Até 20 de janeiro, cortejos movimentam diferentes pontos do estado
A Folia Penitentes do Santa Marta, na zona sul carioca, é comandada pelo mestre Riquinho
(Crédito: Divulgação)
De 24 de dezembro a 20 de janeiro, as ruas, estradas, vilas e povoados de todo o estado do Rio estarão tomados pela
Folia de Reis,
festejo de origem católica que reproduz, todos os anos, a viagem dos
três reis do Oriente a Belém. Guiados por uma estrela, eles partiam para
visitar o menino Jesus, nascido há 2014 anos e que, como confirmavam as
profecias, mudaria o rumo da história dos homens. Presente em países
como Portugal e França, a folia se misturou a elementos da cultura
africana, se desenvolvendo amplamente em áreas rurais do interior do
estado. Na capital, sua presença, outrora mais significativa, se mantém
graças à tradição familiar e à religiosidade dos foliões, que lutam
contra a falta de recursos financeiros.
No Rio, folia acontece em duas etapas
O ciclo de apresentações dos foliões é dividido em duas etapas. A
primeira começa na noite do dia 24 e vai até 6 de janeiro, quando cantam
em louvor aos reis. A segunda, de 7 a 20 do mesmo mês, é dedicada a São
Sebastião, padroeiro da cidade. No interior, os festejos estão
alinhados à primeira etapa, como esclarece Francisco José, presidente da
Associação dos Grupos de Folias de Reis de
Valença,
o maior pólo de folias do estado, com pelo menos 35 grupos em
atividade. “Saímos na primeira hora do dia 25 e vamos até os dias 5 e 6
de janeiro, quando fazemos um grande encontro das folias ao lado da
Catedral de Nossa Senhora da Glória, nossa igreja principal. Somos
considerados pela imprensa local como a segunda maior festa do município
em termos de público, reunindo de 12 a 15 mil pessoas no alto da
catedral. Vem gente de todos os estados, do Brasil inteiro”, orgulha-se
Francisco, à frente do
Folia Irmãos Ferreira, criada com primos e irmãos.
Na capital, por sua vez, os festejos se estendem até o dia de São
Sebastião, movimentando locais da Zona Norte da cidade, como a
comunidade da Mangueira, e da Zona Sul, especialmente o morro Santa
Marta, em Botafogo.
Na Zona Norte do Rio se destaca a folia da comunidade da Mangueira, a
Folia de Reis Sagrada Família da Mangueira,
representada pelo mestre Hevalcy Silva e pelas cores verde, rosa, azul e
amarelo. “A folia sempre esteve presente na minha vida, desde a
infância. Sempre gostei de participar, assim como minha bisavó, e
acredito que herdei isso dela. A fé, a religiosidade e as graças
alcançadas pelos devotos são os aspectos que nos motivam a continuar”,
defende Hevalcy, que se tornou mestre com apenas 17 anos. Existem duas
folias na comunidade mangueirense, ambas tradicionais: além da Sagrada
Família tem também a
Manjedoura da Mangueira, do mestre
Milton Lerci Gomes. Esta última folia, com as cores verde, branco e
rosa, foi criada pela família de Milton em 1855, ainda em Minas Gerais.
Na década de 1940, quando se mudou para o Rio de Janeiro, trouxe com ele
a tradição da folia. “Eu cresci apreciando essas duas festas e mais
tarde integrando, até chegar a ser o responsável pela Sagrada Família
hoje, o que já tem quase vinte anos”, afirma Hevalcy para, em seguida,
explicar parte do trajeto adotado pelos foliões este ano. “Nós
percorremos a nossa comunidade e outras também, como Vila Cruzeiro,na
Penha e Chapéu Mangueira, no Leme. Nesta sexta-feira (26) estaremos na
Vila Cruzeiro. No dia 3, às 17h, estaremos cantando na igreja do Largo
do Machado. No dia 11 de janeiro, participaremos de dois festivais de
Folia de Reis, em Areia Branca e na praça do Cruzeirinho, em Heliópolis,
em Belford Roxo. Por fim, no dia 20 de janeiro, a partir das 17h,
acontece o encerramento da jornada, com a entrega da bandeira na nossa
sede, que fica na Rua Visconde de Niterói, 354, Mangueira”.
