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sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

A palheta de Velázquez - por Mazé Leite


Detalhe da obra As Meninas,
onde Velázquez se retratou
Aqueles que pintam, hoje em dia sabem a quantidade enorme de cores colocadas à disposição de qualquer palheta de qualquer um, seja estudante, seja profissional. Para cada pigmento vermelho, uma infinidade de variações que chegam às minúcias de cores chamadas de “tons de pele”; para cada amarelo, variações que vão do clássico amarelo de Nápoles, passando pelos cadmios e pelos cromos, sendo que marcas como a Winsor & Newton tem seus próprios amarelos. Mas o que pode ser uma grande facilidade para os pintores de hoje, pode se transformar nos piores pesadelos - ou nas piores obras - se o encanto consumista por tanta variedade se sobrepuser ao sempre bom e necessário costume do estudo pessoal. Todo artista necessita conhecer seus materiais de trabalho, e o conhecimento técnico deles tem grande responsabilidade no êxito de sua arte.


Ariano Suassuna retratado por mim,
num exercício com a Palheta de Apeles
(Branco, Amarelo Ocre, Vermelho, Preto),
óleo sobre tela, 40x60cm, 2014
 
Tenho feito alguns estudos com palheta reduzida, ou seja, pintando com poucas cores. Fiz 3 pinturas usando a chamada "Palheta de Apeles", o pintor grego da antiguidade que usava somente Amarelo Ocre, Vermelho, Branco e Preto. Comprovei que muito se pode conseguir com pouco, pois o que importa é o aprendizado da manipulação das cores, o domínio técnico das misturas. Mas como continuo intrigada com esse assunto, resolvi pesquisar como pintava um dos meus artistas preferidos: Diego Velázquez, o pintor espanhol.

Na minha busca por informações, fui ao site do Museu do Prado. Lá encontrei textos produzidos por Carmen Garrido Pérez, uma das funcionárias do museu. Ela é a chefe do Gabinete de Documentação Técnica, doutora em História da Arte pela Universidade Autônoma de Madrid e especialista em documentação físico-química para investigações técnicas sobre pinturas históricas. Escreveu vários livros e textos sobre o assunto. Um desses livros é o “Velázquez: técnica y evolución”, que se encontra esgotado. Mas encontrei também artigos publicados por ela, inclusive em PDF, que me trouxeram informações muito úteis, as quais compartilho aqui.

Uma das frases que Carmen repete em seus artigos, resume muito sobre o pintor espanhol. Diz ela: “Velázquez é um artista que pensa muito e pinta pouco, que descarta de sua arte o supérfluo para ficar sempre com o que é essencial”. E demonstra como ao longo de toda a sua vida o pintor sevilhano não usou mais dos que 16 cores em suas palhetas.

O bufão Dom Sebastião de Morra, 1645
Esta informação foi dada após muitos anos de estudos realizados sob o patrocínio do Museu do Prado, em seus laboratórios, a partir de experiências com Raios X e fotografias com luz infravermelha, além de outros instrumentos de medição científicos. O Gabinete de Documentação Técnica do Museu vem acumulando um grande arquivo, diz Carmen, de mostras de telas antigas e mais modernas e têm sido feito estudos muito aprofundados em obras de Zurbarán, Murillo e Velázquez.

Os dados recolhidos até agora, por esses estudos, abarcam cerca de 30 anos da carreira de Diego Velázquez, ainda faltando mais estudos sobre as etapas em que ele viveu em Sevilha e em sua segunda viagem à Itália. Mas, diz Carmen, as cores usadas por ele variaram pouco de um quadro a outro, incluindo o período em que residiu em Roma, de 1629 a 1631. Ela aponta ainda que há uma similaridade nos materiais artísticos usados por espanhois e holandeses, aproximando muito a prática técnica de Rembrandt com a de Velázquez.

