Agradecemos a marca de 1000 visitas

Agradecemos a marca de 40.000 visitas

No nosso blog: Brasileiros, Norte Americanos, Portugueses, Canadenses, Russos, Ingleses, Italianos, Eslovenos, enfim, todos que gostam da cultura Brasileira e que tem nos acompanhado.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

ARTE DO POVO

Lélia Coelho Frota 

 

            No Brasil, a constituição e consolidação de técnicas artesanais resultaram, ao longo de quatro séculos, dos contactos interétnicos entre índios, negros e brancos.

            Em Portugal as corporações medievais não se haviam estruturado com o mesmo rigor das suas congêneres européias, pois na Casa dos 24, criada em 1422, dividindo os artífices em vinte e quatro agremiações, terminara por prevalecer um caráter religioso, ao invés do profissional.
            Na Colônia, onde não foi instituída a Casados 24, o espírito corporativo dos ofícios, permeou-se também através de confrarias e irmandades. A infixidez da mão-de-obra nos trabalhos do campo e a fraca persistência dos indivíduos nos ofícios também contribuíram para que estes não se transmitissem com regularidade de geração a geração.
            No interior do processo de ruralização, tônica da organização econômica e social do período colonial, caracterizaram-se não obstante as gradações de aprendiz, oficial e mestre, configurando-se artesanatos como a olaria, o trançado, a culinária e outros, que atingiram a primeira metade do século XIX patenteando o tradicionalismo que se alia comumente ao exercício inventivo dessas técnicas pelos indivíduos.
            Foi precisamente a geração dos românticos, no século passado, a primeira a manifestar o interesse da norma culta pelo patrimônio de raízes populares, em nosso caso particular especialmente mesclado ao pensamento mítico do negro e de índio, já assimilados numa sociedade brasileira.
            Sílvio-Romero (1851-1914) voltava-se de maneira sistemática para o exame do folclore e, na literatura, os poetas e romancistas, além de militarem pela abolição da escravatura, descreviam a natureza nativa e recorriam a uma imagem do índio idealizada, mas de intenção recuperadora. Euclides da Cunha (1888-1909), em obra extraordinária, analisava a sociedade brasileira através do episódio messiânico-sertanejo de Canudos.            
            Depois disso, foi só mais tarde, por influência do Movimento Modernista, constituído nas três primeiras décadas deste século, que ocorreu novo interesse pela produção de origem popular, abrangendo naturalmente a cultura material, e, portanto, os artesanatos.
            O Movimento regionalista do Recife, instaurado em 1923 por Gilberto Freyre, vinha também, no Nordeste do país, conferir destaque à criação popular. O autor de Casa Grande e Senzala deu continuidade, dessa forma, aos trabalhos pioneiros de Nina Rodrigues (1891-1905) e Artur Ramos (1903-1949). No campo da etnologia, dos estudos voltados para as culturas indígenas, destacou-se Curt Nimuendaju (1883-1945), cujos trabalhos inauguram nova fase no desenvolvimento dessa ciência entre nós.
            O ensino da filosofia, da estética, das ciências sociais, que interessará à avaliação contemporânea da cultura material, atualiza-se com a instituição das Universidades de São Paulo (1934) e do Rio de Janeiro (1935).
            Traçado esse breve resumo da constituição da cultura material popular no Brasil, assim como o da sua percepção gradual pelos brasileiros, a nível de observação acadêmica, estudo e valorização, afloraremos alguns conceitos vigentes sobre artes populares, onde se incluí naturalmente o artesanato.
            Hoje, a conceituação de uma arte popular, por oposição a uma arte erudita, constitui objeto de inúmeras especulações. Há quem considere a arte popular como uma forma de contracultura em relação à erudita, e há os que a definem, no extremo oposto, como uma imitação rústica dos modelos acadêmicos. Há os que a julgam um potencial de expressão quantitativa, onde se poderá interferir visando unicamente aumento de produção, sem atentar para que a não-consideração dos aspectos culturais acarretará fatalmente a descaracterização da sua identidade verdadeira, e conseqüente perda de uma qualidade fundamental exigida pelo seu mercado. E, finalmente, os que imaginam as artes populares como inalteráveis através dos tempos, testemunho a manter de extintas idades áureas, numa visão purista.
