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sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Noel Guarany, condor missioneiro


Henrique Júdice Magalhães   
Eu não sou cantor mitológico, eu existo. Eu vivo pelas pulperías1. Eu não canto no Maracanãzinho por 50 milhões de dólares. Me sobre o puchero2, e por ai vou andando — com minhas opiniões, claro! Eu não tenho compromisso com doutores, MTGs, governadores, deputados... Eu estou descrevendo uma realidade nua e crua. Claro que vai doer em alguém, mas vai servir de alento para muitas almas sofredoras que como eu andam por aí vendo essas barbaridades. Eu não quero ser artista, nem coisa nenhuma.
Perguntem no Rio Grande do Sul por Noel Guarany (1941-1998), autor dessas palavras — proferidas num show realizado no final dos anos 70 , e a resposta, muito provavelmente, virá em tom de reverência. Afinal, estamos falando de um dos maiores nomes da cultura popular do estado, um dos quatro troncos missioneiros.
Cenário da epopéia da primeira república rio-grandense — a Guarani -, berço da história do estado, a área dos Sete Povos das Missões abriga uma tradição combativa e libertária análoga — para citar um exemplo — à de Ouro Preto, em Minas Gerais. Num lugar como noutro, está ainda presente até no ar que se respira o inconformismo diante da derrota de rebeliões contra o colonialismo.
Nascido em Bossoroca — à época distrito de São Luiz Gonzaga -, Noel aprendeu cedo a orgulhar-se desta herança. Este orgulho inscreveria no próprio nome, numa demonstração de sua escolha sobre de que lado iria ficar durante a vida: nascido Noel Borges do Canto Fabrício da Silva, poderia exibir o sobrenome de José Borges do Canto, comandante das tropas portuguesas que conquistaram em definitivo o território missioneiro. Mas preferiu evocar a porção de sangue índio que levava nas veias e chamar-se Noel Guarany.

PEREGRINO DOS CAMINHOS

Ainda adolescente, aprendeu, sem professor, o idioma guarani e o manejo do violão. "Eu saía a percorrer estância por estância. Nessa época não havia televisão, apenas alguns rádios e tal era a alegria do povo, com a minha chegada, que logo carneavam uma vaca e largavam um "próprio" (mensageiro) à vizinhança, avisar que eu havia chegado, que viessem conhecer o violonista e já estava formado o baile. Aí eu amanhecia tocando para o povo dançar" — recorda em um depoimento reproduzido no sitio que o professor Cláudio Augusto Probst organizou em sua homenagem (www.probst.pro.br). Nesta época, no entanto, "não estava ainda definida a música missioneira", como salienta Noel no mesmo depoimento.
Aos 19 anos, foi servir o Exército no 3º Regimento de Cavalaria, em São Luiz Gonzaga. Ali, presenciou a conduta desonrada de altos oficiais, o que foi para ele um choque. "Não podia acreditar que militares graduados também roubassem. Aprendi mais tarde que o roubo e a corrupção foram os maiores amigos das ditaduras militares" — recordaria já maduro.
A decisão de abandonar a caserna foi capital para que Noel Fabrício pudesse se tornar Noel Guarany. Uma vez concretizada, ele cruzou a fronteira da Argentina. Radicou-se na província de Corrientes, onde trabalhou como lenhador e balseiro. Durante a década de 1960, andou pela também província de Misiones, assim como pelo Paraguai, Uruguai, Mato Grosso e Bolívia. Peregrino dos caminhos / no rumo dos horizontes,/ matando a sede da terra,/ vivendo a sede de andar, cantaria depois em Eu e o Rio, composta em parceria com Glênio Fagundes.
Convivendo e compartilhando o duro cotidiano com a gente simples do povo de todos esses lugares (ervateiros, balseiros, índios), Noel observou sua linguagem, sua musicalidade e suas formas de expressão. Retratou a vida dessas pessoas em canções como Lavadeira do Uruguai, composta em parceria com João Sampaio da Silva:
Ajoelhada junto ao rio,
a cantar com a correnteza,
lavando suores profanos
dos ricos da redondeza,
vê o lombo do dourado
que falta na sua mesa.

