Em todos os anos vem a público a polêmica tese de que o carnaval de Salvador teria trilhado o caminho da exclusão do povo em benefício de uma privilegiada elite branca. Eu tinha me afastado desse debate nos anos anteriores e volto agora depois de ler o um artigo no Portal Vermelho sobre o tema.
Por: Geraldo Galindo*, para o Vermelho
Reprodução
Carnaval no Pelourinho em Salvador
Primeiro deixo claro que aqueles que advogam a ideia de uma
suposta festa excludente e sem participação popular, no geral, são
pessoas bem intencionadas, querem mais democracia, menos injustiças.O problema é que esses companheiros de boas intenções incorrem num erro grave de análise e sendo assim, chegam a conclusões equivocadas, distantes da realidade, como não poderia deixar de ser. O erro reside em estudar o carnaval de Salvador a partir de uns quatro ou cinco blocos da elite branca - pouco representativos da totalidade de agremiações que saem às ruas -, e dos camarotes dos endinheirados na Avenida Oceânica, onde ricos e gente da classe média se deleitam em luxuosos ambientes fechados.
Para fazer uma avaliação do carnaval de Salvador e tirar as conclusões, quaisquer que sejam, é necessário ter em conta o conjunto, e não apenas uma parte. E é muito fácil. Basta olhar a programação, simples assim. Eu sugeriria aos detratores do nosso carnaval que analisassem apenas um dia da programação do carnaval e com certeza lá vão descobrir que suas teses pré-concebidas não guardam sintonia com a realidade ou estão distantes dela. O leitor que se depara com esse tipo de visão e não conhece o carnaval local pode chegar à conclusão de que aqui uma meia dúzia de afortunados brancos se diverte e o restante do povo, pobre e preto, encontra-se espremido entre as cordas e paredes, tomando porrada da polícia, como fossem um bando de masoquistas infelizes.
Voltemos então à programação para ser didático. O carnaval em Salvador acontece em três circuitos, Centro, Barra, Pelourinho. Em vários bairros também tem programação para os moradores – neste ano teremos em Cajazeiras, Itapuã, Liberdade, Plataforma, Boca do Rio e Periperi. Serão mais de 150 apresentações nessas regiões populares com bandas e grupos dos mais variados estilos musicais, entre os quais, Chiclete com Banana, Baiana System, Asas Livres, Batifun, Nelson Rufino, Adão Negro, Gerônimo, Motumbá e tantas outras. Tem ainda no mesmo período o carnaval dos roqueiros no bairro de Piatã. Aqui já verificamos que na análise dos detratores do carnaval, essa programação onde a elite branca dificilmente pisaria os pés é sumariamente excluída.
O carnaval realizado no Pelourinho é simplesmente maravilhoso, tem programação todos os dias, onde se reúnem a população local e os turistas. São dezenas de pequenos blocos, vários shows, muito frevo, marchinhas carnavalescas, sem presença de trios elétricos, sem camarotes, sem cordas etc. Lá encontramos todos os segmentos sociais, pobres, classe média e até ricos. São milhares e milhares de pessoas a se divertir, idosos, jovens, crianças, todos muito animados. Pergunto: na análise dos detratores do carnaval de Salvador, esse importante espaço de congraçamento popular é levado em conta? Não, para eles, só vale uns quatro ou cinco blocos de trios que desfilam no circuito Barra/Ondina.
Aqueles que tentam passar a ideia de que Salvador teria um carnaval de apartheid o fazem, repito, a partir de poucos blocos, aqueles que as redes de TV escolhem para projetar. Mas nós podemos demonstrar através de um dia aleatório que escolhamos da programação de que mesmo na Barra, o circuito da “elite branca”, essa “informação” não corresponde. Lá vamos constatar que entre 20 e 25 blocos e trios independentes saem diariamente e que entre estes, a grande maioria que está dentro ou fora das cordas não pertence à denominada elite branca. Entre os 35 e 40 blocos que saem na Avenida Sete diariamente, quase todos com cordas, nenhum pode ser enquadrado na categoria de bloco de brancos da elite.
O leitor desavisado que não conhece o carnaval da Bahia, repito, pode pensar que o povo dessa cidade só serve no carnaval para segurar cordas, proteger os ricos e espremer os pobres. Isso é rigorosamente falso, repito, rigorosamente falso. A grande maioria de blocos com corda é formada pela população não branca de Salvador. Quase todos os blocos de samba que desfilam na Avenida Sete têm cordas e seu público é esmagadoramente negro; as dezenas de blocos afros tem como foliões pessoas negras e tem suas cordas também; temos dezenas de outros blocos de Axé, cujos preços são mais acessíveis, onde a população da faixa salarial mais baixa comparece, pula e se diverte. E temos os trios elétricos chamados independentes, sem cordas, que estão nas ruas todos os anos, nos dois circuitos, trazendo artistas famosos como Moraes Moreira, Luiz Caldas, Pepeu, Armadinho, Carlinhos Brown e tantos outros.
Temos ainda o “Furdunço” que é um momento pra aquecimento pra a festa que este ano cairá no dia 08/02 na Barra e terá 22 atrações, e no dia 13/02 no Centro, com outras 27 atrações, sem cordas. Na sexta-feira que antecede a festa temos ainda uma grande concentração na Barra de blocos de orquestra que leva milhares para as ruas até o amanhecer, sem contar nas tantas e tantas lavagens que ocorrem em diversas partes da cidade. Outro momento importante do carnaval onde o povo se espreme na diversão é o Mudança do Garcia, num bairro do centro da cidade, que reúne milhares e milhares de foliões e onde boa parte aproveita a festa para levar seus protestos. Os detratores do nosso carnaval fazem vistas grossas para essas agendas de intensa participação popular no reinado do Momo. Para eles, o carnaval de Salvador se resume aos blocos puxados por Ivete Sangalo, Durval Lelys, Claúdia Leitte e Bell Marques e aos camarotes.
O artigo publicado no Vermelho a que me referi acima, traz uma foto de um bloco com pessoas brancas dentro das cordas e uma vasta quantidade de negros fora delas. É verdade, esses blocos são formados especialmente por abonados locais e turistas paulistas, mineiros, cariocas, gaúchos e outros mais, que pagam um preço salgado para os padrões de nosso povo. Mas isso é uma pequena parte da festa, reitero. Se nós fizermos uma foto aérea da maioria dos blocos de Salvador o visual será completamente diferente.
Nós devemos ter claro que o protagonista principal do carnaval de Salvador é povo dessa cidade, especialmente sua população negra. Os cerca de dois milhões de foliões que estão nas ruas são majoritariamente negros. Não são os quatro ou cinco blocos da elite branca, que não devem somar 20 mil pessoas, e muito menos os frequentadores de camarotes, os protagonistas da maior festa do planeta. Protestar e lutar contra o racismo e todas as injustiças sociais é uma bandeira de todos os dias do ano, inclusive no carnaval, mas daí concluir que os negros ficam oprimidos e resignados durante a festa é outra história. A população vai para as ruas e faz sua festa, ela tem autoestima, se diverte, canta, dança suas danças lindas, está em cima dos trios, dentro dos blocos com corda, atrás de blocos independentes, na pipoca, está em todo lugar. Não tenhamos dúvida. O carnaval de Salvador é genuinamente popular, alegre, contagiante, e nele, os contrastes da sociedade capitalista aparecem com nitidez, como não poderia deixar de ser. Mas aí é outra história que careceria de um novo artigo.
*Geraldo Galindo é folião pipoca do Carnaval de Salvador há 35 anos.
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