Para
comemorar os 180 anos do nascimento de Edgar Degas, um dos grandes
artistas franceses do século XIX, contemporâneo dos pintores
impressionistas, trago aqui um resumo do que sobre ele disse o poeta
Paul Valéry em seu livro “Degas dança desenho”, publicado em 1938. Edgar
Degas - registrado como Hilaire Germain Edgar de Gas - foi um pintor,
desenhista, gravador e escultor francês, nascido em Paris em 19 de julho
de 1834.
Valéry, logo
no início do livro, explica que não pretende escrever exatamente uma
biografia de Degas, pois “o que me importa em um homem não são os
acidentes, nem seu nascimento, nem seus amores, nem suas tristezas, nem
quase nada do que é observável pode me servir”. Assim como também não
pretendo, com este resumo, dirigir meu olhar para esses detalhes de sua
vida pessoal, coisa que já foi feita antes aqui neste blog e que pode
ser lido aqui.
Meu recorte é coerente com meu pensamento sobre arte. Pincei do texto de Paul Valéry aquilo que pode reforçar a minha visão sobre o pintor e sua obra, no sentido de que ela pode ficar mais compreensível com esses adendos retirados do texto do poeta francês. O recorte também vem do prazer que sinto em saber que Edgar Degas caminhava no mesmo sulco daqueles que se inspiravam no caminho dos grandes mestres.
Degas, o pintor, era absolutamente voltado para seu ofício, que era praticamente o único objeto “de seus pensamentos”. Valéry mostra, em diversos momentos, como nessa sua atitude de profundo devotamento ao caráter mais “científico” do fazer artístico, ele se tornara indócil às críticas, às teorias e aos modismos e superficialidades que já se faziam presentes em seu tempo. Não tinha a menor vontade de agradar a quem quer que fosse. Conhecia muita gente, mas faltava-lhe paciência para contatos sociais, pois era “grande polemista e argumentador terrível, particularmente excitável sobre assuntos de política e de desenho”. Chegava mesmo a ser conhecido como uma pessoa “intratável”, apesar de ter lá seus momentos “encantadores”.
Seu ateliê,
quando Valéry o conheceu, era um cômodo comprido, cheio de janelas de
vidro em um dos lados, vidros sujos de poeira, que a luz externa
atravessava. O ambiente era um amontoado de coisas úteis a um pintor:
cavaletes com desenhos a carvão, uma bailarina de cera, uma mesinha
estreita repleta de caixas, frascos, lápis, pedaços de giz pastel e todo
tipo de “coisas sem nome que sempre podem servir”. Observando aquela “bagunça” abençoada, Paul Valéry reflete:
“Ocorre-me por vezes de achar que o trabalho do artista é um tipo muito antigo de trabalho; o próprio artista é uma sobrevivência, um operário ou artesão de uma espécie em vias de extinção, que fabrica fechado em seu quarto, usa procedimentos muito pessoais e muito empíricos, vive na desordem e na intimidade de suas ferramentas, vê o que quer e não o que o cerca, usa potes quebrados, sucata doméstica, objetos condenados…”
E mais à frente:
“Até aqui, o acaso ainda não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada.” Em relação ao que viria a ser o futuro, quando essa ideia de artista-artesão foi se tornando uma raridade...
No fim de sua vida, Degas ficou cego. Vivia num apartamento cuidado por uma velha empregada e se alimentava de comidas quase sem tempero, pois temia as obstruções intestinais. Seu quarto dava a impressão, conta Valéry, de que o pintor não ligava para mais nada na vida, com móveis velhos, uma escova de dente ressecada em um copo. Degas idoso vestia calças largas, sempre abertas na frente, calçava chinelos. “Ei-lo velhote nervoso - conta o poeta - quase sempre sombrio, por vezes sinistro e tristemente distraído, com recargas repentinas de furor ou de espírito, impulsos ou impaciências infantis, caprichos…” E cego.
Edgar Degas participou do movimento “naturalista” que influenciou a cultura francesa do seu tempo. Era do círculo de escritores como Émile Zola, Edmond de Goncourt, Louis Edmond Duranty e Théodore Duret. Do seu lado, era um desenhista incansável, insistente, exigente consigo mesmo. Adorava o trabalho tanto de Jean Dominique Ingres como o de Eugène Delacroix. Explorava com seus olhos atentos e seus lápis precisos o “espetáculo da vida moderna”. O fervilhar de interesses que tomava conta da Paris daqueles tempos era acompanhado de perto por ele.
