A TEORIA ARTÍSTICA DA FORMA E O PROCESSO CRIADOR
“Em nosso domínio, só conta a experiência
vivida, visto que não pode haver definição sem experiência prévia” Kandinsky
Existe, da parte
daqueles que buscam o estudo da arte do desenho, uma expectativa natural acerca
de conhecimentos ou mesmo “segredos” dessa arte que presumidamente lhes dariam
o poder de representar qualquer coisa visível ou imaginada. Quase sempre querem
saber “como” se representa isto ou aquilo, este ou aquele objeto. Logicamente,
a frustração vai sempre acompanhar essa expectativa, pois o conhecimento
teórico da arte não é constituído por regras ou normas que, aplicadas,
produziriam representações dos objetos do mundo visível. Se assim fosse,
existiriam regras para desenhar animais, árvores, crianças, etc., que seriam
utilizadas pelos artistas quando desejassem representar tais objetos. É isso o
que prometem os livros didáticos de desenho que ostentam em suas capas os títulos:
“como desenhar a figura humana”, “como desenhar paisagens”, “como desenhar retratos”, etc. Esses
títulos refletem o senso comum, que entende o ato de desenhar como sendo o de desenho
“de” alguma coisa e não como algo que
é objeto por si mesmo e que tem um fim em si mesmo. Seguindo esse modo de
considerar a produção artística, nas escolas de arte usa-se nomear algumas
disciplinas de desenho segundo o objeto-modelo da aula. Assim, a aula em que a
figura humana é objeto da representação, é chamada de “aula de modelo vivo”, como se o objetivo da
aula fosse estudar a própria figura humana e não o entendimento do ato de
desenhar com todas as suas implicações. O desenho é entendido como uma
consequência do modelo apenas. Daí os estudos de anatomia, proporções, etc.,
que geralmente acompanham essas aulas. Deveríamos afirmar, entretanto, que
essas aulas são “aulas de desenho com modelo vivo” e não “aulas de modelo vivo”, e o mesmo ocorre quando
falamos em “aulas de paisagem” ou
“aulas de anatomia”. É obvio que um
nome tem que ser dado às disciplinas para diferenciá-las umas das outras, mas
não se pode confundir o objeto representado com o conteúdo da aula. O modelo é
apenas um pretexto, ele não é o compromisso final da aula nem o seu objetivo. Uma aula de desenho deve privilegiar,
antes de tudo, a compreensão dos fundamentos do desenho e esses fundamentos
ultrapassam o plano de realidade do objeto-modelo utilizado na aula. Por outras
palavras, existe um conhecimento específico da disciplina do desenho que não
pode ser confundido com o conhecimento acerca da realidade do objeto utilizado
como modelo.
É necessário ter
em mente que não se aprende a desenhar “coisas”, mas se aprende o desenho como
realidade em si, os conteúdos da aula são os elementos constitutivos da forma
visual e suas possibilidades de construção formal. Na verdade, desenha-se o próprio desenho e não os
objetos representados: o objeto do desenho é, pois, ele mesmo, o desenho. Do contrário, quando usarmos
garrafas como modelo, p. ex., teremos que afirmar que o conteúdo da aula é a
própria garrafa, ou seja, ao mudar o objeto estaríamos mudando também os
conteúdos programáticos da aula. Segundo essa interpretação do ato de desenhar,
se um professor convidar seus alunos para uma aula de desenho no jardim
zoológico, ele estará se propondo a dar aulas de “onça”, de “tamanduá”,
de “elefante”, etc., e, logicamente, todos
teriam que estudar a anatomia desses animais para poder desenhá-los, assim como
se estuda a do corpo humano para desenhar a figura humana. Lamentavelmente é
essa visão equivocada que predomina no ensino do desenho.
