As revelações de que o esquema de espionagem global da Agência de Segurança Nacional (NSA) dos EUA também atuava e, provavelmente, continua atuando no Brasil e nos países vizinhos, exigem uma resposta à altura de uma nação soberana que pretende – corretamente – ser uma das protagonistas das mudanças globais em curso.
De início, o caso revela em toda a sua extensão a estrutrura de inteligência de um pretenso “governo mundial” supranacional, que começou a estabelecer-se após a implosão da União Soviética e, desde o início da década passada, passou a usar a “guerra ao terror” como justificativa existencial. Mas as revelações do ex-funcionário subcontratado da NSA, Edward Snowden, sobre a promiscuidade das agências governamentais e empresas privadas que integram tal aparato de inteligência, denota um alcance muito mais amplo do que a alegada repressão ao terrorismo – argumento que, de resto, é risível, no caso de países como o Brasil. Daí as reações histéricas das autoridades estadunidenses, enfurecidas pelo fato de o esquema ter sido exposto ao mundo de tal maneira.
Com as revelações de Snowden sobre a atuação da NSA no Brasil e na América do Sul, apresentadas na série de reportagens que o jornal O Globo vem publicando desde o domingo 7 de julho, os brasileiros tomaram conhecimento de que a agência interceptou bilhões de dados sobre conversas telefônicas, e-mails e acessos à Internet, por meio de acessos diretos às empresas privadas de telecomunicações que operam no País e às empresas estadunidenses que colaboram com a agência – Facebook, Google, Microsoft e YouTube. Agora, as respostas ao desafio irão determinar até onde os tomadores de decisões e formuladores de políticas nacionais têm consciência das complexidades do cenário determinado pela estratégia hegemônica estadunidense e, principalmente, se demonstrarão a determinação necessária para defender os interesses brasileiros diante dela.
Não apenas para o governo, mas para a sociedade em geral, uma primeira lição que se impõe é a da necessidade imperativa de que o País disponha de um serviço de inteligência à altura das necessidades do turbulento cenário mundial atual. Desafortunadamente, desde o fim do regime militar, as atividades de inteligência passaram a ser vistas com desprezo, em especial, pela classe política e pela mídia, sendo automaticamente vinculadas à atuação do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI) na repressão às insurgências armadas contra o regime. Aliás, o contágio dessa espécie de “síndrome da ditadura” se estendeu a vários outros setores de atividades vitais para o Estado, inclusive as próprias Forças Armadas, submetidas a restrições de todo tipo e, com freqüência, alvos de insidiosas campanhas de fustigamento insufladas e apoiadas externamente, por redes inseridas naquele aparato de “governo mundial”.
A propósito, as autoridades brasileiras devem estar cientes de que esse esquema de “governo mundial” é o mesmo que coordena as ações do aparato ambientalista-indigenista internacional, que, por meio de sua rede de ONGs e da aceitação acrítica das suas demandas, tem demonstrado uma enorme capacidade de ingerência nas políticas públicas domésticas. Assim sendo, a indignação governamental não pode ser seletiva e restringir-se apenas aos atos de espionagem, mas deve estender-se, igualmente, às ações da virtual guerra irregular que vem sendo travada contra o desenvolvimento nacional.
Agora, apanhados de surpresa pelo vasto alcance da intrusão da NSA, autoridades federais, parlamentares, comentaristas e cidadãos comuns se vêem constrangidos a admitir a vulnerabilidade do País à ação dos sofisticados serviços de inteligência das nações hegemônicas.
A timidez do governo diante do caso ficou evidenciada na demora da resposta à ultrajante interdição imposta por vários países europeus ao sobrevoo do avião presidencial de Evo Morales, que, como observou o jornalista Elio Gaspari, em sua coluna no Globo de 10 de julho, tardou 24 horas e só foi anunciada depois que os governos de outros países latino-americanos condenaram com veemência a submissão europeia aos EUA, no episódio.