Um outro
poeta, Stéphane Mallarmé, fazia parte do círculo de relações de Degas.
Os dois eram absurdamente diferentes: enquanto Mallarmé era uma
personalidade doce, afetuosa, educada, Degas era deliberadamente duro,
direto, bruto. Mas falava de Mallarmé de forma amável.
Quanto a Ingres, Degas não admitia críticas a seu trabalho, pois era para ele um gênio. Vivia repetindo frases que ouvira de Ingres:
- “O desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele…”
- “Deve-se perseguir o modelado como uma mosca que corre sobre uma folha de papel.”
- “Os músculos são meus amigos, mas esqueci seus nomes.”
- “Faça linhas… Muitas linhas, ora de memória, ora de observação da natureza”.
Mais de Valéry sobre o desenho:
“Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a.
“Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente. (...)
“(...) Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente”.
A
pintura de paisagem jamais seduziu Edgar Degas. “As raras que fez
executou em seu ateliê e totalmente de memória”, diz Paul Valéry. Era o
tempo em que os pintores impressionistas haviam abandonado seus ateliês e
iam para o campo para pintar as paisagens e registrar a influência da
luz do sol em diversos horários do dia, em diversas estações do ano.
Como o fez Monet, Manet e tantos outros. Degas não; seu modo de vida e
de ver a vida e a arte não combinavam com essas aventuras
impressionistas ao ar livre.
Valéry, em diversos momentos em seu livro, explicita sua opinião sobre a pintura, que convergia para as opiniões de Degas. Para eles, “sensibilidade” e “técnica” possuem uma relação íntima e recíproca, uma não podendo abrir mão da outra. Elogia o modo tradicional de lidar com o ofício de artista-artesão: era preciso conhecer TUDO, todas as estruturas do trabalho. E criticava: quanto menos se estuda profundamente a parte técnica da pintura e do desenho, menos invenção e criação, pois isso significa “o abandono da ação do espírito na pintura em favor do divertimento instantâneo do olho.” Já no tempo de Degas e Valéry artistas se afastavam do esforço da boa execução de uma obra. Qualquer esforço para uma pintura simples os “exaure”, denuncia Valéry...
Nada mais contemporâneo!
"Autorretrato com jaqueta verde", Degas, 1855 |
Meu recorte é coerente com meu pensamento sobre arte. Pincei do texto de Paul Valéry aquilo que pode reforçar a minha visão sobre o pintor e sua obra, no sentido de que ela pode ficar mais compreensível com esses adendos retirados do texto do poeta francês. O recorte também vem do prazer que sinto em saber que Edgar Degas caminhava no mesmo sulco daqueles que se inspiravam no caminho dos grandes mestres.
Degas, o pintor, era absolutamente voltado para seu ofício, que era praticamente o único objeto “de seus pensamentos”. Valéry mostra, em diversos momentos, como nessa sua atitude de profundo devotamento ao caráter mais “científico” do fazer artístico, ele se tornara indócil às críticas, às teorias e aos modismos e superficialidades que já se faziam presentes em seu tempo. Não tinha a menor vontade de agradar a quem quer que fosse. Conhecia muita gente, mas faltava-lhe paciência para contatos sociais, pois era “grande polemista e argumentador terrível, particularmente excitável sobre assuntos de política e de desenho”. Chegava mesmo a ser conhecido como uma pessoa “intratável”, apesar de ter lá seus momentos “encantadores”.
Desenho de Edgar Degas |
“Ocorre-me por vezes de achar que o trabalho do artista é um tipo muito antigo de trabalho; o próprio artista é uma sobrevivência, um operário ou artesão de uma espécie em vias de extinção, que fabrica fechado em seu quarto, usa procedimentos muito pessoais e muito empíricos, vive na desordem e na intimidade de suas ferramentas, vê o que quer e não o que o cerca, usa potes quebrados, sucata doméstica, objetos condenados…”
Pintura de Degas |
“Até aqui, o acaso ainda não foi eliminado dos atos; o mistério, dos procedimentos; a embriaguez, dos horários; mas não garanto nada.” Em relação ao que viria a ser o futuro, quando essa ideia de artista-artesão foi se tornando uma raridade...