Qual a
origem dessa concepção? Ela está constituída por noções disseminadas na
sociedade que têm origem em abordagens e teorias extra-artísticas, ou seja, aquelas
teorias não comprometidas com a produção da arte e que são de natureza
interpretativa, concepções que falam sobre a arte mas não pensam o objeto
artístico segundo aquilo que o define enquanto tal: sua forma.
Nas suas “Cartas a
um Jovem Poeta”, Rilke escreveu este conselho: “leia o menos possível trabalhos de estética e crítica” (1997, p.
31). Uma das razões desta afirmativa reside no fato de que existem dois modos
de aproximação teórica à realidade da arte. A natureza dos textos a que Rilke
se refere vem motivada e se caracteriza pela intenção de definir o sentido ou mesmo
“decifrar” a obra, de encontrar nela “significados” que estariam ocultos ao
olhar do leigo. O outro modo de abordagem teórica é aquele que tem como motivação
o entendimento dos fundamentos que informam e legitimam a produção da arte. São
duas, pois, as teorias: uma de natureza interpretativa e outra dos pressupostos
da produção. O problema começa quando a primeira é colocada no lugar da
segunda. E é o que normalmente acontece: quando temos acesso a alguma teoria
sobre arte é quase sempre com a primeira e quase nunca com a segunda.
Praticamente nunca o público em geral e mesmo o que visita exposições tem
contato com a teoria da forma artística. Daí que, ironicamente, são justamente
as variações sobre aquela primeira concepção que são aceitas como abordagens
válidas para a compreensão da arte, as quais, substituindo a experiência do
fazer pelas interpretações e análises puramente intelectuais, pretendem até
mesmo indicar caminhos para a sua produção. É nesse âmbito que tiveram origem
as noções de “belo”, “originalidade”, “expressão”, etc., e a consequência é
que, nas opiniões generalizadas no senso comum, predominam essas concepções,
como, p. ex., quando alguém, interpretando as intenções do artista, afirma que
ele “busca o belo” ou que ele “busca se expressar”: quem assim fala não tem
consciência de que está fazendo afirmações que são apenas interpretações
equivocadas com relação à natureza do processo criador.
Tradicionalmente, o
ensino do desenho é pensado sobre uma relação que coloca, de um lado, o estudo
da estrutura dos corpos no espaço e, do outro, os procedimentos de natureza técnica.
Essa abordagem implica em considerar que existe uma forma e existe um sentido
como dois fatos separados e, consequentemente, o desenho teria sua razão de ser
justamente no fato de veicular significados externos à forma. Mesmo quando se
substitui a preocupação com a estrutura dos corpos pelas noções de “expressão”,
“mensagem”, etc., o problema continua o mesmo: pois implica em considerar a
forma como veículo de um conteúdo independente dela mesma. Esta interpretação
parece natural porque estamos habituados com a noção de significação tal como ocorre
nas formas da linguagem. Lemos um texto e compreendemos o seu sentido e esse
sentido torna-se algo que pode ser comunicado a outra pessoa, e que, além
disso, pode também ser traduzido para outras formas de linguagem como, p. ex.,
a dos surdos-mudos. Isso significa que o sentido apreendido na linguagem existe
como um fato separado da forma que o veicula e esta, por sua vez, como mero
veículo do sentido. Entretanto, não podemos comunicar a outros o sentido que apreendemos
no contato com uma obra de arte: o sentido experimentado não pode ser
comunicado, o sentido corresponde à experiência particular de cada um diante da
obra e, por mais que se fale da experiência, que se tente comunicá-la,
continuará a pertencer ao indivíduo que a experimentou. Assim é porque uma
imagem artística não cumpre uma função comunicativa, a arte não é uma forma de linguagem, não é uma forma que existe
para comunicar alguma “mensagem”, onde os significados possam ser identificados
como algo independente e separados da forma que os apresenta. Na
raiz de toda abordagem interpretativa existe esta separação entre sentido e
forma.