Entretanto, as reportagens do Globo, contendo as informações dos arquivos de Snowden, fornecidas pelo jornalista estadunidense Glenn Greenwald (que vive no Rio de Janeiro), forçaram uma resposta mais taxativa, começando pela convocação do embaixador Thomas Shannon, obrigado a explicar o inexplicável, entre outros, ao ministro das Comunicações Paulo Bernardo e ao chanceler Antonio Patriota. Previsivelmente, Shannon responsabilizou o jornal pelo escarcéu criado, por ter, segundo ele, divulgado informações “incorretas”.
Os dados revelados, que incluem informações do setor petrolífero brasileiro, denotam que a classificação estadunidense de “segurança nacional” – justificativa para a bisbilhotice – é ampla o bastante para incluir informações de interesse para as suas empresas que atuam na área energética e em outros setores de atividades privadas. Embora o jornal não tenha informado detalhes sobre os alvos da intrusão, não é difícil estabelecer que, além de cidadãos privados, empresas, órgãos governamentais e as Forças Armadas estejam na lista de interesse da NSA.
Espicaçado pelos fatos, até agora, o governo decidiu, fundamentalmente:
1) Levar o caso a duas instâncias da Organização das Nações Unidas (ONU), o Conselho de Direitos Humanos e a União Internacional de Telefonia. A decisão é correta em termos políticos, mas inócua em termos práticos. Como afirma a jornalista Helena Celestino, correspondente do Globo na Europa, a chance de mobilizar a comunidade internacional para, pelo menos, censurar os EUA, é “quase zero” (O Globo, 10/07/2013).
2) Criar um grupo de trabalho para “realizar um estudo técnico e jurídico” sobre a espionagem estadunidense. Apesar de a tradição nacional sobre tais grupos é de criá-los para se esquivar de uma solução real para um problema espinhoso, dando apenas uma resposta à opinião pública, a iniciativa poderá ser produtiva se enfocar os problemas reais.
A rigor, grande parte da vulnerabilidade nacional nas telecomunicações se deve à forma como foi efetuada a privatização do setor, colocando os interesses estratégicos do País num plano bem inferior aos do grupo político encabeçado pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso e dos interesses econômicos que gravitavam ao seu redor. Na época, não foram poucos os que, como o ex-presidente da Embratel, Renato Archer, advertiram sobre os riscos de se deixarem até mesmo os sistemas de comunicações das Forças Armadas em mãos privadas, mas a hegemonia prevalecente do discurso ideológico da “eficiência” e da “modernidade” não deu qualquer margem a contestações. Agora, o governo se vê obrigado a correr atrás do prejuízo, que poderia ter sido bastante reduzido, se certas iniciativas já planejadas anteriormente tivessem recebido a devida prioridade nas pautas governamentais.
A primeira é o Satélite Geoestacionário de Defesa e Comunicações Estratégicas (SGDC), que deverá ser lançado até meados de 2015, por um consórcio formado pelas empresas Telebrás e Embraer, sócias na Visiona Tecnologia Espacial, criada para operar o satélite. O satélite, com custo estimado em R$ 720 milhões, é o primeiro de uma série prevista de três e já tem três empresas pré-selecionadas para o fornecimento dos seus sistemas: Mitsubishi Electric Corporation-Melco, Space Systems/Loral e Thales Alenia Space (O Globo, 10/07/2013).
O SGDC, que ficará em órbita geoestacionária, a 36 mil quilômetros de altura, será empregado para comunicações militares e transmissão de dados para o Programa Nacional de Banda Larga.
Outras iniciativas envolvem a construção de dois cabos submarinos de fibra ótica e a instalação de um Ponto de Troca de Tráfego (PTT) internacional, também como parcerias da Telebrás com empersas privadas (esperando-se que, aprendendo as lições do escândalo, se dê preferência às nacionais). Um dos cabos fará a ligação Fortaleza-Caribe-Europa e o outro, Uruguai-Brasil-África-Europa.
