O ensino está precário porque os professores de hoje são malformados,
despreparados e ultrapassados. Quem nunca se deparou com esse discurso?
Repetido em unanimidade pelos veículos de comunicação, esse enunciado
contribui para a construção de uma imagem pejorativa do docente perante a
sociedade e o culpa pelas deficiências do sistema de ensino. Além
disso, a cobertura jornalística sobre educação feita no Brasil ignora
temas mais complexos e o embate profundo de ideias.
É o que aponta o estudo “Quando o professor é notícia? Imagens de professor e imagens do jornalismo”, desenvolvido pela pesquisadora e jornalista Katia Zanvettor Ferreira como tese de doutorado para a Faculdade de Educação da USP. Na pesquisa, Katia investigou como notícias e reportagens da mídia brasileira interpretam e constroem uma representação do professor e de sua atuação. Segundo ela, foi possível observar uma predominância de discursos depreciativos, nos quais o principal argumento pró-qualidade do ensino aparece como a substituição dos professores atuantes.
“Os textos jornalísticos fazem uso de bandeiras legítimas e históricas da classe docente, como o reconhecimento de seu papel profissional, a valorização da carreira e aumento de salários, e as distorcem. Falam que a docência precisa ser valorizada, porém, não com os professores que temos, mas com outros mais qualificados, bem formados, jovens, que estão com garra para mudar as coisas. Em outras palavras, é uma valorização da carreira desvalorizando os profissionais que estão nela”, explica. Em contrapartida, há uma sobrevalorização do jornalista, que se coloca como um bom avaliador do professor. “A imprensa faz juízo de valor ainda que não seja essa a sua tarefa”, diz.
Para Sueli Cain, diretora acadêmica do grupo educacional Weducation, controlador, entre outros, dos colégios Mater Dei, Internacional Ítalo-Brasileiro e Internacional Vocacional Radial, o professor é retratado pela mídia como um profissional que até tem força de vontade, mas não possui formação adequada para exercer sua profissão. Assim, ele é causador em parte da deficiência educacional dos alunos. “Há projetos que valorizam o professor na mídia, porém são poucos. Geralmente, o professor é mostrado como profissional mal preparado, que não consegue manter o nível de suas aulas por excesso de trabalho e que, por esses motivos, ajuda a educação a ir à bancarrota”, diz.
Ao ignorar a realidade do complexo universo educacional brasileiro, a mídia reproduz um discurso preconceituoso, baseado no senso comum. É o que acredita Cibele Racy, diretora do EMEI Guia Lopes, em São Paulo: “Se é certo que a educação precisa se oxigenar, é certo também que não podemos descontextualizar a figura do professor ou atribuir-lhe o ônus de uma série de equívocos historicamente promovida pelas gestões públicas ou a ausência de políticas sérias que visem a valorização desses profissionais”.
Para a diretora, novelas e noticiários, entre outros produtos midiáticos, fazem um desenho daquilo que seria um bom ou mal profissional da educação. “Se, por um lado, as professoras primárias das novelas atribuem-se características angelicais e pouco profissionais, baseadas na ideia de que a professora seria uma segunda mãe ou aquela que trabalha por amor, por outro, os minutos dedicados à realidade desses profissionais dividem-se entre colocá-los como vítimas de um contexto hostil ou como protagonistas de distúrbios comportamentais bárbaros, criminalizando-os”, diz Cibele.
Valdir Heitor Barzotto, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e cocoordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Produção Escrita e Psicanálise, destaca que outro chavão reproduzido pela imprensa é aquele que diz que os professores bons são aqueles que ganham bem e que foram trabalhar em outras coisas, pois só os ruins, que se sujeitam a trabalhar por salários baixos, permanecem na escola. “A gente tem tentado debater isso porque, afinal, não há nada que sustente essa tese. A mídia não procura um professor da escola básica para falar sobre assuntos sérios, é sempre para expô-lo como testemunha da baixa qualidade da escola”, afirma.
