Idealizador do programa Pontos de Cultura, Célio Turino critica a condução do projeto nas gestões Ana de Hollanda e Marta Suplicy e aponta para o crescimento de iniciativas semelhantes na América Latina. Leia a seguir a íntegra da entrevista com o historiador publicada no jornal O Povo:
De baixo para cima e de dentro para fora. É assim que o historiador paulista Célio Turino, 52, acredita que as mudanças devem acontecer. Idealizador do programa Cultura Viva, que abriga o projeto dos Pontos de Cultura, Célio recebeu convite do então ministro Gilberto Gil para ocupar a principal cadeira da Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural, pasta do Ministério da Cultura (MinC), e a missão de colocar em prática o desejo de descentralizar a gestão cultural no País.
No cenário político, Célio Turino foi secretário municipal de Cultura de Campinas (1990 a 1992) e diretor do Departamento de Programas de Lazer na Secretaria de Esportes, na gestão de Marta Suplicy, antes de “se atirar no rio Cultura Viva”. Entre 2004 e 2010, aplicou e acompanhou o desenvolvimento dos Pontos de Cultura em mais de 600 viagens pelos rincões do Brasil. A experiência foi documentada no livro Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima.
Há três anos longe do ambiente governamental, Célio começa a ver a roda girar em nova direção. Nesta entrevista por telefone, Célio relembra a concepção do projeto, a frustração de ver o plano enfraquecer e como novos modelos vêm sendo pulverizados em países vizinhos. (Elisa Parente).
Qual entendimento se tinha de gestão cultural no ministério à época da criação do Cultura Viva?
Primeiro é preciso entender que cultura é fluxo, não é estrutura. A estrutura é necessária, mas vem depois. É importante dizer que quem faz cultura não é o mercado, nem o governo, são as pessoas. O mercado transforma a cultura em produto. Quem faz cultura é a vida e a partir dessa ideia a gente foi fomentando e potencializando o que já era desenvolvido. Alguns projetos de alta referência vêm aí do Ceará, por exemplo.
A implantação do programa foi precedida por algum mapeamento nacional?
Não teve mapeamento, mas eu sabia que iria encontrar essa proposta. O povo pulsa cultura e, no entanto, as elites dominantes sempre trabalharam para deprimir essa potência, essa inventividade popular e isso é errado. Uma rezadeira é grande farmacêutica, porque conhece os segredos das ervas, mas (sua prática) é chamada de crendice. O Cultura Viva é a busca dessa potência criadora das pessoas e o entendimento de que a solução dos problemas está em nós mesmos. A mudança só pode acontecer de baixo para cima, de dentro para fora.
Um dos conceitos que norteia os Pontos de Cultura é fomentar o protagonismo. Mas isso exige que os agentes culturais se apropriem dos meios de gestão do Estado. Havia, nesse processo, o risco de os movimentos culturais se institucionalizarem?
Na verdade, o conceito do Cultura Viva é o de Estado-Rede. Não conheço nenhuma outra política pública, de qualquer outra área, que tenha aplicado o conceito de Estado-Rede e de Estado-Ampliado na escala em que a gente aplicou no Brasil. (O Cultura Viva) é uma política de vanguarda, de experimentação na relação entre o Estado e a sociedade. E isso implica em aprendizado mútuo, em que o Estado precisa aprender a conversar com o povo e o povo precisa se aprimorar dos mecanismos de gestão do Estado. No início do projeto, teve este trauma, porque a gente tem um Estado que não está preparado para conversar com o povo sobre estar em condição de protagonista, preservando a autonomia do povo. No máximo, o Estado atende uma relação de assistência e dependência. No Cultura Viva, não era isso; o protagonismo era fomentado.
Muitos artistas e proponentes não conseguiam estabelecer uma articulação em rede. O que seria preciso?