No fim de sua vida, Degas ficou cego. Vivia num apartamento cuidado por uma velha empregada e se alimentava de comidas quase sem tempero, pois temia as obstruções intestinais. Seu quarto dava a impressão, conta Valéry, de que o pintor não ligava para mais nada na vida, com móveis velhos, uma escova de dente ressecada em um copo. Degas idoso vestia calças largas, sempre abertas na frente, calçava chinelos. “Ei-lo velhote nervoso - conta o poeta - quase sempre sombrio, por vezes sinistro e tristemente distraído, com recargas repentinas de furor ou de espírito, impulsos ou impaciências infantis, caprichos…” E cego.
Edgar Degas participou do movimento “naturalista” que influenciou a cultura francesa do seu tempo. Era do círculo de escritores como Émile Zola, Edmond de Goncourt, Louis Edmond Duranty e Théodore Duret. Do seu lado, era um desenhista incansável, insistente, exigente consigo mesmo. Adorava o trabalho tanto de Jean Dominique Ingres como o de Eugène Delacroix. Explorava com seus olhos atentos e seus lápis precisos o “espetáculo da vida moderna”. O fervilhar de interesses que tomava conta da Paris daqueles tempos era acompanhado de perto por ele.
Desenho de Degas |
Quanto a Ingres, Degas não admitia críticas a seu trabalho, pois era para ele um gênio. Vivia repetindo frases que ouvira de Ingres:
- “O desenho não se encontra fora do traço, está dentro dele…”
- “Deve-se perseguir o modelado como uma mosca que corre sobre uma folha de papel.”
- “Os músculos são meus amigos, mas esqueci seus nomes.”
- “Faça linhas… Muitas linhas, ora de memória, ora de observação da natureza”.
Mais de Valéry sobre o desenho:
“Há uma imensa diferença entre ver uma coisa sem o lápis na mão e vê-la desenhando-a.
“Ou melhor, são duas coisas muito diferentes que vemos. Até mesmo o objeto mais familiar a nossos olhos torna-se completamente diferente se procurarmos desenhá-lo: percebemos que o ignorávamos, que nunca o tínhamos visto realmente. (...)
“(...) Não posso tornar precisa minha percepção de uma coisa sem desenhá-la virtualmente”.
Estudo de uma bailarina |
Valéry, em diversos momentos em seu livro, explicita sua opinião sobre a pintura, que convergia para as opiniões de Degas. Para eles, “sensibilidade” e “técnica” possuem uma relação íntima e recíproca, uma não podendo abrir mão da outra. Elogia o modo tradicional de lidar com o ofício de artista-artesão: era preciso conhecer TUDO, todas as estruturas do trabalho. E criticava: quanto menos se estuda profundamente a parte técnica da pintura e do desenho, menos invenção e criação, pois isso significa “o abandono da ação do espírito na pintura em favor do divertimento instantâneo do olho.” Já no tempo de Degas e Valéry artistas se afastavam do esforço da boa execução de uma obra. Qualquer esforço para uma pintura simples os “exaure”, denuncia Valéry...
Nada mais contemporâneo!
Continuando a
falar sobre o livro "Degas dança desenho", de Paul Valéry, o poeta
continua mostrando como era o pintor Degas, aplicado, sério,
completamente dedicado ao seu ofício:
“No Louvre, um dia, eu percorria com Degas a Grande Galeria. Paramos em frente a uma importante tela de Rousseau que representa magnificamente uma alameda de carvalhos enormes.
Depois de um tempo de admiração, observei com que consciência e paciência o pintor, sem perder nada do grande efeito da massa de folhagem, executara o detalhe infinito ou produzira a ilusão suficiente desse detalhe a ponto de fazer pensar em um labor infinito.
- É soberbo - eu digo -, mas deve ser tedioso fazer todas essas folhas… Deve ser até muito chato…
- Cale-se - diz Degas -, se não fosse chato não seria divertido.”
