Policiais da tropa de choque fortemente armados na porta do Museu. (Foto: Tânia Rego/ABr) |
RIO DE JANEIRO - Cerca de 600 pessoas defenderam o
antigo Museu do Índio, ao lado do Maracanã, zona norte do Rio, das demolições do governo do Estado previstas para as obras da Copa do Mundo de 2014. Além dos indígenas, que ocupam o terreno batizado de Aldeia Maracanã desde 2006, movimentos sociais, parlamentares e advogados, dentre outros setores da sociedade, se solidarizaram com a causa. O local foi cercado no último sábado (12) durante mais de 11 horas com forte aparato policial do Batalhão de Choque da Polícia Militar e houve momentos de tensão na negociação, apesar de ninguém sair ferido ou preso. A demolição, junto com a derrubada de uma escola municipal e de equipamentos esportivos no entorno, como o estádio Célio de Barros e o Parque Aquático Julio Delamare, faz parte do projeto de modernização do estádio.
Lideranças estimam a circulação de até 300 pessoas diariamente no local desde o fim de semana, e cerca
de 200 acampados na resistência. Aproximadamente 80 dos 150 indígenas registrados como moradores do terreno estão resistindo à demolição, de acordo com o movimento. A ausência de representantes de entidades indígenas importantes como a APIB e COIAB foram sentidas. Outras organizações estão presentes e ocorre o mutirão em solidariedade. Parlamentares do PSOL, como o deputado federal Marcelo Freixo, que participou do processo de negociação com a polícia, foram citados. Fernando Gabeira, ex-candidato a prefeito e governador do Rio, também passou na manhã de ontem (14) pela Aldeia Maracanã.
Defensores públicos e parlamentares estranham a motivação do poder público em demolir o imóvel, uma vez que órgãos como o Crea, Inepac e Iphan, ainda que este não tenha tombado o casarão centenário, se posicionaram contra a destruição. Alguns deles, inclusive, comprovam a não interferência da livre circulação de pessoas, caso o prédio seja reformado. O Conselho Municipal do Patrimônio Cultural do Rio também se posicionou contra a obra. Outro fator de estranhamento foi a Fifa desmentir publicamente o Governo Estadual, ao afirmar que é contrária à demolição.
Uma das lideranças da Aldeia Maracanã, Urutau Guajajara, que é mestrando em linguística na Uerj e dá aulas de Tupi na ocupação, destacou a importância da rápida divulgação pela internet dos comunicadores independentes, que atraiu muitos apoiadores e jornalistas e inibiu a truculência policial. Clamando apoio à sociedade, disse que fica muito pesada a resistência só com os indígenas locais. Ele espera do governo o mesmo tratamento dado por eles em caso de um possível confronto: o maracá, cantorias e religiosidade.
“Eles pensaram que tinha poucos indígenas e conseguiriam entrar facilmente para retirar as pessoas. Não. Acionamos a equipe de informação, com jovens muito bons e rápidos, e mais apoiadores e indígenas vieram. Tentaram entrar, mas colocamos barricadas e fechamos por dentro. O comandante falou que se chegasse a liminar de reintegração de posse com a ordem superior, ia entrar. Mas estamos na legalidade defendendo um patrimônio da humanidade e nacional. Conseguimos por enquanto, porque o próprio comandante disse que se afastaria para conseguir esse papel da justiça federal”, afirmou.
A liderança se refere ao mandado de reintegração de posse, que os policias não possuíam para executar a remoção dos ocupantes. O Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos, da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, conseguiu no plantão judiciário de sábado uma decisão que impede a remoção dos índios sob pena de multa diária, até segunda ordem. O entendimento foi de que o caso é de âmbito da Justiça Estadual, pois esbarra na Lei Estadual 2898/98, que trata dos desalojos coletivos. Mas a Empresa Estadual de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (EMOP), responsável pela reforma do Maracanã, dará entrada em um novo pedido de reintegração de posse e os policiais podem retornar a qualquer momento. A Procuradoria Regional da 2ª Região, por sua vez, entrou com uma ação tentando reverter a decisão do Tribunal Regional Federal (TRF), que cassou uma liminar que impedia a demolição.
Os índios pedem o apoio de fotógrafos e jornalistas, já que não têm condições de instalar câmeras no local, para evitar qualquer excesso policial. Criticaram, no entanto, uma matéria da Globo News que marginalizava os ocupantes, dizendo que havia tráfico de drogas no local, mas a própria emissora se retratou. Para Guajajara, a situação já ultrapassou o âmbito jurídico, e é uma questão de os compradores do imóvel estarem cobrando o espaço ao governo. Ele lembrou ainda que pode ocorrer algo semelhante à reintegração de posse no Pinheirinho, em São Paulo, ou no Iaserj, quando houve forte repressão policial à noite, e por isso estão com uma programação cultural noturna para toda a semana e com pessoas de vigília. A sensação ainda é de medo e insegurança.
De acordo com Mônica Bello, atriz de 27 anos que já trabalhou em filme indígena e está acampada no local com sua filha pequena, isso tudo é jogo de interesse das empreiteiras que financiam as campanhas dos governantes, que agora estão sendo cobrados. Ela ressaltou a importância histórica e cultural do antigo Museu do Índio, e criticou a ação da polícia no último sábado.