Simplificadamente,
toda linguagem se define pela presença de um significante e de um significado:
a palavra “casa”, p. ex., remete para um objeto genérico que todos conhecemos e
que carregamos como referência em nossa mente. É a essa referência mental que a
palavra nomeia. A palavra não nomeia o objeto real anterior às representações
mentais que temos dele, ou seja, a linguagem sequer remete para o objeto em si.
O sentido na linguagem é, pois, não só independente da forma que o veicula como
também da referência que ela designa ou descreve. Como essa independência e separação entre
sentido e forma não existe na forma artística, daí advém uma interdição radical
à ação do pensamento sobre ela, pois este atua por comparação entre pelo menos
dois termos e seu instrumento é justamente a linguagem. Quando essa separação
não existe o pensamento fica inoperante. Por esse motivo, ou seja, devido à
coincidência entre forma e sentido na arte, a realidade artística é inacessível
ao pensamento e, consequentemente, toda tentativa de definição ou nomeação nesse
campo corresponderá sempre a um falseamento do fato original. Nesse sentido,
não se pode falar das “significações” de uma obra de arte porque ela não
“significa” nada, não “diz” nada, mas instaura um campo próprio de sentido ao
qual só se tem acesso pela experiência direta com a própria obra. As nomeações
do pensamento são um modo de apropriação daquilo que está sendo nomeado. Quando
nomeamos, perdemos a coisa nomeada e caímos na “armadilha” do pensamento,
“esquecemos” o nomeado e ficamos com o nome, substituímos a experiência real
pela palavra e o conceito que ela carrega. É assim que nomes como
“Impressionismo”, “Fauvismo”, etc., correspondem apenas a apelidos que oferecem
pistas falsas a quem quer compreender algo sobre aquilo que eles nomeiam. Sob
este aspecto, o exemplo da música é emblemático: o que “entendemos” quando
ouvimos música? Resposta: entendemos a própria música, entendemos um sentido musical. E o mesmo para a poesia
e para a pintura: o sentido artístico é a própria experiência pessoal da obra
de arte. Nenhuma descrição ou explicação intelectual vai substituir a
experiência do contato direto com a forma. Para saber o que é música, poesia e
pintura, temos que ouvir a música, ler (ou ouvir) o poema, ver a pintura. Não há outra opção: ou ficamos com a interpretação
ou com a experiência real.
O sentido artístico não é, pois, algo que possa ser separado da forma em
que o apreendemos, como um elemento à parte, pois ele está identificado à
forma, é imanente a ela, falar de um é falar do outro. É por essa razão que se
diz que o sentido é a forma e a forma é o
sentido. Ambos existem simultâneos no ato de observar um quadro, ouvir uma
música, ler um poema. O sentido é essa experiência e não uma idéia ou conceito,
não é, em absoluto, uma mensagem a ser decifrada. Afirmar que uma obra é “bela”
não é um juízo real de valor mas uma declaração de natureza subjetiva, ou seja,
quem a formula está falando de si próprio, da sua relação pessoal com a obra, e
não da obra em si mesma. Essa opinião diz respeito apenas ao universo pessoal
daquele que fala. Reconhecê-la como uma referência objetiva à realidade da obra
é reconhecer o autor da afirmação como uma autoridade no assunto.
Ainda dentro das
concepções que habitam a ótica do senso comum e que separam forma e sentido, o
processo criador estaria dividido em duas fases: concepção e realização. Segundo
essa interpretação, o artista primeiro conceberia a obra e depois a realizaria materialmente por meio de uma técnica
específica. Daí a preocupação com o “como?”, o qual abre um problema de
natureza puramente técnica. O “como
se faz?” pressupõe e existência preconcebida de algo que será realizado num
segundo momento. Isso significa que esse “algo” já está dado, não vai acontecer
durante o processo, não vai ser criado no decorrer da sua produção. Aquela
pergunta, portanto, deve então ser seguida de outra: “como se faz... o quê?”,
pois se há algo a ser feito esse algo deve estar definido de antemão. Esse modo
de considerar o processo leva em conta apenas o aspecto técnico da produção
artística, só consegue ver a técnica, como se tudo na esfera do fazer se
reduzisse a problemas técnicos e, nesse sentido, a diferença que existiria
entre um artista e outro seria uma diferença de competência técnica. Assim, o
leigo verá na Gioconda de Leonardo da
Vinci uma obra de arte “respeitável” mas, diante de uma obra de Picasso, p.