Degas era coerente com seu pensamento: uma obra terminada era resultado de uma infinidade de estudos. Para ele, nunca uma obra era considerada terminada. “Acontecia de ele retrabalhar telas há muito tempo penduradas na paredes da casa de seus amigos, levá-las para seu antro, de onde elas raramente voltavam. Alguns, de cuja casa era frequentador, chegavam a esconder o que tinham dele.”
Degas acompanhava a política de seu tempo. Acompanhou passo a passo o famoso julgamento do Caso Dreyfus (um judeu condenado injustamente de espionagem em 1894 e que foi belamente defendido por um artigo escrito por Émile Zola, intitulado “J’accuse…!”). “Tornou-se quase fanático”, diz Valéry. “Roía as unhas”. Se conhecidos ou amigos discordavam de suas posições políticas, eram cortados de sua convivência.
Mais Valéry:
“Não conheço arte que possa envolver mais inteligência do que o desenho. (...) Quem não mede o intelecto e a vontade de Leonardo ou de Rembrandt após uma análise de seus desenhos?”
Mas hoje “quase tudo é feito sem estudos; ou melhor, quase tudo não passa de estudos, e mais ainda, estudos inutilizáveis” Um bom estudo deve ser mais profundo do que qualquer quadro, e permanecer na sombra do ateliê. Não deveria jamais estar à venda, jamais em Museus”. Aumentou o número dos maus pintores, continua Paul Valéry.
“Ninguém se diverte mais estudando cuidadosamente e com reflexões que podem levar muito longe (Leonardo), um tecido jogado sobre uma cadeira, uma folha, uma mão… nem buscando nesse confronto com o objeto, sem pressa e sem utilidade imediata, certa ciência de si mesmo, da manobra combinada de seu intelecto, de seu desejo, de sua visão e de sua mão sobre uma coisa dada… e com o público ausente. (Este último ponto é capital: deve-se tentar espantar apenas a si mesmo.)”
E prevê, décadas atrás:
“Foi assim que a infeliz Pintura viu-se presa dos métodos rápidos e poderosos da política e da Bolsa”.
Degas era louco por Desenho. “O trabalho, o Desenho, tinham se tornado nele uma paixão, uma disciplina, o objeto de uma mística e uma ética que se bastavam por si mesmas (…)”. Com 70 anos de idade Degas disse a seu amigo Ernest Rouart:
- “É preciso ter uma ideia elevada, não do que se faz, mas do que se poderá fazer um dia; sem o quê não vale a pena trabalhar.” Ou seja, não importa o tempo “perdido” no apuramento técnico, pois ele leva incontestavelmente a patamares muito mais altos que poderão ser alcançados pelos que se dedicam a estudar.
Pois
“A ideia de possuir inteiramente a prática de uma arte, de conquistar a liberdade de fazer uso de seus meios com tanta segurança e leveza quanto de nossos sentidos e membros em seus usos comuns, é daquelas ideias que arrancam de certos homens uma constância, um esforço, exercícios e tormentos infinitos”.
Uma folha de papel, algum lápis ou caneta, é o suficiente para esse mergulho fundo no reino da criação. Tudo é muito simples e tudo muito complexo. Nessa dicotomia, Degas dizia que a pintura é, para os sem conhecimento, algo bastante fácil. Mas quando se tem conhecimento… ah… se torna muito difícil! “Ah! então… É completamente diferente!”.
Se o pintor buscava os caminhos mais fáceis, isso dizia - e diz - muito a respeito de seu próprio caráter. O caminho mais fácil não é o caminho “da obra de um homem completo”. E Valéry complementa: quanto mais o artista se distancia do aprendizado ao qual se dedicaram os maiores mestres, mais “é do homem total que estamos nos distanciando assim. O homem completo está morrendo.”
Arte moderna e Grande Arte
“A arte moderna tende a explorar quase exclusivamente a sensibilidade sensorial, em prejuízo da sensibilidade geral ou afetiva, e de nossas faculdades de construção, de adição das durações e de transformações pela mente. Sabe maravilhosamente bem despertar a atenção e usa todos os modos para estimulá-la: intensidades, contrastes, enigmas, surpresas”. Não é isso o que vemos nos dias de hoje, com a espetacularização da arte?