            O fato é que se tornou cada vez mais difícil estabelecer um limite entre a esfera popular e a culta, que até inícios do século passado mantinham um definido delineamento, na sua interação no cotidiano.
            Discernem-se, entretanto, diversas manifestações culturais nitidamente identificáveis como populares, ou de fonte popular. São elas expressões de culturas com valores próprios, critérios de gosto e de aperfeiçoamento que lhe são peculiares, e que demonstram terem sido elaboradas por indivíduos e/ou grupos dotados de invenção formal, mestria de ofício e fruição estética.
            Para dar um exemplo da complexidade que o problema oferece, e da necessidade de uma observação atenta do contexto social e natural em que os artesanatos ocorrem, é suficiente citar três faixas contemporâneas de representações da cultura material do povo.           
Nesta tentativa esquemática de procurar evidenciar a complexa tarefa de dar conta das diversidades culturais do país, o que desejamos naturalmente enfatizar é que os universos culturais devem ser entendidos como sistemas, um todo coerente, possuidores de códigos carregados de significados próprios.
            Voltando à nossa exemplificação veremos que numa primeira faixa estarão os objetos confeccionados e absorvidos por um mesmo segmento da população. Estão neste caso os ex-votos ou milagres do sertão nordestino, esculpidos até hoje em madeira. Como as carrancas de proa das embarcações sanfranciscanas de meados do século passado e início deste, os ex-votos tem finalidade exclusivamente ritual.
            Neste nível em que o artesanato é absorvido pelo próprio grupo que o produz, vamos encontrar ainda grande série de objetos onde a função da utilidade é indissociável da noção de beleza, a arte inseparável da vida. Estes testemunhos materiais encontram-se integrados ao espaço doméstico, ao espaço do trabalho rural, à ecologia local. As atividades que compreendem técnicas de produção como agricultura, a criação de animais, ou a pesca, e os artesanatos delas decorrentes, evidenciam vínculo estrito com a organização social e a economia local ou regional. Tal é o caso da louça utilitária do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, ou de Porto Real do Colégio, em Alagoas; dos covos para peixe do litoral do Estado do Rio, das selas de couro e cangas para animais do nordeste, sul, sudeste e centro-oeste, enfim, de um sem número de artesanatos tradicionais que, permitindo a invenção pessoal, guardam, por isso mesmo, "uma diferenciada uniformidade".                    .
            Numa segunda faixa estão, por exemplo, artífices pertencentes a comunidades ligadas, ou recentemente ligadas, a sistemas pré-industriais, com tradição do artesanato que exercem. Tem esses artífices, como denominador comum, no processo de comercialização das suas peças, a modificação do comprador. Este aparece agora ligado à indústria do turismo, já não é mais o usuário vicinal, regional. A alteração do pólo comprador ocasionou na produção destes artífices diversas modificações. No caso dos bonequeiros, figureiros e oleiras que trabalham com o barro, como em Caruaru (PE) ou no Vale do Paraíba (SP). Estas transformações se traduzem, num primeiro momento, por maior individualização formal, em contraposição à maior uniformidade de peças produzidas pela geração anterior.
            Numa terceira faixa estaria a produção ainda mais individualizada de Nhô Caboclo e Vitalino (Pernambuco), de um Antonio Poteiro (Goiás), de um G.T.O. (Geraldo Telles de Oliveira, Minas Gerais), comercializada em galerias de arte do Rio de Janeiro e São Paulo e destinada à clientela de alto poder aquisitivo. Tendo migrado para centros urbanos, e retornado ou não à própria terra, o fato é que estes indivíduos sofreram o impacto da civilização industrial.
