, fala Miriam. Basta pensar no pioneirismo da defesa da miscigenação como base da identidade nacional. “Num momento em que os fundadores da primeira legislação iluminista do planeta, os americanos, acreditavam em diferenças entre as raças, ele as negava, uma posição que só ganhou importância em meados do século 20”, diz Caldeira. Não tomava a produção europeia como molde a ser copiado, mas como método a ser reelaborado. “Bonifácio usava o Iluminismo como ferramenta para analisar os brasileiros e fundar uma nação que levasse em conta o comportamento dos brasileiros. Nenhum iluminista do seu tempo foi tão longe na valoração da realidade dos brasileiros em detrimento do transplante direto de modelos importados.”

Defendeu uma nação baseada na homogeneidade pela mistura das raças, o que liquidaria as profundas diferenças raciais. Não queria o “embranquecimento” do Brasil, mas via como dever do Estado o estímulo a casamentos entre índios, brancos e mulatos. “Não se tratava de humanismo, mas a crença de que a integração iria favorecer as elites, às quais atribuía o papel de centro irradiador de civilização”, afirma Miriam. “Sintomaticamente, usou um termo químico, ‘amalgamação’, liga de metal homogênea, para explicar a necessidade de unir a sociedade, dividida em grupos inconciliáveis. Se não se amalgamassem esses muitos ‘metais diversos’, a jovem nação corria o risco de se romper ao leve toque de uma convulsão política qualquer”, observa Varela.

“A sua defesa da abolição seguia o mesmo princípio. A escravidão criava uma elite ociosa e violenta e, logo, inculta, obstáculo para o desenvolvimento. Também era responsável pela destruição inútil das matas”, diz Miriam. Não era, porém, irrealista de propor a abolição imediata. Preferia a mudança gradual, defendendo a reforma da prática agrícola, que deveria ser modernizada pela instrução científica do “agricultor ignorante”, e do sistema de sesmarias. Bateu de frente com os grandes proprietários ao propor que as terras sem cultivo fossem confiscadas pelo governo e vendidas, destinando o dinheiro para os pobres, para que pudessem se incluir socialmente.

“Ele queria construir uma nação dirigida por uma monarquia constitucional e para isso precisaria do apoio da maioria da elite, e a nação que ele queria construir não era a nação que essa elite desejava”, nota Miriam. Não via que estava num país com ideias fora do lugar. “A identificação de uma cidadania brasileira com universalidade étnica e religiosa ainda é uma utopia válida para uma nação. José Bonifácio foi o primeiro pensador a dar forma acabada a essa ideia”, observa Caldeira. “Desde então vários projetos reformistas foram elaborados, tendo como miragem o mundo desenvolvido, sem melhores resultados que os de Bonifácio”, fala a historiadora. Para além dos projetos, deixou ainda como legado ao país uma grande coleção de minerais e uma biblioteca de mais de 1.500 volumes, imensa para a época. Ambas desapareceram quase por completo em meio ao temerário descaso nacional pelo saber. 

Fonte: Revista Pesquisa Fapesp

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