“(...) observo que o modo de ser da modernidade é exatamente o de uma intoxicação. Precisamos aumentar a dose, ou trocar de veneno. Essa é a lei”!!!! Nada mais atual, não é? E Paul Valéry explica:
“O que chamo de ‘Grande Arte’ é simplesmente a arte que exige que todas as faculdades de um homem sejam utilizadas nela, e cujas obras sejam tais que todas as faculdades de outro sejam invocadas e se interessem por entendê-las…”
“O demônio da mudança-pela-mudança é o verdadeiro pai de muitas coisas…” e em nossos dias atuais.
Passando de um período a outro, de uma moda a outra, sugere “que não há objetos, que é preciso proibir-se a expressar mais do que as propriedades da retina… Tudo começa a vibrar.
O Desenho não é a Forma
“Degas gostava de falar sobre pintura e não suportava que se falasse sobre ela".
Valéry perguntava o que ele entendia por Desenho. Respondia:
- “O Desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma”. Valéry dizia não compreender o que ele falava. Degas gritava, berrava que o poeta não entendia de nada e se metia em coisas que não eram de sua alçada...
Durante um jantar com Mallarmé, Degas disse que “um artista só é um artista em poucos momentos, por um esforço da vontade”. Isso foi ouvido por Berthe Morisot, a pintora impressionista.
Em sua convivência com o pintor Degas, Valéry foi aprofundando suas reflexões sobre arte, que expõe no livro “Degas dança desenho”. São muito atuais e parecem ter sido escritas para esta época contemporânea. Como um artífice da linguagem, Valéry dizia que “a linguagem do país das Artes é turvada com toda uma metafísica que se mescla de maneira muito íntima às puras noções da prática.” E mais:
“Nunca vi nada de certo e ordenado sobre o desenho, por exemplo, que é antes de mais nada uma arte complexa, cuja análise ótica e motora não foi realizada, nem mesmo iniciada, a meu conhecimento.
“Se tivesse existido, a célebre expressão de Degas, ‘o modo de ver a forma’, teria sido completamente diferente: teria explicado o que ele queria dizer, e não o sentido que cada um pode atribuir-lhe.
“Mas eis a pior consequência da impureza da linguagem das grandes artes: ela leva a não se saber mais o que se quer. Nada mais espantoso do que certos comentários ou programas de artistas, carregados de filosofia, de considerações às vezes matemáticas e frequentemente ingênuas, invocadas com vistas a preparar para o entendimento de suas obras e a dispor o público para suportar sua visão. Mas ao contrário, a visão nas artes deve por si só introduzir a fruição e, se houver alguma ideia a sugerir, conduzir a ela por suas percepções. Um pintor deveria sempre pensar em pintar para alguém que não tivesse a faculdade da linguagem articulada… Não devemos esquecer que uma coisa bela nos deixa mudos de admiração…”
Os medíocres possuem mais certezas
Valéry adiciona a seu texto algumas recordações “muito preciosas” de Ernest Rouart sobre seu amigo Edgar Degas, como estas:
- “Degas não se contentava muito facilmente, e raro achava que uma pintura estivesse no ponto.
- “Para ficar satisfeito, aquilo de que precisava é que sua obra fosse completa, não na perfeição dos detalhes, mas na impressão de conjunto que ela daria; na construção, antes de tudo, e na coordenação dos elementos diversos que a compunham, ou seja, nas relações corretas das linhas do desenho, dos valores e das cores entre si.
- “A necessidade de retomar uma coisa que considerava incompleta jamais o abandonou e, em sua casa, inúmeras eram as telas que tinha a intenção de retocar, não as achando dignas de deixar seu ateliê no estado em que se encontravam”.
Como professor de Rouart, era rígido. Um dia mandou o aluno ao Louvre para copiar um quadro do pintor italiano Mantegna, “A sabedoria vence os vícios”.
Sua orientação era de que a primeira coisa a fazer era uma imprimação
em verde (uma camada de pinceladas em pigmento verde misturado a
terebentina, bastante diluídas). E lembrou ao aluno que deveria deixar
secar essa primeira camada “durante meses”, pois o próprio “Ticiano esperava talvez um ano antes de retomar um quadro!”.
