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segunda-feira, 23 de setembro de 2013

José Saramago: os cegos que, vendo, não veem.

Brueghel
A Parábola dos Cegos. Pieter Bruegel (1568)



Um dia normal na cidade. Os carros parados numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecidas e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando uma palavra, uma, não, duas: “Estou cego”.

Por Ângela Almeida


Assim começa o livro Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago (1922-2010). A “treva branca” que acomete esse primeiro cego vai se espalhar incontrolavelmente pela cidade e, em breve, uma multidão de cegos precisará aprender a viver de novo em quarentena.


Mais da metade da narrativa trata de descrever a vida que se desenrola no cotidiano do manicômio, em que os primeiros grupos de cegos vão sendo compulsoriamente internados. “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”. E, de fato, o que se vê é uma redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem. 

No meio da mais profunda miséria e generalizada degradação, com a falta de condições de higiene e saúde atingindo limites inimagináveis, há ainda lugar para que um grupo de cegos malfeitores queira tomar para si as rédeas do poder. Um pequeno grupo de poderosos que, munidos de paus, ferros e uma arma de fogo, controlando a distribuição dos bens essenciais – a comida é o verdadeiro instrumento de poder – disso se aproveitam para explorar a maioria que não dispõe de meios para se defender. 

Quando um incêndio provocado no manicômio vem permitir o acesso ao exterior pelos seus ocupantes, estes se dão conta do estado de calamidade absoluta que reinava na cidade. Todos haviam cegado, as pessoas iam vivendo pelas ruas, sem rumo, sem casa, no meio da mais absurda imundície. 

A prioridade de todos está em arranjar mantimentos, o que não se revela fácil para quem não vê. A cegueira branca implicou a desnecessidade, cívica e societária, de diariamente ter que disfarçar os mais torpes e rudes instintos. O verniz estalou. Não há porque mostrar respeito, cuidado ou atenção pelo semelhante. Aquilo que outrora, de modo mais natural ou mais forçado, constituía o cimento de uma vida gregária, e no geral harmoniosa, deixa de fazer sentido.

A personagem principal – talvez uma das mais interessantes do vasto universo da criação literária de Saramago – é a que conhecemos como a mulher do médico, com a particularidade de ser a única que não chega a cegar. Abnegada e corajosa, os seus olhos tornam-se os olhos dos cegos, ao mesmo tempo em que a sua determinação e capacidade de organização são postas a serviço dos outros. A organização é de tal forma sentida como uma necessidade primordial para a subsistência do grupo que a mulher do médico observa a dada altura que “organizar-se já é, de certa maneira, começar a ter olhos”. 

No final da obra, tentando compreender o horror que tinham vivido ela confidencia ao marido, como que rematando o fio condutor de toda a história: Queres que te diga o que penso? [...] Penso que não cegamos, penso que estamos cegos. Cegos que veem. Cegos que, vendo, não veem”. 
A cegueira física de que a obra nos dá conta não é mais do que a metáfora da cegueira do espírito que nos afeta. Uma cegueira que ninguém vê, mas que nos impede de reparar no outro. Quando aquela comunidade se vê subitamente acometida pela pandemia do mal branco, as portas se abrem ao caos e à dor. Mas um caos e uma dor com propriedades regeneradoras, que acabam por representar para cada uma de suas vítimas uma autêntica estrada de Damasco. A cada membro daquela comunidade é dirigido um desafio para que acorde para a realidade circundante. Para que ultrapasse os magros limites da visão física e consiga alcançar uma visão lúcida e consciente. Penso serem esses os elementos centrais à construção alegórica de Ensaio sobre a Cegueira

Impressionante, comovedor, esse romance é um marco na literatura em língua portuguesa. É uma visão das trevas, uma viagem ao inferno, e ao mesmo tempo a história de uma resistência possível à violência de tempos escuros. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”. 

Nas palavras de Saramago, a obra não é mais do que uma imago mundi: “Não queria ir-me desta vida, como pessoa e escritor, sem deixar este sinal de alerta. [...] Tanta beleza criada, tantos voos da imaginação e do pensamento de que a Humanidade foi capaz ao longo de todos estes milênios e no fundo não mudou nada [...] Eu não vejo, sinceramente não vejo, e gostaria de ver para minha tranquilidade, nenhum motivo para ser otimista não só perante a história de nossa espécie, como diante do espetáculo de um mundo que é capaz, porque tem meios para isso, de resolver uma quantidade de problemas, desde a fome até a educação ou a falta dela, e que não o faz”.
Em um período onde imperam, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatórios, a leitura de Ensaio sobre a Cegueira vem nos lembrar da “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. É um livro sobre a ética, e é um livro também sobre o amor, e sobre a solidariedade. “Parece uma parábola”, comenta alguém no romance. Mas sua força, como nas melhores parábolas, vem precisamente do realismo e da descrição, no limite do inominável.

Cada leitor viverá com esse livro uma experiência imaginativa única no esforço de recuperar a lucidez. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. A epígrafe resume a empreitada do escritor, como a de cada leitor. Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado – “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.

Boa leitura! 

(*) Mestre em Direito e Doutoranda em Letras

Bibliografia:
Reis, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa: Caminho, 1998.

Saramago, José. Ensaio sobre a cegueira: romance. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

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