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quarta-feira, 10 de julho de 2013

Plebiscito


Artur de Azevedo Artur de Azevedo

Plebiscito


O conto Plebiscito, publicado no final do século 19, voltou à moda. Seu autor, o grande escritor maranhense Artur de Azevedo (1855-1908), diplomata, escritor, jornalista, etc..., ficou à sombra de seu irmão, outro grande nome das letras no Brasil: Aluízio de Azevedo. Em Plebiscito, ele capta com ironia a pequena percepção de grande parte da elite brasileira sobre esta forma de consulta popular. Vamos a ele!

Por Artur Azevedo


Plebiscito
A cena passa-se em 1890.

A família está toda reunida na sala de jantar.

O senhor Rodrigues palita os dentes, repimpado numa cadeira de balanço. Acabou de comer como um abade.

Dona Bernardina, sua esposa, está muito entretida a limpar a gaiola de um canário belga.

Os pequenos são dous, um menino e uma menina. Ela distrai-se a olhar para o canário. Ele, encostado à mesa, os pés cruzados, lê com muita atenção uma das nossas folhas diárias.

Silêncio.

De repente, o menino levanta a cabeça e pergunta:

- Papai, que é plebiscito?

O senhor Rodrigues fecha os olhos imediatamente para fingir que dorme.

O pequeno insiste:

- Papai?

Pausa:

- Papai?

Dona Bernardina intervém:

- Ó seu Rodrigues, Manduca está lhe chamando. Não durma depois do jantar, que lhe faz mal.

O senhor Rodrigues não tem remédio senão abrir os olhos.

- Que é? que desejam vocês?

- Eu queria que papai me dissesse o que é plebiscito.

- Ora essa, rapaz! Então tu vais fazer doze anos e não sabes ainda o que é plebiscito?

- Se soubesse, não perguntava.

O senhor Rodrigues volta-se para dona Bernardina, que continua muito ocupada com a gaiola:

- Ó senhora, o pequeno não sabe o que é plebiscito!

- Não admira que ele não saiba, porque eu também não sei.

- Que me diz?! Pois a senhora não sabe o que é plebiscito?

- Nem eu, nem você; aqui em casa ninguém sabe o que é plebiscito.

- Ninguém, alto lá! Creio que tenho dado provas de não ser nenhum ignorante!

- A sua cara não me engana. Você é muito prosa. Vamos: se sabe, diga o que é plebiscito! Então? A gente está esperando! Diga!...

- A senhora o que quer é enfezar-me!

- Mas, homem de Deus, para que você não há de confessar que não sabe? Não é nenhuma vergonha ignorar qualquer palavra. Já outro dia foi a mesma coisa quando Manduca lhe perguntou o que era proletário. Você falou, falou, falou, e o menino ficou sem saber!

- Proletário - acudiu o senhor Rodrigues - é o cidadão pobre que vive do trabalho mal remunerado.

- Sim, agora sabe porque foi ao dicionário; mas dou-lhe um doce, se me disser o que é plebiscito sem se arredar dessa cadeira!

- Que gostinho tem a senhora em tornar-me ridículo na presença destas crianças!

- Oh! ridículo é você mesmo quem se faz. Seria tão simples dizer: - Não sei, Manduca, não sei o que é plebiscito; vai buscar o dicionário, meu filho.

O senhor Rodrigues ergue-se de um ímpeto e brada:

- Mas se eu sei!

- Pois se sabe, diga!

- Não digo para me não humilhar diante de meus filhos! Não dou o braço a torcer! Quero conservar a força moral que devo ter nesta casa! Vá para o diabo!

E o senhor Rodrigues, exasperadíssimo, nervoso, deixa a sala de jantar e vai para o seu quarto, batendo violentamente a porta.

No quarto havia o que ele mais precisava naquela ocasião: algumas gotas de água de flor de laranja e um dicionário...

A menina toma a palavra:

- Coitado de papai! Zangou-se logo depois do jantar! Dizem que é tão perigoso!

- Não fosse tolo - observa dona Bernardina - e confessasse francamente que não sabia o que é plebiscito!

- Pois sim - acode Manduca, muito pesaroso por ter sido o causador involuntário de toda aquela discussão - pois sim, mamãe; chame papai e façam as pazes.

- Sim! Sim! façam as pazes! - diz a menina em tom meigo e suplicante. - Que tolice! Duas pessoas que se estimam tanto zangaram-se por causa do plebiscito!

Dona Bernardina dá um beijo na filha, e vai bater à porta do quarto:

- Seu Rodrigues, venha sentar-se; não vale a pena zangar-se por tão pouco.

O negociante esperava a deixa. A porta abre-se imediatamente. Ele entra, atravessa a casa, e vai sentar-se na cadeira de balanço.

- É boa! - brada o senhor Rodrigues depois de largo silêncio - é muito boa! Eu! eu ignorar a significação da palavra plebiscito! Eu!... A mulher e os filhos aproximam-se dele.

O homem continua num tom profundamente dogmático:

- Plebiscito...

E olha para todos os lados a ver se há ali mais alguém que possa aproveitar a lição.

- Plebiscito é uma lei decretada pelo povo romano, estabelecido em comícios.

- Ah! - suspiram todos, aliviados.

- Uma lei romana, percebem? E querem introduzi-la no Brasil! É mais um estrangeirismo!...


Do livro: Artur Azevedo. Contos fora de moda. Rio de Janeiro, Alhambra, 1982

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