Lívia Venina
Há aproximadamente duas semanas, a cidade do aço – pelo menos em ambiente virtual – foi tomada por uma polêmica daquelas quando um rapaz que passava próximo ao Colégio Manoel Marinho, na Vila, flagrou uma cena que acabou sendo exaustivamente compartilhada no Facebook: um artista de rua cercado por quatro guardas municipais, um deles com o cassetete em punho. A imagem ganhou notoriedade porque o rapaz abordado, identificado apenas como Ícaro, é velho conhecido dos artistas da região e também daqueles a quem faz sorrir quando toca seu violino nos sinais de trânsito.
Indignados, artistas de Volta Redonda organizaram um protesto para o final da tarde de quinta, 5. Mas, ao contrário de manifestações anteriores, quase todas em frente ao Palácio 17 de Julho, no Aterrado, esta teve por objetivo denunciar à população o que vem sendo chamado à boca pequena de ‘higienização social’. Por isso, foi realizada num local emblemático e sugestivo: em frente ao Cine 9 de Abril, na Vila, onde todas as terças acontece o projeto ‘Cultura para Todos’, mantido pela prefeitura e cujo objetivo é trazer para a cidade shows e espetáculos de artistas que não são de rua. Muito pelo contrário: são consagrados nacionalmente.
“O ato foi organizado espontaneamente por artistas que estão cansados dessas arbitrariedades em Volta Redonda”, explicou o ator Carlos Eduardo Giglio, um dos organizadores da manifestação. Sem esconder a indignação, Giglio explica que depois de vários problemas com as abordagens feitas pela Guarda Municipal a artistas, cidadãos em situação de rua e, segundo ele, até a praticantes de slackline, a categoria decidiu reagir.
“Esse choque de ‘ordem’ chamado ‘VR em Ordem’ tem tentado fazer uma higienização que é absurda e vai contra a nossa lei maior, que é a Constituição Federal”, argumenta Giglio, lembrando que o Brasil, constituído Estado Democrático de Direito, tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa. “Lembrando que, segundo o artigo 5º, é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença”, emenda o artista.
Ele vai além. Diz que o prefeito Neto e o comandante da Guarda Municipal, major Luiz Monteiro, “extrapolaram no autoritarismo” com a iniciativa. “Eles desrespeitam a Constituição e, no mínimo, constrangem artistas que estão trabalhando. Estão dificultando ao máximo que todo mundo trabalhe”, dispara o artista, acrescentando que, no caso das pessoas que vivem em situação de rua, “estão mais atrasados ainda, tanto no discurso quanto na prática”.
“Não é desta forma que vão resolver problemas como a invasão do crack. Estão fazendo isso em São Paulo e no Rio e não está funcionando”, destaca, frisando que, a seu ver, está claro que o Poder Público está implementando em Volta Redonda a ‘higienização social’ que os setores conservadores da sociedade, segundo ele, tanto buscam. “É por isso que os artistas de rua, estudantes e outros resolveram não ficar calados”, completa Giglio, assegurando que a determinação da prefeitura caiu feito uma bomba entre atores, atrizes, músicos e artesãos.
“Os artistas se sentiram agredidos, vilipendiados, censurados. A contradição e a arrogância foram enormes”, resume Giglio, definindo como “incoerente” a postura do Poder Público. “A prefeitura diz que Volta Redonda é a cidade da cultura, cria um projeto chamado ‘Cultura para Todos’, uma escola de circo e teatro e, ao mesmo tempo, reprime manifestações artísticas legítimas e locais”, exemplifica. “Qual é o conceito de cultura e arte, ou mesmo de democracia, que tem o nosso prefeito? Que interesses há por trás dessa política?”, questiona.
Giglio admite que um dos problemas enfrentados pelos artistas, além da falta de apoio do Poder Público, é a ausência de uma associação ou sindicato que defenda seus direitos. “O que existe são o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão (SATED) para os atores e circenses, e a Ordem dos Músicos para os músicos e cantores”, explica, lembrando que os profissionais da cidade do aço acabam ficando reféns de uma política sindical que é totalmente voltada para a capital do estado. “Os representantes desses órgãos ficam muito amarrados e acabam não podendo fazer muito. Bem que tentam”, lamenta.