            Liminares entre a cultura onde se formaram e a que consome a sua arte - em geral adquirida pelas pessoas da norma culta, com razoável poder aquisitivo das macro metrópoles - eles patenteiam participar de um processo de mudança enfatizado pelas migrações internas que todos realizaram, objetivado na sua individualizadíssima criação. No entanto, a leitura das suas produções, exatamente por se encontrarem entre, é acessível tanto à norma popular quanto à erudita. Longe de constituírem fenômenos isolados, exprimem a condição de vastíssimo contingente da população brasileira, envolvida no referido processo de mudança. A sua produção é expoente da situação desses grupos sociais, exatamente como a obra dos artistas "cultos" que souberam manter a sua integridade reflete a consciência e o inconsciente do seu meio. Participam; portanto, num mesmo pé de igualdade, de um mesmo momento histórico, a que apresentam uma contribuição de idêntica relevância, muitas vezes de superior qualidade expressiva à da norma culta.
            Evidentemente, sabemos dos perigos que encerram a sua valorização e a sua abordagem por nós. Constituem eles, presa fácil dos oportunismos de um mercado que descaracteriza rapidamente o nervo da sua particularíssima visão de mundo, e por conseguinte, da sua obra, nela interferindo com pressões antagônicas à sua auto-expressão, e transformando em objeto pitoresco para uma espécie de alto turismo cultural, paternalista, aquilo que significa expressão autônoma de coletividades marginalizadas. Isto, porém, longe de invalidar o nosso interesse pelo exame e valorização da sua extraordinária contribuição, até então avaliada como episódica e imaterial, mas que é representativa de fato de um processo histórico em progresso, vem conscientizar-nos mais ainda da nossa responsabilidade em relação aos valores que ela representa. Nossa intenção, ao procurarmos avaliar melhor essa contribuição, é a de oferecermos crescente entendimento do que ocorre no âmbito da criação visual no Brasil, tantas vezes abordado teoricamente, e sem o suporte da obra feita, realizada, concreta. .
            Retomando a questão ao nível da criação pós-urbana das populações marginalizadas, colocamo-nos numa posição de análise e de reconhecimento das suas linguagens, assim como de reivindicação de sua afirmação humana e social.
            Uma vez que é pouco praticável, no espaço de uma apresentação, analisar todos os artífices/artistas que integram a extraordinária coleção de Jacques Van de Beuque, abordaremos aqui, em caráter de amostragem, o trabalho de dois conhecidos mestres nordestinos: Vitalino e Nhô Caboclo.
            Em certo nível podemos apreciar a expressão e representação de Vitalino Pereira dos Santos como um registro estético e social de três grandes ritos de passagem: nascimento, casamento e morte. Seus batizados, suas mulheres de resguardo, são a crônica fiel do cenário rural onde ocorrem. O tema casamento aparece em diversos grupos: o cortejo nupcial, o casamento no mato. Este último vem aqui descrito pelas próprias palavras do artista, lembrando as narrações de sua mãe: "Naquele tempo não havia carro. Fulano vai casá tal dia! Era um festão! Era um estrondo o casamento daquele rapaz! Chegava àquela cavalaria. Ia chegando, de um em um, de dois em dois, se ajuntava trinta cavaleiros pra fazê aquela festa. A noiva, quando vinha pra rua, vinha na garupa do cavalo da testemunha. Quando voltava da rua pra casa, vinha na garupa do cavalo do noivo. Nesse tempo, só se casava de brim branco... " (Brim branco, o áspero brim do nordeste, de que fala João Cabral de Meio Neto, referindo-se à terra, que tão cedo abriga e veste os mortos ao ar livre).
            O casamento, além do enredo representado através do flagrante da noiva e noivo a cavalo, ou noivado a cavalo, como diz Zé Caboclo. É ainda figurado por Vitalino em outro grupo de acentuado hieratismo de composição. (Hieratismo comum a inúmeros momentos rituais da sua obra, como a briga de galos, a operação, e outros). Nesse, vemos o padre no centro de um círculo solene, composto por noiva, noivo e testemunha. Registre-se ainda a festa de casamento, onde em torno da mesa frugal se assentam os noivos, parentes e convidados, numa antiqüíssima representação da união entre um homem e uma mulher.
