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domingo, 3 de novembro de 2013

A poesia é uma forma de resistência



A poesia é incapaz de derrubar governos; ela não mobiliza exércitos, não controla impérios econômicos, não manipula a mídia nem detém a tecnologia de armas de destruição em massa. A palavra poética, no entanto, é uma das formas de resistência contra modelos autoritários de dominação dos povos.

Por Claudio Daniel (*)


Concretismo russo
  
Para que poetas em tempos de pobreza?Friedrich Holderlin (1770-1843)
 

Desde a rebelião romântica, iniciada em meados do século XIX, até os movimentos de vanguarda das primeiras décadas do século XX, o sonho da Modernidade foi conciliar o “mudar a vida” de Rimbaud com o “mudar o mundo” de Marx – na célebre equação apresentada por André Breton (em que está implícito o “mudar a arte” de Lautréamont). Para os surrealistas, por exemplo, não bastava mudar a maneira de fazer arte – a inovação estética (presente em obras radicais como o Peixe solúvel, do próprio Breton, e nos poemas de autores como Robert Desnos e Antonin Artaud, especialmente as peças escritas em glossolalia); seu projeto era muito mais amplo e consistente, e incluía desde o apoio à revolução socialista (Aragon e Éluard filiaram-se ao Partido Comunista Francês) à apologia dos direitos imateriais da espécie humana, como a riqueza da imaginação, a busca de novas formas de espiritualidade, a diversidade sexual e comportamental e a pluralidade de afetos, contra toda forma de censura e repreensão da moral religiosa vigente. Assim como seus colegas, os cubofuturistas russos, os poetas surrealistas franceses repensaram a polis para além da mera reprodução de um ente abstrato divinizado (o capital) e das relações de dominação entre produtores e proprietários. A poesia, nesse contexto histórico, tornou-se um elemento de mudança cultural, de questionamento de ideias e valores e proposição de novas formas de vida. Claro, nem todas as vanguardas artísticas do século passado estavam animadas com esse furor utópico – dadaístas e expressionistas, por exemplo, preferiram retratar a violência, a miséria e o absurdo da condição humana, não raro em tom melancólico e niilista. Podemos falar, nesse sentido, de duas famílias de vanguardas: as propositivas, que denunciaram a feiúra do mundo burguês como ponto de partida para a sua transformação, e as pessimistas, que se limitaram ao retrato caricatural do caos. 

Maiakovski, Neruda e Oswald de Andrade são alguns dos autores que se filiaram à primeira corrente; Tristan Tzara, Georg Trakl, Paul Celan destacam-se na segunda. O ciclo das vanguardas históricas foi tragicamente interrompido com a ascensão de regimes fascistas e com a eclosão da II Guerra Mundial – numerosos poetas e artistas europeus morreram em combate, nos campos de concentração, enlouqueceram ou se suicidaram – e o projeto utópico foi congelado, nas décadas seguintes, pelo macarthismo e pela Guerra Fria. Nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, a pesquisa estética foi retomada por pequenos grupos de autores experimentais, como o Oulipo na França e a Language Poetry, nos EUA. Porém, os novos vanguardistas centraram o foco de seu interesse na construção formal, sem um projeto cultural mais amplo (a conjunção arte/vida/mundo de Breton e seus amigos). Na antiga União Soviética, na China e nos países do Leste Europeu, por outro lado, consolidou-se o Realismo Socialista como arte oficial e única de estado, matando a diversidade na pesquisa artística (situação que seria revertida, lentamente, a partir da década de 1960). 

É possível rastrearmos poetas que nas últimas décadas conciliaram o trabalho formal com o conteúdo político – para ficarmos apenas no caso do Brasil, podemos citar a fase participante da Poesia Concreta (os poemas Greve Luxo/Lixo, de Augusto de Campos; o Cristo-dólar e o Mallarmé vietcong, de Décio Pignatari; a série Servidão de passagem, de Haroldo de Campos), e ainda os poemas engajados de Ferreira Gullar e boa parte da música popular de alto repertório dos anos 1960-1970,contemporânea dos regimes autoritários no Brasil e na América Latina (Chico Buarque, Caetano Veloso, Geraldo Vandré, Gilberto Gil, Capinam, Milton Nascimento e muitos outros). 