Em Botafogo, Zona Sul carioca, Riquinho é o atual mestre da azul e branca
Penitentes do Santa Marta.
“Minha família sempre esteve ligada a essa festa. Meu pai, lá na terra
dele, em Miracema, já conhecia a Folia de Reis”, esclarece o mestre da
folia que teve origem no bairro da Ilha do Governador em meados da
década de 1950, sob o nome de
Folia do Mestre Zé Cândido.
O pai de mestre Riquinho, José Diniz, dava seus primeiros passos como
folião. No final da década de 1950, em parceria com os mestres Luiz e
Dodô, ajudou a transferir a folia para o morro Santa Marta, onde foi
rebatizada, passando a ser chamada pelo nome que carrega até hoje. José
Diniz tornou-se mestre nos anos 1980 e, por mais de trinta anos, assumiu
o controle dos encontros e das práticas que faziam parte da festa.
Quando o pai morreu, foi o filho que manteve a tradição. “Eu sou mestre
há cinco anos, desde 2009, que foi quando meu pai faleceu. Para não
deixar acabar, os membros da Diretoria da Folia fizeram uma reunião e
decidram manter os cortejos. Eu fui apontado como a pessoa mais indicada
para ser mestre, pois já tenho mais de quarenta anos de folia. E assim
assumi”, esclarece Riquinho para, em seguida, relatar o trajeto adotado
por seus foliões nos próximos dias. “No dia 28 vamos cantar na Rua 4 da
Rocinha. No dia 4, em Tavares Bastos e na Glória. Dois dias depois, no
dia 6, cantamos no Santa Marta e, no dia 11 voltamos para a Rocinha, na
Rua 1. Dia 17 vamos ao Santa Marta novamente, ao passo que no dia 18
vamos para a Cidade de Deus. Para encerrar a Folia de Reis, no dia 20,
cantamos e fazemos a procissão de São Sebastião”.
Na Baixada Fluminense, Duque de Caxias já foi palco de inúmeras
folias de reis e hoje, no entanto, poucas conseguem se manter. Uma das
que resistem é a
Flor do Oriente:
há 150 anos, quatro gerações da família Vicente de Moraes carregam a
mesma bandeira azul e branca que aportou em terras cariocas com o mestre
Miguel Vicente de Moraes, em 1944. Depois assumiram o posto,
respectivamente, Manoel, Marcos, Miguel e Waldir, tio do atual mestre,
Rogério Silva de Moraes. “Estou envolvido com a folia desde a barriga da
minha mãe. Este é meu oitavo ano como mestre. Meu pai faleceu em 2007,
quando assumi”, afirma Rogério. A lista de lugares que serão visitados é
longa. De casa em casa, passam pela Tijuca, Morro da Formigo, zona
norte do Rio, nestes sábado e domingo (27 e 28); São José e Jardim
Redentor, em Belford Roxo, no dia 1º, Praia de Mauá e Piabetá, em Magé,
nos dias 3 e 4 de janeiro, Gramacho e São Bento, Duque de Caxias,
Piabetá, Magé, e Parque Suécia, Duque de Caxias, nos dois dias
seguintes. No segundo final de semana de janeiro (10 e 11), o cortejo
passa por Miguel Couto e por Caonze, bairros de Nova Iguaçu. Já nos dias
17 e 18, as casas do bairro de Queimados serão visitadas e, para
encerrar, Belford Roxo, Areia Branca, Vila São José e Vila do Rosário
nos dias 19 e 20. Além da família inteira, a Flor do Oriente conta com
mais de 40 integrantes, entre foliões e palhaços.
Sincretismo religioso ajudou a moldar a folia
Para Luciene Barbosa, do
Departamento de Patrimônio Imaterial do Instituto Estadual do Patrimônio Cultural
(Inepac), a Folia de Reis “é uma manifestação que inclui várias
vertentes do patrimônio imaterial: os saberes, representados pelo
conhecimento da comunidade; a celebração, representada pelos rituais e
festas; a vivência coletiva do trabalho; religiosidade; entretenimento;
formas de expressão, representada por letra e música; relação com as
artes cênicas, através da encenação e da indumentária e registros de
lugares e espaços que fazem parte dos rituais, que merecem ser
preservados por conta da prática religiosa e de entretenimento”, afirma.
