O grupo Deolinda dá nova roupagem à música de Amália Rodrigues.
Foto: Rita Carmo
A imagem entrou para a história como mito. Vestida de preto, com o semblante austero, Amália Rodrigues inclinava para trás a cabeça, entrelaçava as mãos na frente do corpo e fechava os olhos para expressar os fados portugueses. Com essa postura, ela eternizou versos como Foi Deus/ Que me pôs no peito/ Um rosário de penas/ Que vou desfiando/ E choro a cantar. Assim foi por quase 60 anos, até Amália morrer em 1999.
Nos anos 2000, surgiu Deolinda, outro tipo de fadista. Lisboeta, ela canta sem o acompanhamento tradicional da guitarra portuguesa. Usa maquiagem, veste roupas de cores vibrantes, dança jocosamente, interpreta letras sobre os problemas do seu tempo e às vezes com final feliz.
Em janeiro deste ano, para as plateias que lotaram o Coliseu do Porto e o de Lisboa (as casas de espetáculos mais importantes de Portugal), Deolinda apresentou pela primeira vez a canção Parva Que Sou. Recebeu muitos aplausos por entoar versos como Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’/ Há alguém bem pior do que eu na tevê e E fico a pensar/ Que mundo tão parvo/ Onde para ser escravo é preciso estudar.
A canção encarnou a insatisfação dos jovens portugueses com os rumos do país. Na internet, eles combinaram um protesto contra a situação econômica de Portugal, à época prestes a receber um resgate financeiro do FMI e da União Europeia, da qual é membro desde 1986. Em março, cerca de 100 mil pessoas saíram às ruas para reclamar contra o desemprego e a baixa remuneração. Ali se reuniu, segundo a imprensa portuguesa, a Geração Deolinda.
Na verdade, Deolinda não é uma fadista de carne e osso. É um personagem inventado por Ana Bacalhau (vocalista), José Pedro Leitão (baixista), Pedro da Silva Martins (violinista) e Luis José Martins (violinista). O quarteto tem uma visão heterodoxa do fado. Pertence a uma geração que está na casa dos 30 anos e que desde a década passada promove o renascimento do gênero, eleito em novembro, pela Unesco, patrimônio imaterial da humanidade. Mesma distinção que os mariachis mexicanos mereceram este ano e o samba do Recôncavo Baiano ganhou em 2005.
Representado por grupos e cantores como Ana Moura, António Zambujo, Cristina Branco, Carminho, Joana Amendoeira, Kátia Guerreiro, Mafalda Arnauth-, -Raquel Tavares, Hoje e Deolinda, o fado de agora está mais aberto para o mundo, com um pé na tradição e outro no presente. Ele flerta com o pop, o jazz, o rock, a música popular brasileira. Adota instrumentos elétricos e computadores. Dulce Pontes e Mariza, precursoras da nova onda, não estão mais sozinhas nos palcos portugueses e internacionais.
No primeiro fim de semana de dezembro, o cantor Camané e os grupos Deolinda, Hoje e Lisboa Soul se apresentaram na Brooklyn Academy of Music (BAM), em Nova York. Nos dias 2 e 3 deste mês, como parte da programação do 2011 Next Wave Festival, eles mostraram à plateia que lotou o BAM as vertentes tradicional e experimental do gênero. Durante os intervalos dos shows, o público lamentava não entender as letras, mas intuía o fatalismo e o desespero sugeridos pelo fado. Os americanos costumam compará-lo ao blues.
O mundo de língua inglesa gosta do fado. No verão passado, a cantora Ana Moura, de 31 anos, fez turnê pelos Estados Unidos e Canadá. Ela caiu nas graças de Prince quando o vocalista americano a viu em um show em Paris, há dois anos. Dali em diante, ele afirmava atravessar o Oceano Atlântico só para “pegar na cauda do vestido de Ana Moura”. Prince incluiu Walk in Sand, balada de inspiração portuguesa, no CD 20ten (2010).
Ana costuma cantar No Expectations, dos Rolling Stones, nas suas performances. Depois de a ouvirem numa taverna lisboeta, em 2007, os roqueiros ingleses se encantaram com sua voz e a convidaram para gravar com eles. O resultado: a fadista participa do CD Stones World: Rolling Stones Project, Volume II (2008).
Os pais de Ana viveram em Angola até a então colônia portuguesa conquistar a independência, em 1975. O período da família na África influenciou a cantora. Ela ouvia em casa músicas angolanas. Hoje menciona como fadistas preferidos Cesária Évora e Tito Paris, ambos cabo-verdianos.
Tal como Ana, o grupo Deolinda recebeu a influência de estilos diversos, identificáveis nos seus dois CDs, Canção ao Lado (2008) e Dois Selos e um Carimbo (2010). “Embora tenhamos quatro personalidades diferentes, escutamos músicas parecidas: a matriz é a mesma”, diz José Pedro Leitão a CartaCapital. No DNA musical do quarteto estão impressas as marcas de Nirvana, Pearl Jam, Caetano Veloso, Chico -Buarque, Elis Regina e Marcelo Camelo.