Por essas e outras, diz o artista, é fundamental que cada um se organize em seu órgão representativo. “Mas realmente está chegando a hora dos artistas da cidade se organizarem em uma associação que represente a todos, amadores ou não, de uma maneira mais unificada e local”, avalia Giglio.
Vereadora ignora apelo de artistas
Na noite de quarta, 4, a Câmara de Volta Redonda promoveu uma audiência pública para tratar de assuntos que dizem respeito aos guardas municipais, como carga horária da categoria, condições de trabalho e legislação específica para os funcionários da GM. Realizada pela vereadora América Tereza (PMDB), líder do governo, a audiência teve por objetivo ouvir os GMs acerca da forma como querem ser tratados. Entre muitos discursos e homenagens - América ganhou flores da Guarda -, a solenidade transcorreu sem grandes problemas e com muitas promessas.
Mas, em determinado momento, Giglio tomou a palavra e, dirigindo-se aos GMs e aos parlamentares presentes – América Tereza, Marquinho Motorista, Tigrão, Paulo Conrado e Edson Quinto –, afirmou que o comando da Guarda e o prefeito Neto estariam jogando a população contra a Guarda e a Guarda contra a população. “Vim aqui como cidadão. Sou ator e diretor de teatro. A população está sofrendo abuso de poder da GM e descumprimento das leis pelo prefeito e pelo comandante da Guarda”, disse Giglio.
Com críticas ponderadas, mas incisivas, ele lembrou que a Câmara quer legislar, mas, muitas vezes, se esquece de fiscalizar o cumprimento das leis. “Com este abuso e descumprimento da legislação - já que a Constituição Federal garante a expressão livre da atividade artística, sem necessidade de autorização -, a GM está sendo exposta e colocada contra a população”, disparou o artista, afirmando que o ‘VR em Ordem’ “mais parece uma higienização social quando aborda artistas e esportistas que praticam slackline”. “Notamos certo constrangimento dos guardas municipais em nos abordar. A Guarda não tem que ter posicionamento policialesco e não quer ter. Os artistas de rua pedem que este abuso de poder seja observado”, emendou Giglio.
Aproveitando a oportunidade, ele pediu aos vereadores que marcassem uma nova audiência pública para discutir a situação entre os artistas de rua e a GM. “Nosso espaço de trabalho está sendo retirado. Artista de rua está na rua e essas abordagens não estão sendo discutidas nem com os artistas, nem com a GM”, justificou. A vereadora América Tereza, que presidia a audiência, disse ao microfone que não tinha entendido o que acabara de ser dito. “Abordagem, Giglio? Não estou entendendo, do que você está falando?”, disse.
Giglio, então, relatou toda a situação e citou a matéria publicada pelo aQui. Depois de ser colocada a par da história, América deu um suspiro, abriu um sorriso e fugiu do assunto. Veja o que ela disse: “O abuso de poder é comentado em Volta Redonda, mas tudo tem dois lados. Todas as vezes em que vou ao quartel da GM, o comandante faz questão de me levar ao pátio, cheio de motos apreendidas. Não é abuso de poder quando a pessoa está de moto sem capacete, sem documento, não é verdade?”, afirmou, cheia de sorrisos. “Eu sou a favor disso, porque a função dos nossos guardas é moralizar e disciplinar. Aprovo por que a maior parte de homicídios acontece por causa de gente que anda de moto, que arranca a bolsa das pessoas nas ruas, aquela coisa horrorosa (grifo nosso)”, completou. É. Pra bom entendedor, pingo é letra.