No fim de sua vida, diz Valéry, Degas tinha se enamorado ainda mais da cor e dos efeitos que ela pode produzir. “Sua admiração pela cor e pela técnica dos antigos levava-o com frequência a fazer pesquisas nesse sentido e a desenvolver teorias e sistemas sobre a execução natural da pintura, sobre a técnica, como ele dizia”.
“É lutando sobre a tela que um artista como ele consegue conciliar a teoria e a prática”, observou Ernest Rouart.
No dia 25 de setembro de 1917, Degas morreu. “Morre
tendo vivido demais, pois morre de sua luz. O começo de sua lenta
diminuição foi marcado pelo enfraquecimento mais pronunciado da visão. O
trabalho, pouco a pouco, tornou-se impossível para ele, e sua razão de
viver esvaiu-se antes de sua vida. Uma das últimas obras que fez foi seu
retrato com barba branca, arrepiada e curta, e com boné. Mostrava-o e
dizia: ‘Pareço um cachorro’.”
Era um solitário perene “e o foi em todas as modalidades da solidão. Solitário pelo seu caráter; solitário pela distinção e pela particularidade de sua natureza; solitário pela probidade; solitário pelo orgulho do seu rigor, pela inflexibilidade de seus princípios e de seus julgamentos; solitário por sua arte, ou seja, pelo que exigia de si mesmo”.
Justamente por ter sido o ser “estranho” que Degas foi, é que Paul Valéry questiona: “Não seria hoje uma espécie mais ou menos desaparecida, essa espécie de personagens difíceis e incorruptíveis?” Ele, Degas, era avesso a qualquer tipo de bajulação que foi se tornando cada vez mais um costume nos tempos modernos. Para ele o brilho no mundo moderno era desprezível; odiava - e odiaria ainda mais hoje - esses que se voltam a agradar o mercado e a crítica, fazendo apenas o que se espera deles:
“Uma noite Degas fazia troça de Forain, que corria, chamado por um timbre imperioso, para atender o telefone. ‘É isso, o telefone?... Tocam um sinete e você acorre...’ Seria fácil generalizar essa expressão sarcástica. ‘É isso a Glória?... Você é citado, e acha que é alguém!...”
Nada mais contemporâneo...
“No Louvre, um dia, eu percorria com Degas a Grande Galeria. Paramos em frente a uma importante tela de Rousseau que representa magnificamente uma alameda de carvalhos enormes.
Depois de um tempo de admiração, observei com que consciência e paciência o pintor, sem perder nada do grande efeito da massa de folhagem, executara o detalhe infinito ou produzira a ilusão suficiente desse detalhe a ponto de fazer pensar em um labor infinito.
- É soberbo - eu digo -, mas deve ser tedioso fazer todas essas folhas… Deve ser até muito chato…
- Cale-se - diz Degas -, se não fosse chato não seria divertido.”
Retrato de Edmond Duranty |
Degas era coerente com seu pensamento: uma obra terminada era resultado de uma infinidade de estudos. Para ele, nunca uma obra era considerada terminada. “Acontecia de ele retrabalhar telas há muito tempo penduradas na paredes da casa de seus amigos, levá-las para seu antro, de onde elas raramente voltavam. Alguns, de cuja casa era frequentador, chegavam a esconder o que tinham dele.”
Degas acompanhava a política de seu tempo. Acompanhou passo a passo o famoso julgamento do Caso Dreyfus (um judeu condenado injustamente de espionagem em 1894 e que foi belamente defendido por um artigo escrito por Émile Zola, intitulado “J’accuse…!”). “Tornou-se quase fanático”, diz Valéry. “Roía as unhas”. Se conhecidos ou amigos discordavam de suas posições políticas, eram cortados de sua convivência.
Mais Valéry:
“Não conheço arte que possa envolver mais inteligência do que o desenho. (...) Quem não mede o intelecto e a vontade de Leonardo ou de Rembrandt após uma análise de seus desenhos?”
Mas hoje “quase tudo é feito sem estudos; ou melhor, quase tudo não passa de estudos, e mais ainda, estudos inutilizáveis” Um bom estudo deve ser mais profundo do que qualquer quadro, e permanecer na sombra do ateliê. Não deveria jamais estar à venda, jamais em Museus”. Aumentou o número dos maus pintores, continua Paul Valéry.