Fazer mais o exercício de compreender o outro. Porque em política cultural se vê mais ênfase no fortalecimento identitário dos grupos. A identidade é fundamental e necessária, sem ela não estabelecemos contato com o outro, mas ficar parado na identidade é limitado. Precisamos praticar a alteridade, a capacidade de perceber o outro por mais diferente que ele seja. A Teia tinha essa originalidade, era o momento em que todos se percebiam, por mais diversos que fossem. Fizemos quatro Teias, a última foi em Fortaleza, logo quando saí do Ministério (da Cultura) e que reuniu cinco mil pessoas. Infelizmente houve uma quebra nesse processo. Depois disso, a ênfase do governo – e, sobretudo, do governo Dilma - passou a ser outra, uma ênfase mais tecnicista. O Cultura Viva definha no Brasil enquanto paradoxalmente avança em outros países da América Latina. Hoje não devem existir mil pontos de cultura com fundos que recebem apoio regular do governo brasileiro.
Como o senhor avalia a condução do projeto na atual gestão de Ana de Hollanda e na de Marta Suplicy?
Não há espaço para a experimentação e para vivências. O Cultura Viva tem o elemento do encantamento muito forte, mas as coisas foram se burocratizando ainda mais, houve processos de criminalização indevida e isso fez com que o programa definhasse na gestão Ana de Hollanda. Com a Marta, e isso foi uma surpresa pra mim, esse processo se aprofundou ainda mais. Em abril, o programa deixou de existir, pelo menos do ponto de vista do apoio.
O que impossibilita a autossustentabilidade destes projetos?
Isso é controverso, porque eles são autossustentáveis. A maioria destes Pontos se mantinha antes (de se conveniar ao MinC) e seguem assim. No entanto, é muito injusto e incorreto que o Estado se exima de garantir condições mínimas de funcionamento destes Pontos. O custo é baixo, são cinco mil por mês. E essa interrupção revela toda a crueza de quando o Estado e o governo são administrados por um viés tecnicista, para não dizer tecnocrata, que é de negar um investimento tão pequeno.
Se tivesse a oportunidade, você teria feito algo diferente?
Quando eu estava no governo federal, eu ia refletindo, tentando ver o que deu certo, onde houve os erros. E acabei assumindo mais esse papel de pensador do que de gestor. O momento está mais para a percepção de movimento do que de construção de outras práticas de democracia, da relação entre Estado e sociedade. Aqui no Brasil, a política se descentralizou, teve erros, acertos e ficou aí. A gente realizou recentemente o congresso em La Paz, formamos uma rede de gestores de Cultura Viva de vários ministérios. O governo do Brasil estava lá, mas não na condição de a grande referência e sim como mais um. Quem sabe o governo perceba o quanto perdeu, retome o que vinha fazendo e pare com esse processo de desmonte deliberado do Cultura Viva. E é um desmonte que desmoraliza os grupos culturais dizendo que o que fazem é bom, mas que não sabem prestar conta, não sabem lidar com o Estado. O que é falso, porque é o Estado que não sabe lidar com eles. O sistema tem que se adequar à vida, não é a vida que deve se adequar ao sistema. Criar projetos que são grandes elefantes brancos, que a gente sabe que não vai dar certo, que o dinheiro vai só para o prédio, coloca a placa com o nome do governante e depois não põe um real para uma oficina e o espaço fica fechado. É isso que está faltando. Se esse dinheiro fosse investido nas pessoas, o resultado seria muito mais eficiente. E isso está tão claro, mas quem está no governo não quer ver, não sei se por incompetência, é também por outros interesses. Então só espero que agora esses grupos culturais, vendo o impulso que o programa está tendo fora do País, assumam a defesa da ideia do programa de forma mais contundente e os governos comecem a se envergonhar. É vergonhoso gastar R$ 1 milhão num show e nada na favela do Pirambu, com o pessoal da Acartes, ou nos meninos de Flores, em Russas, um trabalho de tanta delicadeza e de humanidade. Isso custa tão pouco para o Estado e deveria ser recuperado. Não esses gastos absurdos de dinheiro que só levam à vulgarização da vida. Temos que dizer, enquanto povo, que isto está errado.
Multimídia
O livro Ponto de Cultura: o Brasil de baixo para cima está disponível para download em www.celioturino.com.br
Fonte: O Povo
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