Sobrevivendo da arte nas ruas
Quando alguém pergunta à voltarredondense Anielli Carraro qual é sua profissão, ela enche a boca para responder: “Poeta e contadora de histórias”. Pelas ruas de Volta Redonda, Penedo e Resende, Anielli já se apresentou e vendeu suas poesias em livros artesanais, confeccionados com muita dedicação. “Já trabalhei declamando poesia nas calçadas e como artesã também. Era um trabalho árduo, e nem sempre conseguia pagar as contas. Mas ia levando, precisava e queria trabalhar com o que acredito ser o meu dom”, revela a poeta. Por essas e outras – e, principalmente, por já ter dependido deste trabalho na rua para sustentar suas filhas –, ela se mostra indignada e se posiciona veementemente contra a operação deflagrada pela Guarda Municipal.
“Acho um abuso que as autoridades reprimam as manifestações artísticas de rua dessa maneira. Veja bem, não sou contra e nem a favor deste ou daquele candidato ou partido, sou a favor da minha classe, que já sofreu muito com a repressão no passado e agora, pelo que vejo, está prestes a sofrer outra vez, da mesma maneira”, desabafa Anielli, que resume seu posicionamento: “Sou a favor da arte e, consequentemente, do artista”, frisa.
Ela, que sabe bem o que é ser artista de rua, afirma conhecer muitas pessoas que fazem o mesmo – a seu ver, jovens cheios de esperança e novas ideias, todos prontos para agregar valor cultural à história de suas cidades. Questionada sobre como reagiria se porventura fosse abordada pela GM, a exemplo do que aconteceu com o jovem Ícaro, citado no início da reportagem, Anielli diz não saber exatamente o que faria. “Pela indignação que sinto agora, depois de ver uma situação como essa acontecendo bem debaixo do meu nariz, posso imaginar o que faria, mas já corri muito da Guarda quando expunha meus livros nas ruas”, revela, acrescentando que chegou a brigar com a Polícia por causa de artesãos amigos seus, tratados por policiais com o que considera falta de dignidade e respeito. Situação corriqueira que pode mudar, segundo ela, se houver união. “Ir às ruas, fazer-se presente em sua indignação. No meu caso, minha arma é a minha poesia, pois trabalho com a palavra”, sublinha.
Anielli vai além. E rechaça os comentários de pessoas que acham que artista de rua é “gente à toa”, “vagabundo” ou, pior, “bandido”. “Vagabundo é o cara que não trabalha e trabalho nunca foi sinônimo de carteira assinada; isso se chama emprego. Bandido é o cara que corre pelo lado de fora da lei e, até onde eu saiba, arte não é crime em nenhum estatuto”, rebate a poeta, na esperança de que a prefeitura reveja seu posicionamento quanto aos artistas locais. “Não estou contra a prefeitura, estou contra esta atitude em particular, que gera humilhação, desconforto e indignação. O artista de rua não está lá pedindo esmolas ou exigindo pagamento, usando drogas ou coisa parecida”, esclarece, lembrando que, com o artista de rua, colabora quem quer, quem apóia o movimento. “Essa atitude (de reprimir os artistas, grifo nosso) marginaliza aquilo que deveria ser exaltado”, destaca.
Para a poeta voltarredondense, a arte é um meio pelo qual se pode modificar a história. “E o que estou vendo é uma repressão acontecer aqui. Gostaria que todos olhassem isso com olhos mais cuidadosos e gentis. Como diria um sábio profeta da nossa época, ‘gentileza gera gentileza”, conclui, esquecendo-se de dizer que gentileza, venha de onde vier, também gera amor e beleza.
Na noite de quarta, 4, a Câmara de Volta Redonda promoveu uma audiência pública para tratar de assuntos que dizem respeito aos guardas municipais, como carga horária da categoria, condições de trabalho e legislação específica para os funcionários da GM. Realizada pela vereadora América Tereza (PMDB), líder do governo, a audiência teve por objetivo ouvir os GMs acerca da forma como querem ser tratados. Entre muitos discursos e homenagens - América ganhou flores da Guarda -, a solenidade transcorreu sem grandes problemas e com muitas promessas.
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