Andressa Camargo, José Moreira Chumbinho |
Entre julho e novembro de 1912, Edgard Roquette-Pinto, conhecido como pai do rádio no Brasil, acompanhava o sertanista e militar Cândido Rondon em expedição pela Serra do Norte. Ao longo da viagem, o interesse de Roquette pela diversificada constituição do povo de seu país transformou-o em sociólogo, geógrafo, arqueólogo, fotógrafo e folclorista, apesar de seu diploma ter sido emitido pela faculdade de medicina. O contato com os índios, negros e miscigenados que compõem as classes sociais espoliadas, a imensa maioria da população, levou-o a escrever um livro que, publicado em 1916, refutava as teorias arianistas vigentes na época.
Em seu Rondônia, Roquette defendia as idéias de que o homem no Brasil necessitava elevar sua consciência, diferente de ser substituído, como desejava a intelectualidade colonial e semifeudal da época.
Retomadas hoje, as palavras de Roquette-Pinto nos levam a uma questão: nestes tempos em que o capital financeiro chega aos seus estertores, em que o monopólio da imprensa reproduz o discurso uno do mercado, vale dizer, da esfera de trocas fundada na partilha do mundo pelas grandes corporações, como fazer para reconhecer e representar a multiplicidade cultural de nossa população? O que se pode pretender da difusão da música genuinamente brasileira (e do melhor dessa música), diante de iniciativas como as da emissora governamental Rádio MEC e, por exemplo, em Belo Horizonte (MG), para ficar apenas nesses (grandiosos) exemplos, as independentes Rádio Favela, a rádio Guarani FM e a Rádio Inconfidência? PARA SE TER RÁDIO
Sete de setembro de 1922. Na esplanada aberta pelo desmonte do Morro do Castelo, centro do Rio de Janeiro, uma multidão comemorava o centenário da Independência. Poucos haviam reparado nas cornetas metálicas penduradas nos postes. Todos ficaram assombrados, entretanto, quando, ao cair da tarde, perceberam que aqueles objetos podiam cantar o Hino Nacional ou discursar em nome do então presidente Epitácio Pessoa. Assim, entrou para a história a primeira transmissão oficial de rádio no Brasil.
Na ocasião, duas companhias ianques de energia elétrica — a Western e a Westinghouse —, interessadas em apresentar ao consumidor brasileiro a novidade do mercado internacional, haviam conseguido permissão do governo para montar pequenas emissoras em meio aos festejos e instalar seus transmissores, respectivamente, na Praia Vermelha e no alto do Corcovado. Entretanto, pelos brasis do latifúndio, do clero, da burguesia importadora, exportadora e burocrática o rádio era visto como perigoso instrumento de informação. Depois do encerramento da exposição do centenário, em janeiro de 1923, o transmissor da Western foi comprado pelo governo e doado aos Correios para exercer a função de telégrafo. Alguns radialistas amadores, depois de muita negociação, conseguiram licença para divulgar boletins meteorológicos, cotações da bolsa, canções, poesias. O problema era que, para adquirir um aparelho receptor, cada brasileiro dependia da boa vontade do Ministério da Viação, que deveria lhe fornecer uma autorização por escrito; isso porque na época acreditava-se que o rádio era capaz de levar segredos militares para o exterior. Nesse momento, entra em cena o nosso protagonista, Edgard Roquette-Pinto. Convencido de que o rádio deveria difundir "cultura e educar" o povo, Roquette iniciou uma campanha contra a lei que dificultava a compra dos receptores domésticos. Além disso, em parceria com a Academia Brasileira de Ciências, fundou a primeira emissora do Brasil e "numa jogada hábil, indicou para presidente de honra o próprio ministro da Viação e Obras Públicas, Francisco Sá", conta Ruy Castro (site da Sociedade de Amigos da Rádio MEC) —, tudo isso numa época em que um ministro desfrutava de muito prestígio e autoridade no governo. Dessa forma, em primeiro de maio de 1923, Roquette conseguiu inaugurar a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, que utilizaria os equipamentos dos Correios. Dez dias depois, o governo liberava a compra dos receptores e, num lampejo de rara inteligência, passava a controlar, unicamente, o licenciamento das futuras emissoras. Coerentes com o projeto de educação que os impulsionou a princípio, Roquette e os membros da Academia de Ciências mantinham uma programação voltada para a cultura no sentido mais restrito, ou seja, o conjunto de formas da vida espiritual da sociedade: ciência, literatura e arte, filosofia, moral etc. Logo pela manhã, o próprio Roquette comentava as notícias do jornal. Um dos sócios tocava seus discos de música clássica; outro lia poesias; um terceiro preparava palestras sobre saúde; um quarto, sobre história, língua portuguesa, ciências, etc. Ninguém recebia um tostão, mas fazia o que gostava. A limitação técnica de canais de rádio, aliada à convenção internacional, fez com que cada concessão dependesse do Estado. Apesar disso, nos anos seguintes apareceram, só no Rio, as rádios Philips, Mayrink Veiga, Guanabara, Ipanema, JB, Tupi e Nacional. ANUNCIANTES INVADEM
Em 1932, apesar dos protestos de Roquette, Getúlio Vargas cede às pressões do mercado e libera a veiculação de propaganda comercial por essas empresas. Em seguida, as concessões se multiplicam, dessa vez em razão de um único critério cultural: a vigarice política. Assim, o rádio "atende" uma demanda que de forma alguma foi interpretada corretamente pelos setores oficiais e pelos "investidores" do ramo. O desejo de informações do povo não deveria ser atendido, senão que transformada em ansiedade estimulada mas respondida de forma alienada, independente dos apelos partidos de personalidades como Roquette.