“Ninguém se diverte mais estudando cuidadosamente e com reflexões que podem levar muito longe (Leonardo), um tecido jogado sobre uma cadeira, uma folha, uma mão… nem buscando nesse confronto com o objeto, sem pressa e sem utilidade imediata, certa ciência de si mesmo, da manobra combinada de seu intelecto, de seu desejo, de sua visão e de sua mão sobre uma coisa dada… e com o público ausente. (Este último ponto é capital: deve-se tentar espantar apenas a si mesmo.)”
E prevê, décadas atrás:
“Foi assim que a infeliz Pintura viu-se presa dos métodos rápidos e poderosos da política e da Bolsa”.
Degas era louco por Desenho. “O trabalho, o Desenho, tinham se tornado nele uma paixão, uma disciplina, o objeto de uma mística e uma ética que se bastavam por si mesmas (…)”. Com 70 anos de idade Degas disse a seu amigo Ernest Rouart:
- “É preciso ter uma ideia elevada, não do que se faz, mas do que se poderá fazer um dia; sem o quê não vale a pena trabalhar.” Ou seja, não importa o tempo “perdido” no apuramento técnico, pois ele leva incontestavelmente a patamares muito mais altos que poderão ser alcançados pelos que se dedicam a estudar.
Pois
“A ideia de possuir inteiramente a prática de uma arte, de conquistar a liberdade de fazer uso de seus meios com tanta segurança e leveza quanto de nossos sentidos e membros em seus usos comuns, é daquelas ideias que arrancam de certos homens uma constância, um esforço, exercícios e tormentos infinitos”.
Uma folha de papel, algum lápis ou caneta, é o suficiente para esse mergulho fundo no reino da criação. Tudo é muito simples e tudo muito complexo. Nessa dicotomia, Degas dizia que a pintura é, para os sem conhecimento, algo bastante fácil. Mas quando se tem conhecimento… ah… se torna muito difícil! “Ah! então… É completamente diferente!”.
Se o pintor buscava os caminhos mais fáceis, isso dizia - e diz - muito a respeito de seu próprio caráter. O caminho mais fácil não é o caminho “da obra de um homem completo”. E Valéry complementa: quanto mais o artista se distancia do aprendizado ao qual se dedicaram os maiores mestres, mais “é do homem total que estamos nos distanciando assim. O homem completo está morrendo.”
"Aula de balé", Degas |
“A arte moderna tende a explorar quase exclusivamente a sensibilidade sensorial, em prejuízo da sensibilidade geral ou afetiva, e de nossas faculdades de construção, de adição das durações e de transformações pela mente. Sabe maravilhosamente bem despertar a atenção e usa todos os modos para estimulá-la: intensidades, contrastes, enigmas, surpresas”. Não é isso o que vemos nos dias de hoje, com a espetacularização da arte?
“(...) observo que o modo de ser da modernidade é exatamente o de uma intoxicação. Precisamos aumentar a dose, ou trocar de veneno. Essa é a lei”!!!! Nada mais atual, não é? E Paul Valéry explica:
“O que chamo de ‘Grande Arte’ é simplesmente a arte que exige que todas as faculdades de um homem sejam utilizadas nela, e cujas obras sejam tais que todas as faculdades de outro sejam invocadas e se interessem por entendê-las…”
“O demônio da mudança-pela-mudança é o verdadeiro pai de muitas coisas…” e em nossos dias atuais.
Passando de um período a outro, de uma moda a outra, sugere “que não há objetos, que é preciso proibir-se a expressar mais do que as propriedades da retina… Tudo começa a vibrar.
O Desenho não é a Forma
“Degas gostava de falar sobre pintura e não suportava que se falasse sobre ela".
Valéry perguntava o que ele entendia por Desenho. Respondia:
- “O Desenho não é a forma, é a maneira de ver a forma”. Valéry dizia não compreender o que ele falava. Degas gritava, berrava que o poeta não entendia de nada e se metia em coisas que não eram de sua alçada...
Durante um jantar com Mallarmé, Degas disse que “um artista só é um artista em poucos momentos, por um esforço da vontade”. Isso foi ouvido por Berthe Morisot, a pintora impressionista.