"CANTAR MINHA TERRA"

"Parecia-me um castigo quando nos rancherios mais humildes, fosse do país que fosse, com olhar sincero de patriotismo, um campesino, mesmo abandonado, pelos governos e instituições, dizia ao empunhar qualquer instrumento: "vou cantar uma canção de minha terra" — recordaria, lembrando o contraste entre os níveis de consciência nos países vizinhos e no Brasil. "Era um verdadeiro absurdo falar em arte missioneira naquela época" — diz em outra entrevista reproduzida no sitio de Probst, em que afirma, sem nenhuma modéstia, mas de posse da verdade, que teve que incutir na cabeça de intelectuais este conceito.
Naquele tempo, a identidade cultural riograndense encontrava-se em processo de reformulação, mercê da crise e das mudanças estruturais por que passava o estado. A partir da década de 40, deflagrou-se um movimento espontâneo de valorização do "ser gaúcho", mas tendo como paradigma o homem da Fronteira Sudoeste.
Na música, a confusão era ainda maior: o que fazia sucesso no estado e era apresentado como "gaúcho", nos anos 50 e 60, era a produção de artistas como Teixeirinha e os irmãos Bertussi, água com açúcar na forma e no conteúdo, "totalmente inautêntica" na definição do próprio Noel. Além disso — recordou -, crescia o poder da indústria fonográfica originária do USA e sediada no Rio e em São Paulo, "o rádio vivia a martelar alienações desleais ao povo sul-americano". Contra esta situação, Noel Guarany insurgiu-se, erguendo aquela que, desde o retorno ao Brasil, soube sem sombra de dúvidas que seria sua bandeira: "cantar a minha terra", em suas próprias palavras.
O resgate e redefinição da identidade missioneira a partir dos anos 60 é um dos episódios mais interessantes da cultura brasileira, não apenas por sua importância mas pela forma como se deu: espontaneamente, desde o seio do povo e totalmente à margem dos âmbitos letrados. Imprensa e universidade só vieram a dar-se conta de fenômeno depois que ele já havia ocorrido. Seus artífices foram artistas populares dotados de consciência, como Noel e seus parceiros — todos homens de sólida cultura, mas todos autodidatas.

PAMPA SEM FRONTEIRAS

A evolução dos acontecimentos deu-se à margem, inclusive, do Movimento Tradicionalista Gaúcho (MTG). Guarany vivia às turras com a entidade, choque que se inscreve num embate ainda não resolvido: aquele que se dá, na definição de um dos mais brilhantes estudiosos da cultura do Rio Grande do Sul, Jorge Frederico Duarte Webber, entre castelhanófobos e pan-gauchistas.
Enquanto os primeiros pretendem que a lusofonia seja elemento definidor do ser gaúcho e denunciam como alienígena tudo o que venha da Argentina ou do Uruguai, os segundos falam em "três pátrias gaúchas" (Brasil, Argentina e Uruguai) ou "quatro pátrias missioneiras" (que inclui o Paraguai). A castelhanofobia é mais forte na fronteira do Uruguai, cuja história é marcada pelo enfrentamento militar com os países platinos; o pan-gauchismo predomina entre os missioneiros, que surgem da luta dos índios guaranis, primeiro contra os portugueses e logo contra os espanhóis — e também da mistura com ambos.
A castelhanofobia não apenas é intrinsecamente reacionária em virtude de sua pretensão de congelar a história e a cultura; a escolha da imagem do homem da fronteira sudoeste como paradigma do gaúcho liga-se frequentemente à glorificação do latifúndio. Já o pan-gauchismo é geralmente progressista. Primeiro, por preconizar a união e a solidariedade entre povos irmãos, formando um (ou uma, já que em espanhol a palavra é feminina) pampa sem fronteiras. E segundo porque, principalmente em sua versão missioneira, não compartilha a exaltação da grande propriedade rural. Muito pelo contrário: a destruição das Missões pelos portugueses significou a destruição do sistema de produção coletiva dos índios e sua transformação em párias sem terra, trauma histórico que ainda persiste. Noel colocaria sua voz a serviço deste sentimento em Precedência:
Talvez, paisano, o meu verso
em muito te desagrade.
É que a tua propriedade,
as Sesmarias D'el Rey",
meus bisavós não venderam,
são terras que nunca dei.
O que Jayme Caetano Braun fez na poesia, com versos em espanhol e tratando de temas da história e da cultura da Argentina e do Uruguai (ver AND 27), Noel fez na música ao trazer para cá ritmos que ouviu na Argentina e no Paraguai. Tinha enorme admiração por músicos dos países vizinhos, como Atahualpa Yupanqui, Antonio Tarragó Ros e Mario Millán Medina. Sua visão da identidade gaúcha não cabia na estreiteza dos burocratas: definia-se como gaúcho e paralelamente como missioneiro, como brasileiro e também como latino-americano. Em Defeito, sintetizaria esta pluralidade:
Regionalismo não falo,
só em termos continentinos:
de oceano prá oceano,
do Caribe ao Muro Andino,
meu povo só tem fronteiras
marcadas pelo destino.