As dotações tinham se tornado insuficientes para sustentar a Sociedade, quando em 1936 era preciso modernizar os equipamentos e enfrentar a concorrência. Com o intuito de escapar às pressões da iniciativa que já privava o povo de ter uma rádio cultural e evitar de vez a desfiguração da emissora, é que Roquette decide entregá-la ao Ministério da Educação e Saúde. Gustavo Capanema, então ministro, recebe com empolgação a proposta de Roquette-Pinto, mas sugere que a entrega seja encaminhada ao Departamento de Propaganda e Difusão Cultural de Getúlio. "Ao Ministério de Educação do Povo", retruca nosso protagonista, "não ao governo". Capanema entende o recado e garante o cumprimento dos termos da doação. Em 7 de setembro de 1936, a Rádio Sociedade se torna Rádio MEC*. OS IDEAIS SOBREVIVEM
Hoje, a Rádio MEC opera em dois canais. O primeiro, em FM, é voltado para músicas de concerto, como jazz, chorinho e música clássica. Aí está o seu primeiro problema: esse tipo de programação atrai somente ouvintes das classes abastadas e da pequena burguesia, ainda assim, gente com mais de 50 anos de idade. Apesar de possuir um transmissor relativamente novo, que alcança toda a cidade do Rio e partes do Grande Rio, falta verba para divulgação, como admite Orlando Guilhon, o atual diretor:
— A maioria dos jovens parece não se interessar por música instrumental. Acredito que seja por falta de oportunidade, eles desconhecem esse tipo de música e talvez nem saibam que a rádio [MEC] existe. Claro que a preocupação de Guillon diz respeito à divulgação da rádio e às campanhas que permitam à emissora atrair a juventude, entre elas o trabalho de modernização visando fortalecer o conteúdo cultural. O outro canal, em AM, leva ao ar informes jornalísticos e programas direcionados a segmentos sociais específicos: jovens, mulheres, idosos. O espaço musical é tomado por artistas nacionais nem sempre famosos. — Faz parte do nosso diferencial trabalhar com selos independentes, como os da Associação Brasileira de Música Independente — explica Guilhon. Além da divulgação, há um outro problema mais grave: o transmissor da MEC AM já deveria ter se aposentado. — O equipamento AM, em ondas médias, possui bom alcance. Atinge todo o estado do Rio e até algumas localidades na fronteira com Minas. O som, no entanto, apresenta muitos ruídos —diz Guilhon. Guilhon faz questão de lembrar que os problemas pioraram ao longo do duplo mandato de Cardoso. — No início da década de 90, a Fundação Roquette-Pinto — que abrange Rádio MEC e TV Educativa do Rio — recebia orçamento anual correspondente a R$ 90 milhões. O Fernando Henrique, em 1998, transformou a Fundação em Associação Educativa de Comunicação, ou seja, liberou a "administração" para procurar financiadores em empresas privadas. A responsabilidade do governo diminuiu e o orçamento baixou para algo em torno de R$ 11 milhões. Foi uma forma de privatização. O governo Lula subiu esse valor para 40 milhões, mas isso ainda é muito pouco. ARTE E RÁDIO
A lei que rege a produção material é a mesma que rege a produção artística em grande escala, a lei fundamental do capitalismo em nossa época é a do domínio dos monopólios e do lucro máximo, o fortalecimento do domínio econômico, político e ideológico, portanto, todas as suas expressões ideológicas, ou seja, os valores espirituais: o conjunto de formas culturais e morais, que lhe diz respeito e numa crise sem precedentes, com o intuito de sustentar suas falências.