Isso porque o jornalista deixou de usar o professor como fonte. “Em vez de ouvir o docente que tem muito a dizer sobre seu trabalho, procuram-se as secretarias de Educação, os dados oficiais, as organizações não governamentais ou então os professores-pesquisadores das universidades públicas”, diz Katia. Para Sueli, isso acontece porque a mídia não acredita em docentes que não tenham títulos e que não ministrem aulas em escolas consideradas de primeira linha. “Os artigos jornalísticos sobre educação são produto de entrevistas com especialistas que não estão, porém, em salas de aula. Temos realidades muito diferentes em escolas do mesmo bairro, que dirá de estados e regiões”, diz. É preciso lembrar, no entanto, que muitos professores e diretores temem ser punidos pelo que dizem à imprensa e a maioria precisa de autorização das secretarias para ser entrevistados, o que reforça o caráter oficial de suas declarações.
Para os especialistas, o retrato do docente na imprensa só é positivo quando ele é o “professor nota 10”. “É aquele professor que faz tudo certo, ganha prêmios, um missionário que precisa abrir mão de tudo, sacrificar-se pelo ofício”, explica Katia. O problema desse outro extremo, segundo Valdir, é que esse profissional é desinteressante para o resto da comunidade docente.
Formação ou informação
No estudo, Katia ainda observou que o discurso pejorativo sobre o professor acaba sendo assimilado e reproduzido pelo próprio docente. Essa situação contribui para que o professor permaneça com uma constante sensação de falta, de má formação. “Em tempos de globalização, me diz um profissional que precisa ser mais bem preparado, se atualizar? Não é uma particularidade do professor, é uma característica da contemporaneidade. Mas a cobrança recai sobre ele”, diz.
Valdir defende que o problema é mais profundo: “Fortalecer um discurso de má formação ajuda a vender cursos de capacitação, por exemplo. Logo, um professor eternamente malformado é um negócio”. Ele lembra que a estratégia para aprimorar a qualidade do ensino adotada pelas redes costuma perpassar esse ponto. “O discurso do governo para resolver os problemas da educação é sempre o mesmo: comprar computadores, oferecer cursos de capacitação. A educação é um mercado interessante e para justificar a compra é preciso, antes de tudo, desqualificar na mídia o agente da formação”, diz.
Um caminho para a escola reverter esse quadro é divulgar o trabalho dos professores, aproximando-o dos órgãos públicos e da sociedade. “Se a mídia tem o poder de manipular a opinião pública, a escola não tem outra saída senão abrir suas portas, expondo-se como ponto de disseminação de conhecimento e cultura”, diz Cibele. •
Publicado na edição 55, de janeiro de 2014
É o que aponta o estudo “Quando o professor é notícia? Imagens de professor e imagens do jornalismo”, desenvolvido pela pesquisadora e jornalista Katia Zanvettor Ferreira como tese de doutorado para a Faculdade de Educação da USP. Na pesquisa, Katia investigou como notícias e reportagens da mídia brasileira interpretam e constroem uma representação do professor e de sua atuação. Segundo ela, foi possível observar uma predominância de discursos depreciativos, nos quais o principal argumento pró-qualidade do ensino aparece como a substituição dos professores atuantes.
“Os textos jornalísticos fazem uso de bandeiras legítimas e históricas da classe docente, como o reconhecimento de seu papel profissional, a valorização da carreira e aumento de salários, e as distorcem. Falam que a docência precisa ser valorizada, porém, não com os professores que temos, mas com outros mais qualificados, bem formados, jovens, que estão com garra para mudar as coisas. Em outras palavras, é uma valorização da carreira desvalorizando os profissionais que estão nela”, explica. Em contrapartida, há uma sobrevalorização do jornalista, que se coloca como um bom avaliador do professor. “A imprensa faz juízo de valor ainda que não seja essa a sua tarefa”, diz.
Para Sueli Cain, diretora acadêmica do grupo educacional Weducation, controlador, entre outros, dos colégios Mater Dei, Internacional Ítalo-Brasileiro e Internacional Vocacional Radial, o professor é retratado pela mídia como um profissional que até tem força de vontade, mas não possui formação adequada para exercer sua profissão. Assim, ele é causador em parte da deficiência educacional dos alunos. “Há projetos que valorizam o professor na mídia, porém são poucos. Geralmente, o professor é mostrado como profissional mal preparado, que não consegue manter o nível de suas aulas por excesso de trabalho e que, por esses motivos, ajuda a educação a ir à bancarrota”, diz.
