Uma "guerra comunicacional" está sendo travada na Venezuela desde a eleição de Hugo Chávez como presidente da república, em 1998. E não tem data pra acabar. Quem me dá esse diagnóstico político do país não é nenhum respeitado sociólogo ou analista venezuelano, mas um jovem de 23 anos chamado Robert Vinache. "Os canais de televisão estão atacando a revolução, e ter o poder de informar o povo sobre o que realmente está acontecendo é uma grande responsabilidade."
Foto: Tadeu Breda/RBA)
Robert é um jovem alto e magro, com a fala tão nervosa que come mais letras do castelhano do que costumam fazer os caraquenhos. Nos encontramos junto a alguns de seus colegas na Escuela de Medios y Producción Audiovisual (Empa) de Caracas às vésperas do carnaval. Todos são provenientes de bairros pobres da capital e tiveram a chance de aprender um ofício televisivo – câmara, técnico de som, produção, direção – gratuitamente depois que a prefeitura da cidade decidiu montar um canal-escola em 2006.
Atualmente, a Empa está subordinada ao Ministério de Informação e Comunicação e recebe 65 alunos por trimestre – dos quais uns 55 concluem o curso. A ideia é que saiam dali aptos a trabalhar em qualquer meio de comunicação audiovisual, seja rádio ou televisão, especialmente nas emissoras mantidas pelo Estado venezuelano.
Nos 14 anos da revolução bolivariana impulsionada por Hugo Chávez, os canais públicos se proliferaram na tevê aberta. A Ávila TV é um deles – e é justamente em suas instalações que se encontram as salas de aula e os equipamentos da Empa. "Somos o primeiro e único canal-escola público e gratuito da Venezuela, e talvez de toda a América latina", define Yajaira González, diretora de formação do instituto. "Nosso propósito aqui é ensinar a fazer televisão com um grande vínculo com a comunidade. Por isso, além da capacitação técnica, os estudantes também passam por uma formação política. Queremos fazer uma tevê socialista", resume.
A Empa e a Ávila TV são apenas dois dos muitos braços que o governo venezuelano – e seus aliados estaduais e municipais – passaram a financiar e incentivar após a ascensão de Chávez. Como Robert e seus amigos fizeram questão de recordar durante nossa conversa, em 2002 o presidente sofreu um golpe de estado que, frisam os jovens, foi essencialmente comunicacional. Dez anos antes, em 1992, o comandante fora protagonista de uma insurreição – e enfrentou os mesmos problemas para transmitir sua mensagem aos cidadãos. "A polícia matava as pessoas na rua e a televisão não dizia ao povo o que estava acontecendo", comentam, em coro.
"É bastante provável que, pela idade, nenhum deles tenha acompanhado ao vivo a deposição de Chávez, a posse do golpista Pedro Carmona e o bloqueio informativo da grande mídia. Mas essa é uma história conhecida dentro e fora da Venezuela – e, por isso, não deveria surpreender ninguém que o governo chavista adote medidas práticas para evitar um novo boicote televisivo. A criação de canais estatais foi uma delas.
(Foto: Tadeu Breda/RBA)
Aparato estatalAtualmente, o chamado Sistema Nacional de Meios Públicos, subordinado ao Ministério de Comunicação e Informação, abriga uma agência de notícias (AVN), três emissoras de rádio (RNV, Radio del Sur e Rádio Mundial), cinco tevês (Telesur, TVes, Vive, VTV e ANTV) e dois jornais diários (Ciudad Caracas e Correo del Orinoco). Essa estrutura permite ao governo fazer frente ao que consideram uma manipulação imposta ao povo pelos meios comerciais, como Globovisión, Venevisión, La Tele e Televen, além da extinta RCTV.
Mas a aposta não é apenas política – é também cultural. "A maioria dos que estudam na Empa querem uma transformação na maneira de transmitir informação, sem esses estereótipos predeterminados que vêm do exterior", explica Peter Sarmiente, de 24 anos, morador de Petare, leste da capital, um dos bairros mais violentos de Caracas.
Suas palavras são complementadas por Josep Villavizar, oriundo do 23 de Enero, outra comunidade pobre a oeste da cidade.
"Nós, pessoas do bairro, queremos transmitir do nosso jeito as coisas que vivemos. Nossa vida não é igual a dos famosos, mas é só isso que mostra a tevê venezuelana", conta. Enquanto escrevo esse texto, vejo na tevê um noticiário dominical que dedicou alguns de seus minutos para falar do filho da cantora italiana Laura Pausini, que acaba de nascer, e da presença do ator norte-americano Will Smith no carnaval do Rio de Janeiro.
"Quando tem pessoas da favela é porque morrem ou porque são mortas. Sempre a mesma coisa." Aos 22 anos, Josep também tem vontade de trabalhar em meios de comunicação que mostrem, na sua visão, o que realmente está acontecendo nas periferias do país graças à revolução: as melhorias que o governo tem propiciado aos mais pobres. "Graças à manipulação, nada disso é mostrado. Se entramos para trabalhar nos meios de comunicação, podemos difundir o que queremos, com interesse social."
