Em Micropolítica: cartografias do desejo (2004), o filósofo e psicanalista francês (1930-1932), Félix Guattari, defendeu a existência inter-relacionada de três formas de cultura:
A)cultura como alta cultura ou cultura como valor, que corresponde a uma visão e prática elitistas da e sobre a cultura, estabelecendo o lugar do inculto e do culto, do civilizado e do bárbaro, do invulgar e do vulgar, do gênio e do medíocre, do criador e do criado; B) cultura como alma de um povo, vista e vivida como universal, porque tudo, na alma do povo, é culturalizável, como a cultura indígena, nordestina, popular, quilombola; C) e por fim a cultura de massa como a principal arma tecnológica da qual o Capitalismo Mundial Integrado se vale a fim codificar, esquadrinhar, mapear e manietar, em nome do sagrado lucro oligárquico, tanto a cultura como alta cultura (A) como a que diz respeito à alma do povo (B).
A cultura de massa (C), a serviço do Capitalismo Mundial Integrado, tem vocação imperialista, colonizadora e se articula através de três estratégias básicas:
1) A apropriação dos fluxos, dos delírios, dos racismos, dos idiotismos, das potencialidades emancipadoras existentes tanto na cultura como (A, como valor) como na cultura como (B, alma do povo), transformando-os em dispositivos domáveis e desdobráveis com o objetivo de dividir, hierarquizar e contrapor a diferentes grupos sociais, os quais passam a viver a si mesmos como se fossem superiores ou inferiores entre si; ou simplesmente como diferentes, na suposição de que fazem parte da cultura como (B), como se tudo fosse alma do povo, seja o elitismo predominante na cultura acadêmica, formadora de presunçosos seres que se acham cultural e intelectualmente melhores que os outros; seja o popularismo demagógico da cultura das populações marginalizadas – popularismo demagógico que serve para produzir e reproduzir socialmente a marginalidade infinita dos povos, mesmo quando é positivada, isto é, é-nos apresentada como bela, sensual, criativa, espontânea, de vez que sempre a despolitiza, condenando-as à pobreza eterna, como se a pobreza fosse também uma questão de cultura, no sentido (B) acima apresentado: criativa alma do miserável, abandonado e inferiorizado povo.
2) Ser uma máquina tecnológica mundial de apagamento do que foi ou é viva criação revolucionária, expressando-se como máquina de esquecimento ou apagamento de tudo que a cultura como (A) e como (B) produziu e produz, em cooperação, de realmente emancipador, como, enfim, engenhos e artes a favor de uma quarta forma de cultura: a cultura comum, do comum e para o comum, esta que não separa nada de nada, de vez que é ao mesmo tempo criação singular e singular produção política de uma sociedade cuja diversidade não está a serviço de hierarquias do tipo valor/não-valor, civilidade/ incivilidade, aristocrático/popular, alto clero/ baixo clero, meritocracia/não meritocracia, posto que se singulariza à medida mesma que se disponibiliza à festa do possível.
3) Ser uma máquina tecnológica apta para, sem cessar, promover, com muito ilusionismo, o retorno misturado de tudo de pior que a besta humana produziu e produz: racismos, superioridades fascistas e nazistas; guerras, propriedade privada como extorsão do comum; roubo, pilhagem, destruição de ecossistemas, egoísmos, idiotismos, elitismos, indiferenças; o inferno, enfim, que é o mundo para o comum dos seres.
É por isso que é possível dizer que tanto a cultura como (A, como valor) e como (B, alma de um povo, popular) são dimensões absolutamente reacionárias de cultura, razão pela qual são tomadas e retomadas pela cultura como (C, de massa) a fim de evitar a todo custo a emergência coletiva da cultura como (D): viva cultura insubmissa na qual e através da qual a produção cultural é tanto mais singular quanto mais comum; tanto mais individual quanto mais coletiva; tanto mais minha quanto mais de ninguém – picos ininterruptos de criação comum, no comum, através do comum, instigando e provocando, sem cessar, singularidades no comum – e no comum porque se dizem respeito a singularidades não presunçosas e hierarquizadas.
Não é verdade, pois, a crença, muito presente na cultura como (A, como valor), de que esta não pertence à cultura de massa e que, por consequência, não se constitui como subproduto do Capitalismo Mundial Integrado. O elitismo da cultura como (A) jamais admitiria ou admitirá sua inserção subjugada, como cultura reacionária, na cultura de massa, pois, sua existência, ou o delírio racista de sua exclusiva existência, está intimamente implicado com sua diferenciação hierárquica em relação à cultura como (B), como alma do povo.