As cores de Velázquez

Nos estudos de Carmen Garrido, baseados em micro-amostras de telas analisadas mediante dispersão de Raios X, ela identificou todas as cores que Velázquez teria usado ao longo de sua vida:

1 - Branco de Chumbo
2 - Amarelos - à base de Terras de Óxido de Ferro, Chumbo, Estanho, Antimônio e que hoje correpondem a: a) AMARELO DE CADMIO LIMÃO - b) AMARELO DE NÁPOLES (só usou uma vez) - c) AMARELO OCRE
3 - Vermelhos - foram detectados 3 nas análises, 01 de base de metal e 02 de terra: a) VERMELLION (base de Cinábrio, metal pesado de Sulfureto de Mercúrio) - hoje: VERMELHO DE CADMIO - b) TERRA DE SEVILHA - hoje: VERMELHO INGLÊS (Óxido de Ferro) - c) TERRA DE SENA QUEIMADA - base: Óxido de Ferro Laranja
4 - Marrons: a) TERRA DE SOMBRA NATURAL - b) TERRA DE SOMBRA QUEIMADA (bases: Óxido de Ferro e Manganês)
5 - Azuis - raramente Velázquez usou o Ultramarino, pois o preço do Lapislázuli era muito caro, pedra vinda do Afeganistão: a) AZUL DA PRÚSSIA (ou Azurita, base: Cianureto de Ferro) - b) AZUL DE COBALTO (Óxido de Cobalto ou de Alumínio) - c) AZUL ULTRAMAR
6 - Pretos - vários pretos extraídos da combustão de ossos e outros materiais. Hoje usamos o Preto de Marfim (Ivory Black)

Mais tarde ele também passou a usar um Terra Verde.
As meninas, 1656

No quadro mais conhecido deste pintor espanhol, se pode ver uma de suas prováveis palhetas, formada por 9 cores: Branco de Chumbo, Laranja (Vermellion de Cinabrio), Vermelho (Terra vermelha de Sevilha), Amarelo Ocre, Carmin, Sombra Queimada, Sombra Natural, Azul da Prússia, Preto de Fumo.

Entre seus pigmentos, Velázquez não introduziu substâncias químicas novas, e não aparece nenhum pigmento que ele já não tivesse usado, continua Carmen: “Sin embargo, en su manipulación de los pigmentos, se mostró un pintor ingenioso en un momento en que las novedades eran incontables a través de Europa”. E diz mais: “nos parece que uno de los aspectos más fascinantes de las prácticas de Velázquez fue su desviación de la teoría autorizada de su tiempo”.

Carmen Garrido diz que, salvo algumas exceções, Velázquez utilizou os mesmos pigmentos ao longo de toda a sua carreira, mudando apenas a maneira de misturá-los e de aplicá-los. Ele era “capaz de crear con sólo cinco o seis pigmentos una obra maestra”.


Menipo, 1639
As investigações técnicas sobre a obra de Velázquez no Museu do Prado têm revelado muito sobre a maneira de trabalhar de um dos maiores gênios da pintura mundial. A partir desses estudos, se tem visto que Velázquez escolheu cuidadosamente cada um dos materiais que usou para pintar, tanto por sua qualidade como por sua aplicação em cada momento. Assim, na medida em que sua técnica vai evoluindo, seus suportes e preparações de pigmentos também vão se modificando. “Los pigmentos, más o menos los mismos durante toda su carrera, irán variando en sus moliendas, en sus mezclas y en la manera de ser aplicados, ya que la evolución de su trazo así lo determina”, aponta Carmen.

Na época de Velázquez já era habitual para os pintores o uso das telas. Dependendo da etapa em que estava, ele escolhia como tecido o Linho ou Cânhamo com densidades diferentes. Ele sabia que estas texturas diversas alteravam a visão final da obra. De acordo com os efeitos óticos que ele desejasse, selecionava os suportes (telas), os pigmentos, a técnica e os recursos oportunos para conseguir materializar suas ideias.

Carmen Garrido, com sua experiência de décadas de trabalho em museus, diz que a maioria dos quadros que hoje vemos nesses espaços culturais já foram reentelados. Mas entre as obras de Velázquez do Museu do Prado existem oito com seus suportes originais, tal como o pintor os fez, o que possibilita uma grande quantidade de detalhes sobre seus métodos de trabalho, incluindo as pinceladas de provas, as costuras de pedaços de tecido adicionados, e as imprimações. “Además, estas pinturas conservan su capa pictórica en un estado próximo al de su ejecución, como puede verse en ‘La coronación de la Virgen’ o en el ‘Mercurio y Argos’”.

Uma vez colocado o tecido no chassi de madeira, era feita a preparação do tecido (muitas com cola de origem animal, para proteger o tecido da química dos pigmentos) e a imprimação. O objetivo da imprimação é o de servir de “fundo ótico” para o quadro e aos efeitos coloridos da pintura. Segundo Francisco Pacheco (pintor, escritor e sogro de Velázquez), na primeira etapa de sua carreira ele utilizava “Terra de Sevilha”, um Terra de tom ocre médio, como imprimação.