ex., poderá dizer: “isso eu também faço!”. Mas ninguém pode culpá-lo, pois é só
o que ele consegue racionalizar diante do quadro, ele não percebe que está
sendo impressionado por outros dados que escapam à sua racionalização. Por
outras palavras, é o grau de sofisticação técnica que o impressiona. Ele não considera
a obra pelo que ela realmente é, mas pela competência técnica que identifica
nela.
O ponto de vista
da criação, entretanto, tem outro foco: a obra a ser produzida não existe nem
mesmo idealmente, ela não habita uma hipotética esfera transcendental de
realidade à qual o artista teria eventualmente o acesso e da qual ela seria
retirada para o nosso plano atual de realidade. Quando se considera a criação
nestes termos, o que encontramos são as projeções e estereótipos do pensamento.
Uma mesa comum, puramente utilitária, p. ex., pode ser racionalmente projetada
por inteiro, sua forma pode ser antecipada e os passos da sua produção podem
ser orientados pelo pensamento, pois ela já existe idealmente antes de ser construída
ou até mesmo concebida. Podemos considerar que, se no caso de um objeto dessa
natureza a sua produção pode ser racionalmente conduzida, a obra artística, por
sua vez, tem outra fonte: na produção da arte o pensamento fica de fora. A obra
de arte não é um subproduto da atividade do pensamento e a sua intromissão no
processo de criação corresponderá a um impedimento, nunca a uma abertura de
possibilidades. Pretender realizar uma obra de arte segundo a lógica e os
paradigmas do pensamento é o mesmo que pretender flutuar num lago abraçado a
uma pedra. O processo de criação é ação pura, ação em si mesma, sem ser
“contaminada” por uma intenção, seja ela de natureza subjetiva ou conceitual. Uma
obra de arte está além daquilo que um olhar desinteressado é capaz de abarcar,
daí que a natureza do trabalho do artista passará sempre despercebida ao leigo.
O “em si” da obra fica oculto à primeira vista e o que particularmente não fica
evidente de imediato na observação de uma pintura é justamente aquilo que é o
fator determinante da existência da obra e, consequentemente, da natureza da
teoria da produção: o processo pelo qual a obra veio à luz.
As concepções
teóricas sobre a arte que guardam compromissos alheios à produção da própria
arte deveriam, por esses motivos e na melhor das hipóteses, ser consideradas
com desconfiança por parte daqueles que estão interessados na sua produção.
Essas noções, em lugar de instrumentalizar e nortear o artista, são um fator de
alienação. Não há relação entre o sentido artístico da forma e aquilo que essas
teorias definem como sentido na arte. Conceber a criação como sinônimo de, p.
ex., “originalidade” ou “expressão pessoal”, ou seja, assumir essas noções como
fundamento da ação criadora, significa assumir compromissos falsos, alheios à
natureza da forma, e perder de vista os problemas reais da formação da imagem, significa
se atirar no mundo vazio da especulação gratuita e inconsequente sobre, p. ex.,
o que é ou não é a natureza do “belo”, da “expressão”, do “moderno”, do
“contemporâneo”, etc. Daí o obscurantismo das tendências atuais de se voltar as
costas a toda a milenar tradição da pintura que nos precedeu através dos tempos,
daí também a noção arbitrária e corrente de “ruptura” com o passado, que
cinicamente pretende desautorizar todos os milênios de produção artística que
nos antecedem e legitimar todas as arbitrariedades dos discursos da crítica através
de uma obscura e simplória oposição à arte do passado.