Em sua convivência com o pintor Degas, Valéry foi aprofundando suas reflexões sobre arte, que expõe no livro “Degas dança desenho”. São muito atuais e parecem ter sido escritas para esta época contemporânea. Como um artífice da linguagem, Valéry dizia que “a linguagem do país das Artes é turvada com toda uma metafísica que se mescla de maneira muito íntima às puras noções da prática.” E mais:
“Nunca vi nada de certo e ordenado sobre o desenho, por exemplo, que é antes de mais nada uma arte complexa, cuja análise ótica e motora não foi realizada, nem mesmo iniciada, a meu conhecimento.
“Se tivesse existido, a célebre expressão de Degas, ‘o modo de ver a forma’, teria sido completamente diferente: teria explicado o que ele queria dizer, e não o sentido que cada um pode atribuir-lhe.
“Mas eis a pior consequência da impureza da linguagem das grandes artes: ela leva a não se saber mais o que se quer. Nada mais espantoso do que certos comentários ou programas de artistas, carregados de filosofia, de considerações às vezes matemáticas e frequentemente ingênuas, invocadas com vistas a preparar para o entendimento de suas obras e a dispor o público para suportar sua visão. Mas ao contrário, a visão nas artes deve por si só introduzir a fruição e, se houver alguma ideia a sugerir, conduzir a ela por suas percepções. Um pintor deveria sempre pensar em pintar para alguém que não tivesse a faculdade da linguagem articulada… Não devemos esquecer que uma coisa bela nos deixa mudos de admiração…”
Os medíocres possuem mais certezas
Valéry adiciona a seu texto algumas recordações “muito preciosas” de Ernest Rouart sobre seu amigo Edgar Degas, como estas:
- “Degas não se contentava muito facilmente, e raro achava que uma pintura estivesse no ponto.
- “Para ficar satisfeito, aquilo de que precisava é que sua obra fosse completa, não na perfeição dos detalhes, mas na impressão de conjunto que ela daria; na construção, antes de tudo, e na coordenação dos elementos diversos que a compunham, ou seja, nas relações corretas das linhas do desenho, dos valores e das cores entre si.
- “A necessidade de retomar uma coisa que considerava incompleta jamais o abandonou e, em sua casa, inúmeras eram as telas que tinha a intenção de retocar, não as achando dignas de deixar seu ateliê no estado em que se encontravam”.
"Melancolia", Degas |
No fim de sua vida, diz Valéry, Degas tinha se enamorado ainda mais da cor e dos efeitos que ela pode produzir. “Sua admiração pela cor e pela técnica dos antigos levava-o com frequência a fazer pesquisas nesse sentido e a desenvolver teorias e sistemas sobre a execução natural da pintura, sobre a técnica, como ele dizia”.
“É lutando sobre a tela que um artista como ele consegue conciliar a teoria e a prática”, observou Ernest Rouart.
"A espera", Degas |
Era um solitário perene “e o foi em todas as modalidades da solidão. Solitário pelo seu caráter; solitário pela distinção e pela particularidade de sua natureza; solitário pela probidade; solitário pelo orgulho do seu rigor, pela inflexibilidade de seus princípios e de seus julgamentos; solitário por sua arte, ou seja, pelo que exigia de si mesmo”.
Justamente por ter sido o ser “estranho” que Degas foi, é que Paul Valéry questiona: “Não seria hoje uma espécie mais ou menos desaparecida, essa espécie de personagens difíceis e incorruptíveis?” Ele, Degas, era avesso a qualquer tipo de bajulação que foi se tornando cada vez mais um costume nos tempos modernos. Para ele o brilho no mundo moderno era desprezível; odiava - e odiaria ainda mais hoje - esses que se voltam a agradar o mercado e a crítica, fazendo apenas o que se espera deles:
“Uma noite Degas fazia troça de Forain, que corria, chamado por um timbre imperioso, para atender o telefone. ‘É isso, o telefone?... Tocam um sinete e você acorre...’ Seria fácil generalizar essa expressão sarcástica. ‘É isso a Glória?... Você é citado, e acha que é alguém!...”
Nada mais contemporâneo...
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