Os PTTs são os centros de dados que repassam os dados da Internet e, atualmente, o Brasil depende dos PTTs instalados nos EUA, Europa e Japão, para acessar os sítios cujos provedores estejam em outros países, como o Google, Facebook e outros.
Na mesma linha, o Ministério das Comunicações está implementando um projeto de grande alcance regional, a integração das redes de fibra ótica sul-americanas, formando um anel com cerca de 10 mil quilômetros de extensão, interligando todos os países da região. No final de 2011, o diretor do Departamento de Banda Larga do ministério, Artur Coimbra, falou com entusiasmo do projeto. Segundo ele, apenas 2 mil km de linhas precisariam ser construídas para interconectar as redes já existentes em cada país, a um custo inferior a R$ 100 milhões. Além de baratear o acesso à Internet em toda a região, ele observou, com presciência, que a rede permitiria uma grande redução no tráfego de dados que passa pelos EUA e da vulnerabilidade da Internet sul-americana a um eventual atentado terrorista naquele país (o que ele não podia adivinhar é que a ameaça real era outra) (Valor Econômico, 26/11/2011).
Em junho, em Santana do Livramento (RS), foi inaugurada a primeira ligação do anel, com o Uruguai, em uma parceria da Telebrás com a Antel, a estatal de telecomunicações do país vizinho. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério das Comunicações, os governos têm avançado no planejamento da implantação dos demais pontos de conexão do anel.
A aceleração da implantação do anel sul-americano, cujo custo é ínfimo diante dos seus enormes benefícios potenciais, seria uma resposta concreta e das mais adequadas que a região poderia dar à intrusão da NSA nas suas comunicações – em um plano bastante superior ao da mera retórica dos protestos políticos.
Embora nenhuma dessas iniciativas possa neutralizar totalmente as ações de espionagem de agências de inteligência sofisticadas como a NSA, elas podem dificultá-las consideravelmente, inclusive, aumentando os riscos políticos de tais operações. Fica o ensinamento: para se poder exercer plenamente a soberania política, é preciso ter uma considerável soberania tecnológica.
Ao mesmo tempo, as atitudes dos EUA e seus parceiros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), em todo o episódio, deveriam servir como demonstração de que, para tais potências, a sua agenda hegemônica está acima de quaisquer formalidades referentes ao Direito Internacional ou filigranas do gênero, como ficou explicitado com a agressão a Evo Morales. Portanto, o governo brasileiro faria muito bem em considerar outras iniciativas de grande alcance estratégico e impacto político que os envolvessem, para também deixar claro que o País não aceita mais qualquer papel subalterno ou submisso no cenário internacional. Uma delas seria o cancelamento imediato da licitação internacional dos caças da Força Aérea Brasileira (FAB), o chamado Programa FX-2, cujos concorrentes são de origem estadunidense, francesa e sueca, sendo que este último utiliza motores e equipamentos eletrônicos fabricados nos EUA. Apesar de que, certamente, isto iria acarretar a contrariedade da FAB, é mais que hora de que os brasileiros, civis e militares, entendam que não é possível deixar de lado a dimensão política dos programas de reequipamento das Forças Armadas, em especial, no caso de aeronaves de alto desempenho (ademais, opções com desempenho pelo menos igual às citadas já foram oferecidas ao Brasil pela sua parceira no BRICS, a Federação Russa, sem quaisquer restrições de transferência de tecnologia).
Da mesma forma, quaisquer programas de cooperação de defesa com tais países, que não estejam em curso, poderiam ser adiados sine die, à espera de um momento internacional mais favorável.
Em paralelo, seria de muito bom alvitre promover um “upgrade” nas capacidades da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), para torná-la mais capaz de antecipar e se contrapor às ameaças externas, que, como sugere o “Affair Snowden”, tendem a se intensificar
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