            Os ritos fúnebres de passagem apresentam também em Vitalino extraordinário valor documental e humano, como seria de esperar numa região onde Severino lavrador lavra " os roçados da morte: - Este chão te é conhecido (bebe-te desde menino)
            Vitalino chamou de Enterro na rede, Enterro no ataúde e Enterro no carro de boi aos grupos em que caracterizou a condição sócio-econômica do morto pela modalidade de transporte do corpo. Como nas suas demais composições, vê-se aí o registro, com ênfase afetiva, do acontecimento sobre o grupo. Nas expressões dos rostos, no pormenor gestual, sente-se a visão expressionista, dramática, do mestre do Alto do Moura.
            Além da sua importância, digamos estatística, na paisagem humana do nordeste, devemos considerar ainda outros aspectos do rito de passagem da morte, que também teriam influído na incidência da sua representação por Vitalino. Assinala Souza Barros "a alacridade festiva dos enterros de rede, explicada pelo isolamento que restringia os faros contactos sociais a enterros, trabalhos do eito ou colheitas em comum, além de feiras e festas de vilas ou centros administrativos. (...) Depois do velório e das excelências, com a chegada dos vizinhos afastados, armava-se quase um ambiente de festa.”.
            Ainda na área dos rituais, onde a ação social objetiva comunicação e evocação de poderes ocultos, que se pode situar o grupo do bumba-meu-boi. Ali, a figura mítica do boi assume dimensões sobrenaturais, ao mesmo tempo que se mantém fortemente vinculada ao contexto social da realidade.
            Evidencia-se nessa e em outras peças a importância assumida pelo boi na sociedade eminentemente agropastoril do nordeste: Boi transportando cana, a Vaquejada, Boi sendo morto a machado, Boi transportando o vivo e o morto - como um Caronte em barca rangedeira. Paralelo a essas observações, existe o grande fator da afetividade das pessoas do campo para com os animais, que chegam mesmo, em certos casos, a receber tratamento de comadre e compadre, sem serem jamais abatidos, morrendo de velhos.
            Rituais são também as figuras da bêbeda e do diabo, onde afiara o tema corrente, na literatura de cordel da região, do pacto com o Cão. Segundo Rollo May, o demoníaco, já identificado por Platão como Eros, é definido como qualquer função natural que tenha o poder de apossar-se de toda a pessoa. O tema do pacto demoníaco, que informa enorme setor da literatura popular entre nós, foi retomado por Guimarães Rosa em Grande Sertão: Veredas, obra-prima do romance universal, partindo, entre outras raízes, do temário regional.
            Ainda ligados ao domínio do sobrenatural estão os cangaceiros, que Vitalino tanto retratou e que no nordeste se aproximam, como figuras carismáticas, dos vultos de alcance messiânico do Padre Cícero, Frei Damião e outros místicos. Os cangaceiros aparecem ao nordestino do ambiente rural sob a luz divisória do bem e do mal, talvez mais como instrumentos cegos da justiça divina para recompor a ordem social, do que como infratores dessa mesma ordem. Tanto as fontes populares como obras eruditas, a exemplo do Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, atestam essa filosofia. Essa posição justifica o notório prestígio dos cangaceiros entre a população nordestina, refletida na figuração de Vitalino pela fisionomia mais simpática que ele Ihes atribui, se comparada à dos soldados. Os cangaceiros de Vitalino estão ainda longe de apresentar o tratamento deliberadamente grotesco, carregado de censura, que ele confere aos marginais da lei: ladrão de galinha e de cavalo; nêgo brigando com a polícia, de que falaremos mais adiante. Lampião a pé, Lampião a cavalo, Lampião viajando de noite, Lampião e Maria Bonita circulam no terreno do mito, solenes, dignificados. Os cangaceiros de Vitalino pertencem à coletividade e cavalgam nos chapadões do sagrado.
            Ainda no âmbito do mito vamos encontrar o Vaqueiro que virou cachorro, a Luta do Home com o Lubishome. As metamorfoses do humano em animal são freqüentes na literatura de cordel, devido ao seu forte enraizamento na crença popular.
            Para completar o quadro das vinculações de Vitalino e sua obra com o sagrado, lembramos que, segundo depoimentos dos seus contemporâneos Zé Caboclo e Zé Rodrigues, o mestre executava também ex-votos, constituindo, portanto, agente integrado do complexo cultural religioso local.