Ao ignorar a realidade do complexo universo educacional brasileiro, a mídia reproduz um discurso preconceituoso, baseado no senso comum. É o que acredita Cibele Racy, diretora do EMEI Guia Lopes, em São Paulo: “Se é certo que a educação precisa se oxigenar, é certo também que não podemos descontextualizar a figura do professor ou atribuir-lhe o ônus de uma série de equívocos historicamente promovida pelas gestões públicas ou a ausência de políticas sérias que visem a valorização desses profissionais”.
Para a diretora, novelas e noticiários, entre outros produtos midiáticos, fazem um desenho daquilo que seria um bom ou mal profissional da educação. “Se, por um lado, as professoras primárias das novelas atribuem-se características angelicais e pouco profissionais, baseadas na ideia de que a professora seria uma segunda mãe ou aquela que trabalha por amor, por outro, os minutos dedicados à realidade desses profissionais dividem-se entre colocá-los como vítimas de um contexto hostil ou como protagonistas de distúrbios comportamentais bárbaros, criminalizando-os”, diz Cibele.
Valdir Heitor Barzotto, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e cocoordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas, Produção Escrita e Psicanálise, destaca que outro chavão reproduzido pela imprensa é aquele que diz que os professores bons são aqueles que ganham bem e que foram trabalhar em outras coisas, pois só os ruins, que se sujeitam a trabalhar por salários baixos, permanecem na escola. “A gente tem tentado debater isso porque, afinal, não há nada que sustente essa tese. A mídia não procura um professor da escola básica para falar sobre assuntos sérios, é sempre para expô-lo como testemunha da baixa qualidade da escola”, afirma.
Isso porque o jornalista deixou de usar o professor como fonte. “Em vez de ouvir o docente que tem muito a dizer sobre seu trabalho, procuram-se as secretarias de Educação, os dados oficiais, as organizações não governamentais ou então os professores-pesquisadores das universidades públicas”, diz Katia. Para Sueli, isso acontece porque a mídia não acredita em docentes que não tenham títulos e que não ministrem aulas em escolas consideradas de primeira linha. “Os artigos jornalísticos sobre educação são produto de entrevistas com especialistas que não estão, porém, em salas de aula. Temos realidades muito diferentes em escolas do mesmo bairro, que dirá de estados e regiões”, diz. É preciso lembrar, no entanto, que muitos professores e diretores temem ser punidos pelo que dizem à imprensa e a maioria precisa de autorização das secretarias para ser entrevistados, o que reforça o caráter oficial de suas declarações.
Para os especialistas, o retrato do docente na imprensa só é positivo quando ele é o “professor nota 10”. “É aquele professor que faz tudo certo, ganha prêmios, um missionário que precisa abrir mão de tudo, sacrificar-se pelo ofício”, explica Katia. O problema desse outro extremo, segundo Valdir, é que esse profissional é desinteressante para o resto da comunidade docente.
Formação ou informação
No estudo, Katia ainda observou que o discurso pejorativo sobre o professor acaba sendo assimilado e reproduzido pelo próprio docente. Essa situação contribui para que o professor permaneça com uma constante sensação de falta, de má formação. “Em tempos de globalização, me diz um profissional que precisa ser mais bem preparado, se atualizar? Não é uma particularidade do professor, é uma característica da contemporaneidade. Mas a cobrança recai sobre ele”, diz.
Valdir defende que o problema é mais profundo: “Fortalecer um discurso de má formação ajuda a vender cursos de capacitação, por exemplo. Logo, um professor eternamente malformado é um negócio”. Ele lembra que a estratégia para aprimorar a qualidade do ensino adotada pelas redes costuma perpassar esse ponto. “O discurso do governo para resolver os problemas da educação é sempre o mesmo: comprar computadores, oferecer cursos de capacitação. A educação é um mercado interessante e para justificar a compra é preciso, antes de tudo, desqualificar na mídia o agente da formação”, diz.
Um caminho para a escola reverter esse quadro é divulgar o trabalho dos professores, aproximando-o dos órgãos públicos e da sociedade. “Se a mídia tem o poder de manipular a opinião pública, a escola não tem outra saída senão abrir suas portas, expondo-se como ponto de disseminação de conhecimento e cultura”, diz Cibele. •
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