Apesar da obra artística tornar impossível em muitos casos a satisfação do critério da produtividade nos termos de produção material, a condição necessária para que a arte sirva ao atual modo de produção é que ela seja organizada como uma indústria e que o consumo também se estruture comercialmente. Eis, no entanto, que a apropriação privada acentua a expropriação da divulgação social (o interesse social), tanto mais avança a técnica ambivalente sob o atual modo de produção, inclusive na arte, justamente um dos aspectos mais relevantes dos valores espirituais que, como tal, nunca deixou de ser uma manifestação ideológica. Por outro lado, o principio da propriedade privada na arte, pela sua própria natureza, se manifesta numa grande limitação da capacidade criadora. Pior, quando se trata de monopólio da arte, ou seja, quando ela tem o objetivo de render elevados lucros, atingindo não um público privado, mas as grandes massas, acaba por privatizar a "preferência artística", impõe e mantém tensas as rédeas da cultura, além de proceder a estandartização do lucro máximo. Vale dizer, o lucro máximo não só privatiza as manifestações artísticas como as desnacionaliza, corrompe, aliena e destrói os traços distintivos da nação. No jogo da eliminação das rádios culturais, o princípio de autodeterminação é vergonhosamente expulso do ambiente que produz e divulga a arte, já que sob qualquer hipótese os meios de divulgação devem pertencer às massas, servir aos seus interesses. Os grandes meios de produção, inclusive culturais, não podem estar sob a direção das classes improdutivas e exploradoras, muito menos nas mãos do capital estrangeiro, seja através de anunciantes ou, o que é pior, diretamente dirigidos pelas empresas estrangeiras, ainda que associadas a nativos. DE MASSAS, DAS MASSAS
O que não se pode subestimar é o firme propósito do sistema que impõe a política do "meios massivos" de promover a arte inferior, mesmo quando esses meios se autodenominem culturais. A arte divulgada pelos "meios massivos" torna-se mais barata quando banais e menos elaboradas. No USA, todo um formidável contingente de bandidos especialistas (na pele de psicólogos, sociólogos, antropólogos, pedagogos, padres e outras profissões ideológicas) é chamado para modelar a consciência do povo trabalhador. As mesmas experiências são levadas a cabo nas colônias e semicolônias, nas formas de jornal impresso, emissão radiofônica e televisiva. O rádio, em particular, não emite uma imagem direta, ou imagem alguma, mas fornece os elementos que, justamente por falta de imagem, cada ouvinte trata de produzí-la em sua mente de tal forma que, esforçar-se por elaborá-la significa entender a mensagem. A rádio difusão é, talvez, a mais barata divulgação, devido ao seu alcance, compreensão, distância para diferentes setores e classes sociais, com formação cultural, estética e ideológica distinta. O receptor é o equipamento que se instala mais facilmente e que recebe o maior volume de informação, ocupando uma parcela menor dos órgãos sensitivos do homem (pode desenvolver outras atividades enquanto ouve rádio). Por essas razões, o rádio não foi substituído pela TV e é cuidadosamente mantido pelas corporações.
Claro que não se pode desprezar a possibilidade dos meios de difusão ficarem à disposição de uma arte verdadeiramente popular e democrática, tampouco considerar ingênua e cheio de utopias a consciência de quem tanto luta por isso. Ao contrário, essa é a consciência que se torna poder, uma vez que não é animada pelo olhar contemplativo ou por medidas filistéias. Determinados setores sempre entrarão em choque com a padronização imposta pelas forças contrárias à independência, à ciência e à emancipação das classes progressistas — entre eles instituições culturais que buscam necessidades estéticas correspondentes aos seus interesses não padronizados — ainda que não se trate, ao primeiro instante, de manifestações verdadeiramente populares e democráticas. O problema é que o sistema é avassalador e se o trabalho resulta eclético e pouco exigente, abandonando a perspectiva de uma cultura nacional, científica e de massas, isso sempre permitirá ao atual poder realizar suas pretensões. *A Rádio MEC FM funciona na freqüência 98.9 mhz, e a AM está disponível no canal 800 khz. Para entrar em contato com seus produtores, a internet é uma boa opção: www.radiomec.com.br |
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sexta-feira, 13 de abril de 2012
Radiodifusão: Ser ou não emissora de colônia
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