A redemocratização do continente sul-americano, a partir dos anos 1980, somada à queda do Muro de Berlim e ao fim do antigo campo socialista na Europa, criaram as bases ideológicas da chamada pós-modernidade, que declarou o suposto “fracasso” das vanguardas artísticas, assim como dos projetos políticos revolucionários, que teriam naufragado num ocaso das utopias. A nova fé animou escritores, músicos, cineastas e artistas plásticos que incorporaram a seu vocabulário a palavra “mercado” e criaram obras com o objetivo declarado de atingir a demanda de determinado público e obter retorno para a indústria cultural. 

Dentro dessa perspectiva, que tem como dogmas a hipotética superioridade da economia de mercado globalizado e das instituições da democracia liberal representativa, a arte distanciou-se não apenas do engajamento e da utopia, mas até da simples moralidade: para artistas como Egberto Gismonti, Gilberto Gil ou Gal Costa, cantar em Israel é um negócio como outro qualquer, sendo suficiente o pagamento do “valor de mercado” de seus shows. 

O cenário neoliberal, porém, revelou-se bem menos tranquilo do que o esperado por Francis Fukuyama, o guru norte-americano que declarou o “fim da história”. Se a década de 1990 foi o período áureo do neoliberalismo, nos anos seguintes o modelo foi mergulhando num fracasso cada vez mais profundo, atingindo não apenas a América Latina como os países do chamado Primeiro Mundo, especialmente os seus elos mais fracos – Itália, Espanha, Portugal, Grécia – cujas economias estão sendo destruídas pelas receitas neoliberais. 

Estamos longe, ainda, de uma nova situação revolucionária, porém, as fissuras no monolito ideológico do “pensamento único” criam situação propícia para que os produtores culturais voltem a exercer uma reflexão crítica sobre os fatos do mundo. Neste ponto, vamos, finalmente, falar da Palestina. A poesia, sozinha, é incapaz de mudar o mundo, mas pode ser uma ferramenta importante, no campo da cultura, para a denúncia das atrocidades cometidas pelo sionismo nos territórios palestinos ocupados, exercendo um jornalismo poético crítico e uma solidariedade ativa. Poemas sobre a Palestina publicados em sites, jornais e revistas, recitais de poesia em homenagem ao povo palestino, são também atividades políticas, de informação histórica e conscientização. A revista Zunái, no link Opinião, publica regularmente os Cadernos da Palestina, com poemas, artigos, desenhos e fotos relativos ao tema, e dessa experiência nasceu a plaquete Poemas para a Palestina, com textos de autores brasileiros,distribuída gratuitamente ao público durante o Fórum Social Mundial Palestina Livre, realizado em Porto Alegre, em 2012. 

Essa publicação, acrescida de traduções dos poemas para o idioma árabe, será reeditada no início de 2014, em versão ampliada, e parte da tiragem será enviada a escolas e universidades palestinas,como um presente de solidariedade dos poetas brasileiros ao povo palestino. Um presente que traz uma mensagem política clara: NÓS ESTAMOS COM VOCÊS! 

A revista Zunái também se engajou para a realização da exposição fotográfica dedicada aos 30 anos do massacre de Sabra e Chatila, exposta em 2012 na Biblioteca Alceu Amoroso Lima, e neste ano foi uma das organizadoras de um recital de poesia em solidariedade à Palestina, que aconteceu em São Paulo, no Club Homs. Poetas, sozinhos, são incapazes de mudar o mundo, mas podem questionar preconceitos e valores ideológicos veiculados pela mídia, apresentar uma outra versão da história, diferente da oficial, colaborar para a conscientização do caráter autoritário e racista do sionismo e atrair setores da intelectualidade para o apoio solidário à luta do povo palestino por sua autodeterminação, liberdade e soberania.


(*) Poeta, curador de literatura no Centro Cultural São Paulo, colunista da CULT e editor da revista Zunái. Participa do GT Árabe e do Comitê pelo Estado da Palestina Já.

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