A construção de uma infraestrutura oficial de rádio e tevê – e de uma escola para formação de seus quadros técnicos – é apenas uma das facetas da sacudida que Hugo Chávez vem dando no panorama da comunicação venezuelana. A outra, um pouco mais oculta, ocorre no interior das comunidades, não depende diretamente da administração pública e tem alcance apenas local. São as rádios – e até emissoras de televisão – comunitárias.
Voz do povo
Visitei apenas duas, em dois bairros da periferia caraquenha, mas são centenas e se espalham por todo o país. Em geral, se utilizam da estrutura dos Infocentros, um dos projetos do Ministério de Ciência e Tecnologia que até agora espalhou pelo país 866 salas com computadores para alfabetizar digitalmente os venezuelanos mais pobres. Nos Infocentros, jovens e adultos aprendem não só a navegar pela internet, como também a manipular programas de edição de áudio e vídeo, que viram programas nas ondas de rádios comunitárias do bairro.
"Tudo da comunidade. Se eles quiserem e se organizarem, nós damos as condições", diz Joel Alfonzo, coordenador geral da Fundação Infocentro, projeto nascido no ano 2000 e fortalecido após o golpe de 2002. "Os funcionários são eleitos pela própria comunidade, passam por capacitação e voltam para trabalhar no bairro. Eles conhecem melhor a realidade local e podem colocar com maior eficiência as ferramentas tecnológicas a serviço da população."
Com o tempo e a vontade da periferia em levantar sua voz, nasceu dentro dos Infocentros um projeto chamado Brigadas Comunicacionales, que, explica Alfonzo, "oferece cursos de tudo o que tem a ver com comunicação popular: rádio, tevê, grafiti, fotografia, jornais comunitários etc. São 63 em todo o país." Em Caracas existem dois núcelos das brigadas, e uma delas fica no bairro La Vega, favela ao sul da cidade. No alto do morro, depois de 30 minutos numa caminhonete que sobe ininterruptamente pelas ruas estreitas do bairro, entre muros com fotos e pixações em louvor a Chávez, há um Infocentro – e depois do Infocentro, mais nada além de mato e montanha.
Uma pequena porta guarda um dos tesouros da comunidade: um transmissor de televisão. Fica dentro de uma salinha minúscula refrigerada por ar condicionado. Não foi o governo quem o cedeu nem instalou, mas sim os próprios moradores. "Uns companheiros de Lara [outro estado do país] construíram o equipamento com recursos próprios e venderam pra gente", conta Mercedes Galarraga, 35 anos. "Mas nosso sinal ainda é ilegal." Se o governo não apoia pelo menos não atrapalha – tanto que o transmissor está numa instalação estatal.
Descolonização
Mãe de duas filhas, costureira e "faz-tudo", há seis anos Mercedes entrou num projeto criado em La Vega por alguns companheiros do bairro, inclusive um jovem que viria a ser seu marido. Trata-se de uma produtora audiovisual que funciona em cooperativa e tem o sugestivo nome de Calle y Media – Rua e Mídia, em espanhol. "Começamos a trabalhar em 2004, no dia 12 de outubro, quando derrubamos a estátua de Cristovão Colombo que ficava numa praça do centro de Caracas", conta Marcelo Andrade, 30. "A cooperativa foi a maneira que encontramos de produzir conteúdos que podem ser úteis à comunidade."
De lá pra cá, a Calle y Media já realizou ao menos nove documentários, alguns em parceria com tevês estatais, como Telesur e Vive. Um dos filmes que mais orgulha o casal é o Rostros de la Vega, que conta a história da quebrada onde vivem pela voz – e, claro, rostos – dos velhos moradores do bairro. "Agora estamos trabalhando num roteiro de ficção", conta Mercedes. "É nosso próximo desafio." Mas não o único. Junto a outros coletivos espalhados por Caracas, o pessoal envolvido na Calle y Media está batalhando para criar um canal comunitário que transmita para todo o país.
O nome não poderia ser diferente: Barrio TV, sendo que barrio é como os venezuelanos se referem à favelas ou comunidades pobres de Caracas. Com bastante improviso, a iniciativa já está no ar em La Vega graças ao transmissor rebelde – e sobre ele um aparelho de dvd – instalado no Infocentro. Conseguimos sintonizá-lo numa das casas do bairro e vimos uma reportagem sobre motoqueiros. Os protagonistas são morenos e falam em gíria, como as pessoas do lugar.
É uma diferença tremenda com o que se vê nos canais comerciais da Venezuela, predominantemente povoados por pele branca, cabelos loiros e, se possível, olhos claros – signos do velho conhecido padrão de beleza europeu. "Por isso digo que, como presidente, Chávez tem sido um professor para mim. Me fez dar conta de coisas que antes ignorava, como o fato de sermos uma colônia", reflete Marcelo. "Chávez me fez entender que, daqui, temos que inventar nossas próprias coisas."
Fonte: Rede Brasil Atual
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