“Os policiais vieram de toca, sem mandado e sem identificação. Foi um momento de muita tensão. E a criação do Parque do Xingu, a demarcação de terras indígenas, tudo saiu daqui desse prédio. Esse lugar é um marco do reconhecimento indígena mundial. O governo está burlando as leis, vendendo o Maracanã, e esse prédio faz parte dessa onda de privatização do nosso patrimônio. Aqui poderia ser uma referência cultural e turística”, observou.
Desde dezembro o Ministério Público Federal do Rio de Janeiro abriu um Inquérito Civil Público (ICP) para investigar supostas irregularidades no processo de concessão do Maracanã. O BNDES está custeando as obras, que serão entregues à iniciativa privada. Um dos questionamentos é o fato de a empresa IMX, do milionário Eike Batista, concorrer à concessão apesar de ter feito o estudo de viabilidade econômica da mesma, além de ter ajudado o edital de concorrência que definirá o futuro administrador do estádio. O Maracanã está fechado desde 2010, e deve ser reinaugurado no dia 28 de fevereiro para a Copa das Confederações.
"Pedimos ao governador do Estado, chefe máximo da polícia do Rio, para usar as mesmas armas: maracá, o canto e religiosidade", afirma Urutau Guajajara, uma das lideranças da Aldeia. (Foto: Eduardo Sá) |
Defesa dos indígenas
O que permitiu a venda do terreno da Conab para o governo estadual do Rio de janeiro foi a doação do imóvel em 1995, feita pelo Ministério da Agricultura, que é, segundo o advogado defensor dos indígenas, um meio que os gestores públicos utilizam para alienar o patrimônio público. Arão da Providência, da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), disse que como em parte do terreno funciona um Lanagro (Laboratório Nacional Agropecuário) com trabalho de sementes, atividade essencial à segurança alimentar, e o Museu, é uma ilegalidade demoli-lo e vendê-lo por causa do seu patrimônio histórico e cultural, além de sua destinação para um fim público. Segundo ele, cinco ações em relação à doação, compra e venda do imóvel estão tramitando na Justiça Federal.
“O Estado nunca teve a posse. Aquela escritura não lhe dá o direito, porque não considera a posse com destinação pública nos últimos anos. Temos duas ações de usucapião, duas de tombamento do imóvel, e uma que ainda não foi apreciada de direitos dos indígenas, que
envolve o ato de doação, compra e venda do imóvel. Estão correndo nas 7ª, 8ª e 12ª varas federais. Entramos hoje (14) com uma
representação junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para apurar infração disciplinar envolvendo atos de intolerância racial contidos na decisão da presidente do TRF, Maria Helena Cisnbe, que cassou as nossas liminares”, afirmou.
De acordo com o advogado, o Ministério Público tem que ser ouvido. A imoralidade em relação à concessão do Maracanã, que desrespeita os atletas, sobretudo os mais pobres das favelas da região, professores e alunos, na sua opinião, deveria ser discutida em fóruns locais competentes. Todo esse processo, afirma, demonstra o comprometimento dos gestores públicos com os empresários e seus métodos arbitrários de implementar seus projetos. A Comissão de Direitos Humanos da OAB entrou, desde 2006, com diversos processos administrativos de regularização fundiária do imóvel para interesse social, conforme é previsto na lei 11.418 da Constituição Federal.
Posição do governo
O governo do Estado informou, por meio de sua assessoria, que o objetivo da demolição “é transformar o complexo do Maracanã em uma área de entretenimento para atender às necessidades de escoamento e circulação do público, de acordo com os padrões internacionais”. O projeto final do imóvel será especificado no edital de licitação da concessão do Complexo Maracanã a ser publicado ainda em janeiro, segundo o governo estadual. A empresa vencedora responderá pela gestão, operação, manutenção e readequação da área. Movimentos da sociedade civil falam da construção de um estacionamento para 10 mil carros, um museu do futebol ou shopping, e questionam a justificativa de acessibilidade ao estádio para obra, pois sua capacidade será reduzida a mais da metade do projeto original.
Em 20 de dezembro foi realizada pela EMOP a licitação para a demolição do Museu, e a empresa Compec Construções e Locações vai receber R$ 586.058,95 pelo serviço. O prazo para demolição será de 30 dias, após a assinatura do contrato. A EMOP informou em nota que seus representantes e da Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos “estiveram hoje (14) no local para atualizar os contatos com as pessoas do prédio de forma que, durante a semana, seja finalizado o cadastro social e haja remoção das pessoas e, logo que possível, demolição do prédio”. A empresa aguarda a conclusão das negociações, e todos os órgãos estaduais estão plenamente envolvidos para a demolição do ex-museu do índio, complementou a assessoria da empresa.
A Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos, por sua vez, informou que hoje (15) deve começar o cadastro e ser feita uma escuta das demandas no local. Os índios serão levados para algum abrigo, com seus pertences devidamente recolhidos, ou incluídos no aluguel social, de acordo com a lei, informou o órgão. A possibilidade de incorporação das pessoas ao programa Minha Casa Minha Vida, do governo federal, também está em estudo.
Eduardo Sá é jornalista.
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