Já em Madrid, para onde se mudou em 1623, nosso pintor abandona os materiais sevilhanos e começa a trabalhar com um tecido com diferentes tipos de densidades e um trançado mais fino. Sobre ele, aplicava uma dupla camada de base, a primeira na cor branca e depois uma imprimação feita com Terra Vermelha, chamada “tierra de Esquivias” pelos pintores da escola madrilenha. Mas ele também adotou a forma italiana das preparações de tela brancas mais ou menos manchadas com cinzas ou em ocre, o que dava uma combinação perfeita para conseguir os efeitos de superfície, de luminosidade dos fundos e de suas cores.

Ainda segundo Carmen Garrido Pérez, durante a primeira viagem à Itália, Velázquez pintou dois grandes quadros: “A túnica de José” e “A Forja de Vulcano”. O primero, que se encontra no Real Monasterio del Escorial, é uma obra de experimentação com relação às telas (tela napolitana pavimentosa), os fundos (Terra napolitana) e a introdução de alguns pigmentos, como o Amarelo de Nápoles, que Velázquez não usou nunca mais. 


A Forja de Vulcano (1630), cuja imprimação
Velázquez fez só com Branco de Chumbo
Mas foi em “A Forja de Vulcano” que o pintor encontrou o caminho por onde seguirá desenvolvendo sua pintura nos anos posteriores. Sua preparação, continua descrevendo Carmen, foi aplicada com uma espátula e o Branco de Chumbo substituiu as imprimações anteriores feitas com os Terras. O Branco de Chumbo é muito opaco e denso, criando com isso um efeito ótico muito luminoso, observa ela. Velázquez dava muita importância a esses fundos bem preparados, o que se pode ver através desses exames radiográficos que mostram a evolução do pintor, tanto com os materiais como com a forma de aplicá-los, o que lhe dá uma identidade pessoal.

Carmen também observou, a partir de seus estudos técnicos, que salvo uma ou outra exceção, Velázquez nunca volta atrás em sua evolução. Quando adota um novo tipo de tela, algum material ou uma forma concreta de aplicá-los, “deixa de utilizar o anterior”. Por sobre as imprimações, ele fazia um esboço com poucas linhas para situar a composição, que também apareceu após os exames com reflectografia infravermelha. Além disso, ele "pinta siempre a la “prima”, aunque en su mente ha desarrollado con anterioridad la idea de lo que quiere llevar al lienzo. Si algún detalle no le satisface, lo corrige superponiendo el cambio en su trabajo directo sobre el cuadro”.

O espelho de Vênus, 1650
A pesquisadora espanhola também observa que os pintores do século XVII fabricavam suas cores misturando pigmentos de origem orgânica, como as lacas, ou os de origem inorgânico, como os minerais, com aglutinantes proteicos e substancias oleaginosas. As moagens e as misturas eram feitas nos ateliês,  procurando sempre a máxima estabilidade dos materiais. Velázquez sempre empregou pigmentos de boa qualidade e óleos preparados e depurados. Em vista desse cuidado, suas pinturas, apesar do tempo passado, não amarelaram e nem escureceram em excesso, conservando sua transparência e colorido. Em suas misturas, a proporção de aglutinantes como colas ou ovos, e dos óleos, eram determinadas pelas transparências que ele queria alcançar. 

A pintura de Velázquez é resultado “de un largo proceso intelectual”, afirma a pesquisadora. “Cada vez, con menos materia hacía más. Pensaba mucho y pintaba poco, veía el mundo con ojos nuevos y sólo una técnica original como la suya puede transmitirnos su original visión de las cosas, por esto es un gran innovador del arte de la pintura”. 

Como disse Rafael Mengs, no século XVIII, “Velázquez não pintava com os pincéis, pintava com a intençao”. Era um pensador, sobretudo.


Cores prováveis usadas por Velázquez, em sua denominação atualizada (o Branco de
Chumbo foi substituído pelo de Titanio, por causa da alta toxicidade do pigmento,
assim como hoje em dia é mais usado o Preto de Marfim. Os Cadmios são pigmentos
mais modernos, mas equivalentes aos usados no passado)

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