O que o Capitalismo Mundial Integrado faz é jogar com unidades discursivas, como a unidade discursiva da cultura como (A) e a unidade discursiva da cultura como (B), produzindo-as, distribuindo-as e consumindo-as como se realmente fossem unidades discursivas diferentes, pois o que elas não podem ser é a cultura como (D), revolucionária criação do comum, no comum. Reside aí, portanto, a importância, para as oligarquias belicosas da cultura de massa, na atualidade: produzir o delírio racista das unidades discursivas através do sequestro genocida do comum.
Como bem registrou Michel Foucault, em A arqueologia do saber (1969), as unidades discursivas, todas elas, são construções históricas e como tais, no Capitalismo Mundial Integrado, mais que não terem fundamento, inscrevem o mundo todo como a unidade discursiva do colonizador, a partir da estratégia da diversidade em relação ao uno ou do uno como unidade discursiva colonial, tecido e entretecido, dinamicamente, através de múltiplas unidades discursivas: colonizador, colonizado, alfabetizado; analfabeta, heterossexual, homossexual; primeiro mundo, terceiro mundo; homem, mulher; racional, irracional; produtivo, improdutivo; moderno, pré-moderno; contemporâneo e anacrônico, cultura como valor, como alma do povo.
Uma cultura do comum não se fundamenta em unidade discursiva, qualquer que seja, razão pela qual é transdisciplinar, insubmissa e descolonizadora, o que me permite dialogar com o seguinte fragmento de Os condenados da terra (1961), singular livro do e para o comum, escrito pelo martiniquense Frantz Fanon (1925-1961), que é o seguinte;
“A descolonização, que propõe transformar a ordem do mundo, é, como se vê, um programa de desordem absoluta, mas não pode ser o resultado de uma operação mágica de um sacudimento natural ou de um entendimento amigável. A descolonização, como se sabe, é um processo histórico: isto é, que não pode ser compreendido , que não resulta intelegível, translúcido a si mesmo, a não ser na medida exata em que se discerne o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas forças congenitamente antagônicas que extraem precisamente sua originalidade dessa espécie de substância que segrega e alimenta a situação colonial (FANON, 1963, p.17)”.
Em diálogo ao mesmo tempo com Foucault e Fanon, a descolonização é tanto mais um processo histórico ou tanto mais se descoloniza no processo histórico que assim o é, um processo real, na medida em que não admite ou não parta da premissa de unidade discursiva alguma, a não ser estrategicamente, mas sempre como processo, razão pela qual, com Fanon, a descolonização “é um programa de desordem absoluta” em relação aos bens do sistema colonial – as línguas, os valores, o modelo civilizatório, os saberes instituídos.
Como as duas primeiras formas reacionárias de cultura, (A, alta cultura) e (B, alma do povo, popular), foram produzidas no passado recente e remoto da humanidade, parece-me de extrema importância realizar um movimento de desordem absoluta em relação ao passado como unidade discursiva, seja de alta cultura (A), seja de cultura popular, alma do povo (B), mas também ou desde que, simultaneamente, realizemos uma igual desmontagem das unidades discursivas de nosso atual presente histórico, principalmente tendo em vista as que são produzidas no interior da cultura de massa ou da cultura como (C), a serviço do Capitalismo Mundial Integrado - unidade discursiva planetária que cultiva e reproduz sem cessar os antigos e novos bens do atual sistema colonial, marcado e demarcado pelo que o economista egípcio, Samir Amin, deu o nome de Imperialismo coletivo.
Descolonizar-nos midiaticamente, das mídias do Capitalismo Mundial Integrado, é, portanto, inseparável de um movimento emancipador de descolonização tanto da cultura como (A) como da cultura como (B), as quais, através da cultura de massa, constituem-se como as duas unidades discursivas, no plano da cultura, mais eficientes para produção do colonialismo contemporâneo, seu sistema colonial.
A unidade discursiva do sistema colonial é a mais cruel das formas de violência; é o nome próprio da Violência, pois oprime, cala, ocupa, apaga, reescreve a história como estratégica arma de guerra ou simbólica ordem batalha do colonizador. Ainda em diálogo com Fanon, a cultura de massa constitui, hoje, a “força que segrega e alimenta a situação colonial”, motivo suficiente, portanto, para denunciá-la como violenta, a própria imprópria Violência que se expressa como presente eterno do Capitalismo Mundial Integrado – e eterno não porque o passado seja apagável, através dela, mas porque, pelo contrário, realiza-se apagando e massificando não todos os passados, mas precisamente aqueles que se tornaram ou experiências críticas, ou criativas, ou revolucionárias em relação ao sistema colonial de seu respectivo período histórico.