Em contraposição a essa postura temos as
declarações e atitudes dos artistas através dos séculos, as quais se situam em
franca oposição às concepções estranhas aos problemas da produção. Desde sempre
os artistas tomaram como referência os que os antecederam, e muitos exemplos
poderiam ser lembrados, como os de Cézanne, Degas, Picasso, Matisse, etc. Nesse
contexto, não podemos esquecer a advertência de Constable, de que “o
pintor autodidata é alguém que aprendeu com um professor muito ignorante” e também Goya, nascido no século XVIII, que afirmou só ter
tido dois mestres: Rembrandt e Velázquez, ambos do século XVII, pintores com os
quais ele nunca teve contato direto, pois faleceram muitas décadas antes dele
mesmo ter nascido. Sua relação com eles, seu “aprendizado” com ambos, se deu,
portanto, pela observação e estudo das suas obras. E ainda Kandinsky, que
explicitamente escreveu: “os ensinamentos
‘mortos’ jazem hoje nas obras vivas tão profundamente que só com grande esforço
podem ser trazidas à luz” (1974, p.15). O exemplo de Goya e a afirmação de
Kandinsky demonstram que mesmo não tendo acesso a textos teóricos referentes à
produção, um artista vai sempre encontrar os fundamentos da sua arte no estudo
das obras dos pintores que o antecederam. Outro exemplo é o de Degas, solicitando
permissão a Delacroix para fazer uma cópia do seu quadro “A Barca de Dante e
Virgílio no Inferno”, o qual foi também copiado por Cézanne. Esses exemplos
ilustram a importância do estudo das obras de arte da tradição ou mesmo dos
seus contemporâneos (quando eles existem), pois uma teoria da produção vai
emergir essencialmente do contato com as obras realizadas, é nelas que vamos encontrar
os fundamentos da produção. São esses ensinamentos presentes nas obras, com absoluta independência do século em que
elas foram produzidas, que vão fornecer fundamento à produção e a uma
teoria artística da forma, pois a arte
surge da própria arte e nunca da simples relação com a natureza. Esta última
só tem interesse para o artista quando ele sabe o que nela está buscando. Esta
afirmação fica mais clara quando consideramos o interesse intrínseco e
diversificado das diversas atividades humanas diante da própria natureza:
observando uma árvore, p. ex., um botânico buscará nela os elementos de sua
disciplina, um industrial aqueles dados necessários à sua indústria e um pintor,
por sua vez, buscará a configuração, a dinâmica linear, o claro-escuro, as
relações cromáticas, os conjuntos visuais, etc.
A primeira
evidência que emana da observação das obras desde o Paleolítico e através de
todos os séculos que nos antecedem, é que uma imitação pura e simples das
aparências dos objetos, ou seja, a tão propalada “cópia”, nunca foi objeto nem fundamento
da produção artística, mas sim que, pelo contrário, “a arte é, antes de tudo, um conjunto de problemas de forma” (P.Klee,
1978, p.25), e que “são as forças vivas
nas formas que materializam o conteúdo da obra artística” (Kandinsky, 1974,
p.31). Então, tanto para os fins da produção como para os de uma pedagogia da
arte, a teoria artística da forma deverá se ocupar primordialmente da natureza
desses “problemas de forma” e dessas “forças vivas”, visando estabelecer os
fundamentos da criação através da definição das possibilidades de construção
formal:
“O mundo da obra de
arte está na feliz utilização das forças obstinadas dos recursos
artísticos...não se podem ensinar os ímpetos da inspiração. Porém o que em
grande parte pode ser ensinado e dirigido são as possibilidades de elaboração.
Temos que saber que, no fundo, são as forças dinâmicas dos recursos que podem
dar alma e vida à obra de arte” (Hoelzel,
ap.Hess, 1970, p.137).