POPULAR AUTÊNTICO

Conta-se (ninguém sabe se é verdade ou lenda) que um dirigente do MTG, ao visitar o galpão crioulo que Noel mantinha em Itaqui, pediu para falar com o patrão, ao que o cantor teria respondido: "Aqui não tem patrão, e se tiver, eu mato". No entanto, eram boas suas relações com um dos fundadores do movimento, Barbosa Lessa, de quem musicou poemas. É de Lessa a melhor definição de Noel Guarany, escrita na capa do disco Destino Missioneiro, de 1973: "autêntico como cantor e como gente".
Justamente por essa rara autenticidade, viria a desentender-se — sempre com razão — com muita gente. Por exemplo, com a indústria fonográfica monopolista. Rompeu publicamente com as gravadoras RCA, RGE e EMI, que negligenciavam a divulgação de seus discos e não lhe repassavam o dinheiro referente aos direitos autorais, além de não adotarem os cuidados técnicos necessários, por exemplo na prensagem dos LPs. Vários de seus discos foram lançados por selos independentes — caso dePayador, Pampa, Guitarra gravado em parceria com Jayme Caetano Braun e lançado em 1976, um divisor de águas na música riograndense.
Eram igualmente péssimas suas relações com os burocratas da Ordem dos Músicos, que chegou a fustigar publicamente em suas apresentações.
Quem viu Noel Guarany no palco, aliás, conta que o que ele dizia no intervalo entre uma música e outra era um caso à parte: abria a boca para falar de tudo que estava errado. Frequentemente desancava a gerência militar, levando ao êxtase a platéia — muitas vezes composta por estudantes para os quais cantava sem cobrar. Milico na minha frente/ não passa sem ser notado, cantou em Chamarrita de Galpão.
Há uma gravação de um show realizado em 1979, no CD Destino Missioneiro, que recupera alguns desses momentos. Entre uma música e outra, Noel diz, por exemplo:
Eu tentei me solidarizar com os grevistas (refere-se a uma greve de metalúrgicos), tal como fiz aqui com os bancários, mas lembrei que aqui ainda eu consigo alguma coisa e que em São Paulo ou Rio de Janeiro eu sou visado. Chico Buarque quis cantar, não deixaram. E eu, pior ainda, porque eles pensam que o gaúcho é mais valente que os outros.
O aspecto propriamente musical de suas apresentações não era menos autêntico. Noel apresentava-se munido apenas da voz forte e do violão que sabia tocar magistralmente. Gostava de dizer que a música gaúcha começou a decair depois da introdução do primeiro instrumento alienígena: a gaita 3. Era, evidentemente, uma hipérbole: em Payador, Pampa, Guitarra deixou-se acompanhar pelo bandoneón de Raulito Barbosa.

VIDA BREVE

A carreira de Noel Guarany durou pouco. Mas os três lustros transcorridos de 1970 — quando venceu o VII Festival do Folclore Correntino ao lado de Cenair Maicá com a música Fandango na Fronteira em Santo Tomé, na Argentina — 1985 — quando deixou os palcos em protesto contra o tratamento dispensado pelas grandes gravadoras e pelo poder público à classe dos artistas -, foram suficientes para que ele mudasse para sempre a história da música no Rio Grande do Sul.
Ainda ensaiaria um retorno em 1988, com o lançamento dos discos A Volta do Missioneiro e Troncos Missioneiros, este com Jayme, Cenair e Pedro Ortaça, e algumas apresentações. Mas uma doença degenerativa do sistema nervoso já o consumia de maneira irreversível. Passou os últimos anos recolhido em sua casa, em Santa Maria, muito debilitado e com alguns poucos lampejos de lucidez.
Em abril de 1994, o jornal O Desgarrado, de Santa Cruz do Sul, foi visitá-lo. Foi a última vez que recebeu a imprensa antes passar à eternidade, o que ocorreria quatro anos depois. Já não conseguia articular idéias e responder às perguntas. Em sua memória, só restava nítida a lembrança dos amigos: Cenair, Jayme, Ortaça, Atahualpa Yupanqui e o uruguaio Aníbal Sampayo — e de como, em suas próprias palavras, "gostava de ser cantor".

1 — No linguajar da região missioneira, armazém, centro comercial e social dos pequenos povoados. Era onde os homens simples do povo se encontravam para conversar e divertir-se.
2 — Prato típico gaúcho à base de carne fatiada e legumes cozidos.
3 — No Rio Grande do Sul, espécie de sanfona; instrumento tido pela visão predominante no movimento tradicionalista como mais representativo da cultura musical do estado.

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