A cultura de massa, pois, como presente eterno, eliminando ou reescrevendo, sob o seu colonizador ponto de vista, os passados de luta e de emancipação descolonizadora dos povos (a cultura como D), retoma e valoriza, por oposição, todos os passados de violência sofridos pelos colonizados precedentes, como se fossem a única encarnada memória possível, a de um sistema colonial trans-histórico, onipresente, total, eterno.
Eis aí, pois, o principal motivo da violência de classe, de gênero, étnica, epistemológica que faz da vida na Terra o inferno que tem sido para o comum dos seres.
Eis porque, descolonizar, hoje, constitui-se como processo ininterrupto de desmassificação da cultura de massa; forma de descolonização que, de maneira alguma, ocorrerá através da reificação do atual presente do colonizado, na suposição de que todo o passado é imprestável, porque europeu, porque americano, porque colonial.
Se, com Walter Benjamin, na tradição do oprimido, a história toda da humanidade constitui-se como um acúmulo sem fim de despojos, de lixos, é porque não apenas o nosso atual presente é parte dessa história de despojos, mas também porque toda essa história de lixos colonizadores deve ser desmassificada de sua unidade discursiva colonial, opressora, o que se consegue, insisto, selecionando experiências críticas e criativas emancipatórias no lixão imenso que produzimos no decorrer dos tempos, conscientes de que, mesmo que sejam despojos da história, como tudo o mais, podem ser eventualmente valorizadas, tendo em vista o argumento foucaultiano de que toda unidade discursiva – como a do sistema colonial - é uma construção histórica arbitrária e, como tal, não é nem absoluta, nem integral, nem, portanto, unitária, razão pela qual o principal trabalho da cultura revolucionária, como (D), é o de produzir o liame entre as experiências emancipatórias de ontem e de hoje.
Tal não se faz, sob o ponto de vista da cultura como (D, revolucionária), simplesmente eliminando o ontem, mas, pelo contrário, emendando-o, como uma colcha de retalhos, através das muitas linhas de fuga que produzimos no decorrer da trans-história da tradição do oprimido, como contribuições inestimáveis para um projeto libertário de desmassificação da humanidade, o que significa dizer que, se a estratégia da cultura de massa na atualidade é a de fazer-nos esquecer dos muitos passados de resistência e de alternativa que produzimos em relação à tradição do oprimido, penso que a cultura como (D) contribuirá realmente para a emergência de um mundo do e para o comum se for capaz de identificar urgências, medidas pelo risco de morte.
Sob esse ponto de vista, não tenhamos dúvidas: os povos que estão sob a ameaça de guerra ou vivendo o inferno de guerras imperialistas, nos termos do Capitalismo Mundial Integrado, são eles que precedem, em importância e urgência, a todos nós; e precedem não porque são mais importantes, mas porque estão literalmente sendo dizimados. Concretamente falando, são os iraquianos, os colombianos, os mexicanos, os líbios, os sírios, os iranianos, os haitianos, os angolanos, palestinos, os congoleses; são eles e elas os condenados da terra da atualidade, razão pela qual a descolonização, deles e delas, é a nossa.
Essa é, pois, a principal tarefa da cultura como (D, revolucionária,: evidenciar as urgências a partir dos perfis humanos que estão realmente sendo massacrados pela máquina de matar do Capitalismo Mundial Integrado.
Para realizar tal imenso desafio, é preciso um esforço descomunal e incessante de descolonização de tudo que seja ou queira ser cultura como (A), como (B) e como (C).
Eis a senha, pois, para a constituição de um movimento planetário de descolonização do sistema colonial do capitalismo coletivo contemporâneo: a descolonização de nós mesmos, desmassificando-nos da cultura de massa.
Referências bibliográficas
FANON, Franz. Los condenados de la tierra. Trad. Julieta Campos. México: Fondo de Cultura Económica, 1963.
GUATTARI, F; ROLNIK.. Micropolítica: Cartografia do Desejo. Petrópolis: Vozes, 1986.
HARDT, Michael. & NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.
*Luís Eustáquio Soares é escritor e ensaísta.
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