            Cumpre considerar também a profunda religiosidade de Vitalino, devoto do Padre Cícero. Essa devoção nos é revelada por ele próprio, no depoimento registrado por René Ribeiro: "Confiando em Deus e abaixo dele no Padre Velho". Fazia penitência, isto é, romaria a Juazeiro do Norte, e é francamente característica da religião popular nordestina a atitude afetiva de conservar a estatueta do Padim em oratório de barro, com porta de vidro, "porque guardadinho ele não sofre nem calor nem frio". Não é apenas por temor à punição, nem por chantagem com o celestial, que Vitalino age dessa maneira. Endossa também o seu comportamento a antiga intimidade do brasileiro com os santos, que tipifica o catolicismo no Brasil. A religião popular nordestina, embora se misture com a religião institucionalizada, não se filia a rigor a uma igreja. O prestígio dos sacerdotes, salvo exceções carismáticas como a do Padre Cícero ou de Frei Damião, não é grande. Seu papel como mediadores entre Deus e o crente aparece muito reduzido.
            A religiosidade de Vitalino refletiu-se paradoxalmente, em sua obra, pela ausência da representação de santos ou cenas sagradas, com exceção dos ex -votos. "Isso fica para os imaginário", declarou. Ora, pelas afirmações de Zé Rodrigues, vemos também que a arte deste - particularmente voltada para a iconografia católica - era criticada pela comunidade por se considerar pecado queimar, isto é, cozer no forno, a imagem do santo. Trata-se do mesmo sentimento para com o sagrado manifestado por Vitalino, ao proteger de calor e frio a figura do Padre Cícero.
            AIém dessa proibição, de ordem religiosa, a tônica da personalidade de Vitalino parece ter sido a do interesse pela conjuntura humana, pela crônica do real, do cotidiano. Tratava-se de um homem alegre, de notável senso de humor, que gostava de jogar sueca com os vizinhos, tocar na banda de pífanos e conversar com o seu público na feira.
            Esse comportamento se reflete nas peças Home foliando samba, Violeiros, Pastoril, Carrosel, e outras, inúmeras. Com o seu temperamento de realismo expressionista, compreende-se que fosse mais inclinado a representar situações humanas do que sob(ehumanas, preferindo o cenário terrestre aos eventos celestiais. Sua ética pessoal, no entanto, é a de um homem de bem, que fez a crítica social de ações marginais, como atestam os grupos A muié matando home com mão de pilão, Nêgo brigando com a puliça, Ladrão de bode, Ladrão de galinha, Ladrão de porco, Ladrão de cavalo.
            Nhô Caboclo (Manoel Fontoura, nascido em Águas Belas possivelmente na primeira década do século e falecido em 1976, no Recife) é um artista de extraordinária importância, cuja obra exige com urgência tratamento monográfico. Talvez integrasse de início a comunidade dos Fulniô, índios aculturados de Águas Belas, mas fez sempre grande mistério sobre suas origens e filiação: "Não conheci ninguém, nasci só". Nhô Caboclo começou "tirando peça de barro com Vitalino". Mas a sua grande produção foi feita à base de madeira e folha de ftandres. Declarava as peças de barro "mortas" porque "não se faz um lutador de espada de barro, não se faz uma engenhoca, engrenagem a vapor pra trabalhar no vento. Gosto de peça que bula, peça valente, peça braba. Peça manual". Nhô Caboclo começou a fazer peças manuais, isto é, com movimento, quando "assonhava uma engrenagem ou ia ao cine,ma". Sucessivamente flandieiro (funileiro), sapateiro, carpinteiro, ferreiro, Nhô Caboclo, segundo suas próprias palavras, povoou suas peças do caboclo Urubu ("um caboclo que nunca foi dominado"), do nêgo Tuim ("só tem dessa marca em Pedra do Buíque de Delmiro Gouveia"), dos caciques Jabu ("são das selvas"), de segundos tenentes, cabos, sargentos, capitães, de caboclos quatro-braços ("tem deles no mato, no estrangeiro, tanto faz correr em pé como em quatro pés. Eles têm quatro braços. Isso faz que ele quando é obrigado de brigar, nunca cansa. Qualquer serviço que for fazer, faz muito serviço. Se trabalhar com enxada, são duas enxadas. Se trabalhar com machado, são dois machados, se for brigar, são duas espadas, de qualquer maneira"). Há caciques presos, "que saltaram fora da lei", há o engenho da escravidão do nêgo cativo, "rodante pra imitar o rodeio do engenho da escravidão que rodeia. O rei ficava sentado aqui, estava lá, e aquele esqueleto ficava aqui. E o magote de nego que puxa abanando pra puxar aquele negócio pra moer cana lá do engenho". Há os caboclos antropofágicos: "O caboclo vai se ocupar de matar um boi ou um bode? Come uns aos outros. Faz um frejo, um assado, um sarufuiado no fogo da axuca no borralho".