A composição
da imagem artística corresponde a um
conjunto simultâneo de eventos
formais e esse fato faz com que o processo da sua produção encerre uma
complexidade que não é aparente à primeira vista. É natural, pois, que os fatos
da forma passem despercebidos, é natural que o observador só conscientize aquilo
que consegue racionalizar e identificar. Assim é porque “ainda que o ato de percepção da pintura seja um ato total, único, mal
poderíamos qualificar de igual modo o ato (teríamos que dizer: os atos) de
criação” (D’Allones, 1977,p. 93). A sequência dos eventos no tempo, os
“atos de criação”, estão presentes em superposição na forma final mas esta é
quase sempre mascarada pela visão unitária que se tem do conjunto realizado.
Devido a essa
complexidade formal, torna-se impossível abranger a forma no seu conjunto em um
só ato teórico e, consequentemente, a
teoria só pode pensar a forma como possibilidade, pode apenas abrir o campo
dos possíveis para a produção. A teoria não é constitutiva de nada, não dá “soluções”,
nem é uma resposta à pergunta “como se faz...?”, ou seja, a teoria não tem
natureza técnica. Todo conhecimento técnico participa da produção, mas não
define o processo de criação, não é, por si mesmo, teoria. A teoria existe para
dar suporte e fundamento ao processo de produção. Esta é, em resumo, a função da teoria
artística da forma, tal como escreveu Juan Gris, “para fazer pintura é necessário conhecer as possibilidades da pintura” (1957, p.54). Esta é, também, a
necessidade primordial, a condição necessária da produção: se não se sabe das
possibilidades, como iniciar um movimento? As “intenções”, sejam elas de
caráter subjetivo ou as projeções do pensamento, apenas nos dão a ilusão de que
algo está sendo criado, de que um caminho está sendo percorrido, quando, na
verdade, ficamos no mesmo lugar, giramos em torno de nós mesmos e não vamos a
parte alguma.
Essa
ênfase na obra como identificada à sua realidade formal caracteriza o ponto de
vista da produção, pois o que chamamos de “obra de arte” é essencialmente e
antes de tudo, uma forma. Considerar
objetivamente a imagem artística implica também, por sua vez, um necessário “contato interior com os meios artísticos”
(Kandinsky, ap. Wick, 1989, p. 269), ou seja, implica na experiência da
produção como base para as definições teóricas. Daí a importância da palavra do
artista, de seus textos e declarações, pois só a vivência do processo de
produção pode esclarecer a dinâmica dos fatos da forma e fundamentar uma teoria
dessa mesma produção. Nesse sentido, se quisermos encontrar os pressupostos da
criação, teremos que, além do estudo das obras, nos debruçar principalmente sobre
os escritos e testemunhos dos artistas, pois uma teoria da arte só pode existir
a partir da vivência dos problemas da criação, da qual os artistas são,
obviamente, os únicos que possuem as necessárias e indispensáveis referências para
a sua definição. Daí mais esta advertência de Kandinsky: “quem não seja capaz de observar deve deixar em paz a arte teórica” (1974,
p.23).
Todavia, devido à hegemonia
do pensamento lógico racional na tradição ocidental, a teoria interpretativa
predomina sobre a palavra do artista, ficando esta relegada a um segundo plano
de importância e, até hoje, apesar da grande quantidade de seus escritos e
declarações, nas escolas de arte em geral eles permanecem praticamente
ignorados. No plano teórico, as aulas giram em torno da estética e da história.