Ela destaca, ainda, o sincretismo religioso que permeia as folias
brasileiras. “A folia de hoje é mantida pelo segmento afro-brasileiro,
através da devoção e da fé aos santos, que também fazem parte do
universo desta parte da população. A Folia de Reis vai além do
catolicismo. Há um sincretismo religioso, com mesas com oferendas,
santos e elementos da umbanda e do candomblé”, defende.
De pai para filho
“É tradição e a gente gosta. Eu saio em folia desde os nove anos, meu
irmão, que é nosso mestre palhaço atual, sai desde os oito e o filho
dele começou a sair com sete. Meu pai sempre foi folião, minha mãe é
foliona, meus tios são foliões. O que me motiva é o prazer de ver o
grupo na rua, cantando o nascimento de Jesus”, explica mestre Riquinho.
“É uma festa muito bacana e lutamos para conseguir manter a tradição”,
informa Francisco José. “Nós damos a vida para manter a tradição, não
medimos esforços para manter viva a nossa cultura. É isso que nos move e
nos faz tirar forças de onde é impossível, porque não recebemos nenhum
tipo de ajuda, é tudo movido pela fé”, desabafa mestre Rogério. Os
discursos dos mestres em atuação no Rio de Janeiro se assemelham,
exaltando aspectos como tradição e religiosidade, destacados também por
Luciane. “Eles agregam pessoas a partir de um núcleo familiar que tem
como referência um mestre ou uma mestra dentro daquela folia. Ao longo
dessa trajetória de preservação, as folias sobrevivem em regiões como
baixada e norte fluminense, além da região do médio Paraíba”, diz
Luciane.
Ensaios começam cedo e contam com a presença de crianças
Para percorrer diversos endereços e fazer bonito, os foliões começam a
ensaiar com antecedência, geralmente entre agosto e setembro, como
destaca Hevalcy, mestre da
Folia de Reis Sagrada Família da Mangueira.
“Os ensaios começam em setembro, durante os fins de semana e vão até
próximo à saída, em dezembro”. Francisco José, de Valença, reafirma a
importância dos ensaios. “Começamos a nos reunir na segunda semana de
agosto e, a partir do primeiro sábado de outubro começamos a ensaiar, em
finais de semana alternados. Há dois sábados atrás encerramos os
ensaios, até para que todos possam estar preparados para encarar uma
jornada de doze dias”. Outro aspecto importante em relação às folias é a
presença das crianças, já que são elas que garantem a perpetuação do
movimento. “Temos um projeto chamado
Três Reis Mirins,
voltado para crianças e adolescentes. Eles fazem dinâmicas, trabalhos em
grupos, aprendem a poesia dos palhaços, a cantoria, a tocar os
instrumentos. É um incentivo para que participem da folia e se tornem
futuros foliões”, diz o mestre da Folia de Reis Sagrada Família da
Mangueira.
No maior pólo de folias do estado, as crianças precisam saber como se
portar em um movimento religioso e tirar boas notas na escola. “O
envolvimento das crianças é bem bacana. Fazemos uma pequena reunião com
os pais para saber se a criança é comportada, já que se trata de um
movimento religioso, e se vai bem na escola. Nós somos ponto de cultura,
então levamos a Folia de Reis para as escolas, onde conseguimos incluir
um número maior de crianças. Também mantemos uma escolinha de
instrumentos, onde elas aprendem a tocar acordeão, viola, violão e
cavaquinho, por exemplo. Caso as crianças não tenham aptidão musical e
queiram participar, elas podem se envolver em outros processos, como os
palhaços. Temos um número muito grande de palhaços em nossos grupos.
Enquanto na maioria das folias esse número gira em torno de seis a sete,
temos folias aqui em Valença com cerca de 60 e 70. A intenção é fazer
com que as crianças mantenham a tradição”, assegura Francisco José.
Saiba mais em
Programação Cultural.
Colaboração de Danielle Veras