Em O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, Ariano Suassuna trabalhou os gêneros espanhóis da cavalaria e picaresca de uma forma inovadora e brasileira. O romance se insere no contexto do sertão nordestino, permeando os dois gêneros literários com essa temática. Ele ainda constrói um protagonista que é um típico sertanejo, mas que apresenta as características do cavaleiro e do pícaro ao mesmo tempo. “O protagonista é uma resposta bem brasileira ao herói e ao anti-herói.
Por Paula Rodriguez
Ele não trata da dualidade humana, como o romance realista, mas unifica estes dois extremos de uma maneira paradoxal”, diz Maria Inês Pinheiro Cardoso, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, onde apresentou a tese Cavalaria e picaresca no romance D’ A Pedra do Reino de Ariano Suassuna. O trabalho teve a orientação do professor Mario Miguel González, do Departamento de Letras Modernas.
O romance se inicia na década de 1930, na Paraíba. A narrativa, construída de forma não linear, usa o recurso dos flash-backs para retornar aos acontecimentos que culminaram no episódio do massacre de Pedra Bonita, interior da Paraíba, no século 19. Esse massacre envolvia crenças milenares, vinculadas ao sebastianismo — o desejo do povo português de que seu rei, Dom Sebastião, retornasse para governar o país. Muitos festejos e celebrações populares aparecem na trama do romance de Suassuna como a Cavalgada da Pedra do Reino. “Eu cresci assistindo festas de dias de rei, as procissões, as missas. A nossa vida cultural aqui no nordeste está muito pautada pelo calendário religioso”, diz Maria Inês, que é de Fortaleza, no Ceará.
No ponto de partida da narrativa, o protagonista-narrador Quaderna está preso na cidade de Taperoá por motivos que não ficam muito claros. Ele se encarrega de sua própria defesa. Durante sua narrativa, invoca fatos do passado, ludibria os outros personagens e o próprio leitor.
O Romance da Pedra do Reino se aproxima dos gêneros ibéricos em seu aspecto formal e temático. Os romances de cavalaria são de origem medieval e constroem histórias de cavaleiros nobres e cheio de conduta. Eles se pautam pelo respeito às suas damas, mantendo-as idealizadas. A forma como o romance é construído se aproxima muito com a forma que Suassua utiliza em A Pedra do Reino, os desenrolares das tramas são semelhantes. Já as histórias de pícaros contém o personagem com características da malandragem, desrespeitador dos bons costumes e dos bens alheios. Suas ações estão no contexto de uma realidade sofrida, na qual ele luta para sobreviver da maneira que pode, como diria Maria Inês “praticando pequenas malvadezas”. Quaderna tem um tanto de pícaro, mas Suassuna lhe constrói de maneira a lhe dar uma identidade sertaneja, um típico nordestino que luta para sobreviver na realidade de sua região.
A picaresca fica evidente quando Quaderna começa a narrar sua história. “A aproximação se evidencia ainda mais pelo livro ser uma pseudo-autobiografia. Na verdade, o próprio Suassuna assume uma atitude picaresca e nos confunde ao criar um personagem que não deixa de ser um alter-ego seu”.
Suassuna criou um personagem que não é apenas verossímil, como os protagonistas do romance moderno. Ele não mistura atos bons e ruins. “Ele eventualmente tem uma postura bastante condenável do ponto de vista ético e moral, mas por outro lado mascara isso por meio de suas picardias, que não chegam a ser grandes malvadezas”, diz Maria Inês. A dualidade humana não é enfatizada, mas transformada em um tipo também.
O Quaderna é um personagem muito peculiar por sempre estar em diálogo com a questão do bem e do mal. Existe nele uma postura de simulação heroica, que é uma condição que ele almeja. Contudo, permanece claro que esta não é a sua verdadeira essência. Ele faz as coisas de tal maneira que não tenta enganar apenas os personagens, mas também o leitor.
Ao mesmo tempo em que o pícaro comete pequenas peripécias que colocam em prova o seu caráter, ele se redime buscando sempre ajudar o povo pobre e sofrido. “A versão sertaneja do pícaro, os personagens de cordel ou da tradição oral, como João Grilo e Pedro Malazarte, nunca vão atuar contra os oprimidos, mas contra os repressores. Isso o envolve em um certo sentido de justiça que lhe garante ser conhecido por sua valentia.”
As ações que ele desenvolve ao longo da trama lhe dão certa autonomia. “O Quaderna é uma paródia de Suassuna, uma brincadeira com o romance do herói”, coloca. Suassuna e Quaderna criam um vínculo muito forte que é passado para o leitor. “Podemos associar Suassuna e Quaderna a Cervantes e Dom Quixote tamanha é sua identificação”, compara Maria Inês.
Os dois gêneros, da cavalaria e picaresca, são muito bem entrelaçados por Suassuna, que ainda acresce um contexto histórico regional nordestino. Isso lhe permite criar uma proposta literária inteiramente nova. Para Maria Inês, Suassuna entende que o nordeste precisa ser retratado de uma maneira diferente daquela da literatura regionalista da década de 1930, com obras de Guimarães Rosa e José Lins do Rego, por exemplo. “Eu acho que ele entende que não pode escrever um livro de cavalaria. Ainda que o nordeste remeta a esse ambiente, ele não pode mais fazer isso, pois aquilo não faz sentido no contexto daquele lugar ou em qualquer outro lugar da contemporaneidade”, explica.
Suassuna desconstrói o gênero da cavalaria e da picaresca e as traz para o nordeste para se afirmar como escritor que não é alienado, que tem familiaridade com tudo aquilo. “Ele é crítico a ponto de criar todo um cenário que remete às narrativas ibéricas e depois diz que é tudo uma brincadeira. Ele passa a mostrar a verdade sobre a realidade nordestina, por meio de Quaderna, o pícaro que vive na pele tudo isso.
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