A estética, entretanto, nunca foi nem nunca será uma teoria da arte
e, por esse motivo, as escolas de arte são conceitualmente vazias com relação a
uma teoria real da arte. Este problema - que remonta ao nascimento do discurso
filosófico - vem atravessando os séculos e se mantém até hoje. Essa relação opositiva
da arte com o pensamento na história ocidental foi assim definida por O. Paz:
“Desde Parmênides
nosso mundo tem sido o da distinção nítida e incisiva entre o que é e o que não
é. O ser não é o não ser. ... Sobre essa concepção construiu-se o edifício das
‘idéias claras e distintas’ que, se tornou possível a história do Ocidente,
também condenou a uma espécie de ilegalidade todas as tentativas de apreender o
ser por caminhos que não fossem os desses princípios. Mística e poesia viveram
assim uma vida subsidiária, clandestina e diminuída” (1982, p.123).
Ou, como escreveu um autor, “a estética veio depois, ainda que seja para dizer que já estava antes”
(D’Allones, 1977, p.31). No séc. XIX encontramos o desabafo de Delacroix que,
no Prefácio do seu “Dicionário das Belas-Artes”, escreveu:
“Ainda que o autor
seja do ofício e dele conheça o que pode ensinar uma longa prática acrescida de
inúmeras reflexões particulares, não insistirá tanto quanto se poderia supor
sobre essa parte da arte que parece ser toda a arte para muitos artistas
medíocres, mas sem a qual a arte também não existiria. Em matéria de estética
ele invadirá assim o domínio dos críticos, que pensam, sem dúvida, que para alguém se elevar
às considerações especulativas acerca das artes não é necessária a prática. / O
autor tratará mais da parte filosófica do que da parte técnica. O que pode
parecer estranho num pintor que escreve sobre artes – já que muitos sábios de
meia tijela abordaram a filosofia da arte. Tudo leva a crer que a sua profunda
ignorância da parte técnica lhes pareceu até uma vantagem, convencidos que
estavam que a atenção prestada pelo artista de ofício a esta parte vital de
qualquer arte devia constituir para ele um obstáculo às especulações estéticas.
/ Tudo leva a crer que eles jugaram que
o seu profundo desconhecimento da parte técnica era afinal uma razão a mais
para de erguerem a considerações puramente metafísicas já que, no seu entender,
as preocupações técnicas tornavam os artistas profissionais pouco capazes de se
elevarem aos píncaros proibidos aos
profanos da estética e da especulação pura” (1979, p.39-40).
Mesmo assim, já no
século XX (que ofereceu ao artista uma pseudo-valorização controlada, pois a
hegemonia continua a ser a da palavra dos críticos, culminando com os
“artistas” atuais que são verdadeiros “reféns” da crítica e os mais
“domesticados” de toda a história), encontramos em Pierre Francastel essa
“advertência”: “Foi a época romântica que
deu origem a uma espécie perigosa de homens: os artistas-escritores” (FRANCASTEL,
1982, p.58).
Ao artista,
entretanto, independentemente de qualquer reconhecimento social, basta a
consciência da realidade do seu próprio ofício, a qual, para além das
considerações de natureza estritamente técnica, existe na consciência das
condicionantes e possibilidades da produção.
É a ele que interessa saber que a obra não pode ser pensada de antemão,
que ela existe apenas como possibilidade,
e que todo o interesse da produção vai então convergir naturalmente para o
próprio processo de produção, isso pela simples razão de que não há outra alternativa.
Toda a responsabilidade de realização incide, então, sobre o movimento produtor,
sobre a dinâmica operativa da formação da imagem artística. Assim sendo, é a
qualidade do processo que engendra a qualidade da obra.