            Torés, rachas, piscuins, equilibristas, balsas, vêm portanto confirmar suas palavras:
"Tudo que eu faço tem história, história". Como vemos, o universo de Nhô Caboclo é radicalmente diverso do mundo realista e descritivo de Vitalino.     Em Nhô Caboclo aflora o forte simbolismo do inconsciente, ancorado sem dúvida na sua observação do cotidiano.
No depoimento que deu sobre a sua criação, é evidente a preocupação com a organização do trabalho, e com as estruturas sociais da ordem e da desordem. O que nós chamaríamos de sua "escultura" em madeira, a que ele inventivamente incorpora retalhos de pano de cor, fios de algodão, folha de flandres, ou mesmo objetos como facas, como nas propostas das vanguardas das artes visuais "eruditas", tende geralmente à simetria e mais à linearidade de um grafismo de volumes do que à compactação das formas.
            Outro importantíssimo dado para a apreciação do seu trabalho é a insistência na oposição entre peças "vivas" e peças "mortas". Sabemos por ele mesmo que se iniciou na arte tirando peça de barro com Vitalino. Mas a preocupação com o movimento, por parte deste sertanejo que nunca soube quem foi Alexander Calder, levou-o a deixar o barro pelo que denomina de "engrenagens" ou "peças manuais", isto é, acionadas pela mão do homem. Há referência expressa de Nhô Caboclo a sonhos e idas ao cinema, bem como a casas de farinha, que lhe teriam suscitado o desejo de mover as suas engrenagens.
            A intervenção do motor, da eletricidade em meios rurais, ou o seu impacto em indivíduos procedentes de culturas pré-industriais, tem sido responsável pelo aparecimento, no âmbito da arte do povo, de diversas representações esculpidas e dotadas de movimento. Para citar, dois exemplos, de artistas que hoje têm idade aproximada da de Nhô Caboclo, lembramos os casos de Antonio de Oliveira. Que mostra o seu universo no morro da Urca na cidade do Rio de Janeiro, e de Manuel Josete Molina, da cidade de Santos, São Paulo.
            Sendo que estes dois chegaram a acoplar aos seus personagens esculpidos e pintados uma bricolagem de roldanas que, diretamente ligada a um pequeno motor, imprime gestos individualizados e sincrônicos às suas centenas de bonecos.
            Tudo isto vem comprovar que o indivíduo criador que produz o que se denomina de arte do povo não é a-histórico. Muito pelo contrário, sem abandonar o legado tradicional recebido do seu grupo cultural, ele participa e exprime contemporaneamente em seu trabalho, da mesma forma que o artista erudito, as mudanças que ocorrem em seu meio, enriquecendo com elas a sua auto-expressão, porta-voz, como é, da complexidade e da profundidade de uma experiência coletiva.


[1] Este artigo foi escrito para apresentar as coleções de arte popular brasileira, de Jacques Van de Beuque, em exposições com curadoria do colecionador e que itinerou pelo Brasil, todo tendo sido a primeira grande exibição pública dessas coleções depois da mostra realizada em 1976 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.
[2] Lélia Coelho Frota é escritora, historiadora da arte. Integra a União Brasileira de Escritores, a Associação Brasileira de Antropologia e a Associação Brasileira de Críticos de Arte. Autora, entre outros livros, do “Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro” (Aeroplano, 2005).

Nenhum comentário:

Postar um comentário