Lançado há dois anos pelo grupo Hoje, Amália Hoje é um disco com nove canções consagradas por Amália Rodrigues (1920-1999). Curiosamente, Nuno Gonçalves, idealizador do projeto, não é um apreciador do gênero. Ele é o tecladista da banda pop portuguesa The Gift. “Meu pai ouvia as músicas da Amália no banheiro. Eu queria escutar Sex Pistols, enquanto crescia nos anos 1980”, diz Gonçalves. “Na adolescência, rejeitei a associação de Portugal ao fado, futebol e Nossa Senhora de Fátima.”
“A página foi virada pelos mais jovens”, diz o tecladista. “Existe uma nova geração de fadistas que fala de jazz, rock, tecno e house music.” Com Sônia Tavares (vocalista do The Gift), Fernando Ribeiro (vocalista da Moonspell, banda de heavy metal) e Paulo Praça (vocalista), Gonçalves criou o CD mais vendido de 2009 em Portugal. Concebido sob uma sonoridade pop com o uso de sintetizadores, o disco tem arranjos orquestrais que imprimem ao fado características “épicas”. “Houve uma rejeição da velha-guarda, mas as vozes fundamentalistas se calaram”, diz.
Para ele, as gerações que não acompanharam Amália têm “uma visão distorcida” sobre a Rainha do Fado, associada à tristeza e à desesperança. “Amália foi uma pop star, talvez a única de Portugal”, diz. “Ela cantou no mundo todo, falou outras línguas, apareceu na tevê, hospedou-se nos melhores hotéis, tratou Frank Sinatra sem cerimônia.” Seria um equívoco, diz o tecladista, confundir Amália com “xale negro e guitarra portuguesa”.
O sucesso dos grupos Hoje e Deolinda tem a ver com a valorização da cena fadista de Portugal, sobretudo de Lisboa, segundo a musicóloga Lila Ellen Gray. “Atualmente, muitos jovens cantam o fado tradicional e o fado-canção. Não estamos mais na era em que o fado é dominado por uma estrela apenas”, diz. Professora da Columbia University, Ellen terminou há pouco Resounding History: Politics of the soul in Lisbon’s fado, livro a ser publicado pela Duke University Press no próximo ano.
Atemporal. A musicóloga Ellen Gray, para quem é possível aprender na escola o gênero interpretado por Hoje e Deolinda. Foto: Rita Carmo
“Criado no início do século XX, o estereótipo do fado como a alma atemporal de Portugal circula na mídia e em discos destinados ao mercado internacional”, diz. “Fadistas falam do gênero como algo inato, impossível de ser aprendido.” Em sua obra, Ellen discute a ideia de que os cantores e instrumentistas nascem sabendo o fado. “Existe um aprendizado e boa parte dele se dá fora de instituições formais.”
A noção de uma identidade portuguesa é indispensável no país em crise, “habitado por gente que conhecemos mal, por quem não temos especial estima e que certamente merece o fardo que lhes cabe carregar”, escreve o sociólogo Boaventura de Sousa Santos no seu livro mais recente, Portugal –- Ensaio contra a autoflagelação (Almedina, 2011). “Portugal foi o único país colonizador a ser considerado por outros colonizadores um país nativo ou selvagem.”
Santos examina, no ensaio sobre os problemas econômicos e sociais de Portugal, o suposto caráter “ambíguo”, “indefinido” do homem português, encurralado entre a ansiedade por mudança e o medo paralisante da novidade. Diante dessa relação difícil com a lusitanidade, apontada por Santos, o fado representaria um porto seguro.
Segundo Ellen, a discussão sobre as origens dessa canção urbana está ativa. “Provavelmente, o fado nasceu como um gênero poético cantado na Lisboa da primeira metade do século XIX”, diz. “A capital de Portugal é uma cidade portuária com tradição de trocas culturais.” Para a musicóloga, os mouros e o Brasil exerceram influência sobre o desenvolvimento do gênero.
A academia debate as ligações entre o fado e a ditadura de António de Oliveira Salazar (1889-1970). “A política cultural nos primeiros anos do regime salazarista fomentou a profissionalização do gênero por meio da criação das casas de fado oficiais”, diz. “Ao mesmo tempo, letras de canções foram censuradas.” A relação complicada do começo aplainou-se quando o regime declinava. A fama internacional de Amália serviu ao nacionalismo de Salazar.
Após a Revolução dos Cravos (1974), os portugueses associaram o fado ao salazarismo. Àquela altura, preferiram escutar jazz, Beatles e canções de intervenção. Casas de fado fecharam. “Nos anos posteriores à revolução, alguns fadistas imaginaram novas possibilidades para o futuro.” O fado é hoje o que era no seu berço: uma música em contato com diferentes culturas.
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