São esses três
fatores, a imagem como fato e sentido identificado e imanente à forma, sua
autonomia com relação ao pensamento e o primado do processo formador, que
definem a natureza da criação artística. Nesse contexto, se aquilo que é um
produto do pensamento terá necessariamente a mesma natureza do pensamento, terá
um sentido intelectual e será, portanto, intelectualmente inteligível, assim
também o sentido formal da imagem artística, sendo ele mesmo uma qualidade de “inteligível”
(do contrário ela não teria nenhum sentido para nós), será, tal como no exemplo
da música acima (p. 2), inteligível em
seu plano particular de significação e realidade, corresponderá a um “inteligível mas não traduzível" (Cohen,
1982, p.116). Por extensão, se aquilo que é inteligível deve necessariamente
possuir uma causa “inteligente”, então, tal como existe uma qualidade de inteligência
da ordem do pensamento racional, do mesmo modo, no plano da produção, vai existir uma outra qualidade de inteligência
que é da ordem exclusiva do fazer. Assim, se o projeto de uma mesa é uma
construção da esfera da inteligência racional, uma obra de arte será o produto
de outro tipo de inteligência: uma inteligência agregada ao próprio ato
construtor da forma, que está presente no processo mesmo de sua produção.
Existe, pois, uma inteligência anônima
presente no movimento formador da imagem artística que corresponde à inteligência da criação e, como tal, não
pertence ao artista individualmente. Nesse sentido, por mais que se fale no
famigerado conceito de “estilo”, a obra de arte continuará a não ser uma
“fabricação pessoal” do artista. É como disse certa vez Picasso:
“quando eu pinto, todos os pintores pintam junto comigo”, ilustrando essa expansão para além de si mesmo, essa
descentralização do artista, que é inerente e necessária ao ato
criador. Logicamente, se o sentido e a forma são inseparáveis, assim também o fazer e o conceber estão identificados. Aquela
inteligência atua no momento mesmo da produção: “a obra cresce e é executada ao mesmo tempo” (Arnheim, 1976, p.248).
A obra é então uma consequência direta do processo pelo qual vem à luz, é o
produto de uma estratégia formadora e, como a ela não pode ser prevista como
resultado final, este será sempre uma surpresa para o próprio artista. A consciência
do artista é uma consciência “em ato”, não tem natureza reflexiva, mas é uma
forma de lucidez operativa com relação àquilo que é um quadro, um poema, etc. Não existe
o artista, existe o percurso da produção. Esta natureza anônima do ato criador
foi exemplificada por Paul Klee, com a sua “parábola da árvore”, na qual o
artista ocupa o lugar do tronco, a meio caminho entre as raízes e a ramagem.
Nessa condição, ele
não faz outra coisa,
no sítio que lhe foi assinalado no tronco, que recolher o que sobe das
profundezas e transmiti-lo para mais além. / Nem submisso servidor, nem amo
absoluto: simplesmente intermediário. / Desta maneira, pois, o artista ocupa um
lugar muito modesto. Não reivindica a beleza da ramagem: esta apenas passou por
ele” (1978, p. 36).
Não podemos, pois, confundir questões filosóficas
com problemas artísticos, pretender falar da arte discutindo questões de
natureza metafísica, relacionando-a a conceitos como a natureza do “belo”,
etc., não é falar das possibilidades construtivas da pintura, é deslocar o problema
da esfera da arte para a esfera filosófica, é perder de vista e negar aquela
objetividade construtiva da forma que é talvez a maior conquista do artista. Todo
discurso dessa natureza vai inevitavelmente cair no vazio quando relacionado
aos problemas da produção, pois na criação não há a separação conceitual entre
o pensar e o fazer, se há um “pensamento” é o pensamento da produção e, para
além de toda elucidação teórica, a lucidez do artista continuará a ser uma
lucidez do fazer. A teoria da produção somente situa o artista na ante-sala da
criação, ela não pode antecipar o sentido plástico, o produto final, pode
apenas estabelecer as bases da sua produção: em lugar de definir a arte em si
mesma ela apenas esclarece os problemas da sua produção,
“...problemas
importantes e decisivos para a ciência das formas, porém não arte ainda, no
mais estrito sentido. Em sentido mais alto, o mistério último da arte subsiste
mais além de nossos mais pormenorizados conhecimentos, e nesse nível as luzes
do intelecto se desvanecem lastimosamente” (Klee,
1978,p. 64).
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