O pernambucano Nelson Rodrigues, desde o nascimento em uma sexta-feira 23 de agosto de 1912, atravessou muitas vidas e rostos. E contradições das mais diversas, entre elas até a sua origem de nascimento e natureza. Por exemplo, já aqui, escrevemos pernambucano, e nisso não vai qualquer despropósito para um escritor tido tantas vezes como carioca. Pois falam sempre de Nelson como um escritor do Rio pelos temas e formação, quando nada por haver chegado aos 4 anos à cidade do Rio de Janeiro. Vale então um brevíssimo intervalo para ouvir as suas palavras, quando respondeu a uma provocação do psicanalista Hélio Pellegrino:
“O que me ficou, a primeira relação que tive com a vida, a descoberta da vida, foi através do gosto de pitanga e de caju, na praia de Olinda. A primeira lembrança que tenho da minha passagem terrena é exatamente o gosto de pitanga e caju. Até hoje, quando eu como estas frutas, há aquele movimento proustiano, aquele retorno profundíssimo. Não só o gosto, mas o próprio cheiro do caju, quando passo nesses botecos onde fazem cajuada, tenho esta sensação e realmente volto à minha infância profunda... É claro, a primeira terra-mãe que tive foi Pernambuco, a segunda foi o Rio de Janeiro. Depois, quando saí da Tijuca para Copacabana, foi realmente uma aventura fabulosa, por causa do mar. O mar significava Olinda, a minha infância profunda. Portanto o mar significava a minha pátria, minha paisagem. Quero dizer que eu não mudei nada quando fiquei junto ao mar”.
Mas isso poderia ser mero acidente de percurso biográfico, digamos assim. Ou apenas boutade, fala espirituosa no ardor de uma conversa, puro gosto do paradoxo, como era do seu estilo e feição. Então passemos rápido, rápido como passamos rápido por uma cidade que não é nosso destino. De passagem, olhemos a referência mais ressaltada de Nelson Rodrigues até hoje, o texto dramatúrgico. Ora, o seu teatro exigiria um estudo além da frase exterior no palco, além da paisagem, do óbvio ululante, como diria ele. Penso que o seu teatro vem de um certo e tenebroso Pernambuco. Aqueles delírios patológicos dos personagens, aqueles conflitos fundos que sobem à cena, fazem parte da repressão sexual da casa-grande de Pernambuco. Das sinhazinhas e senhores escravocratas vêm aqueles incestos, paixões impossíveis dentro do lar mais suburbano. Aqueles devaneios à margem da sala de visitas não são bem a escolha de um escritor carioca à procura da originalidade. Vêm antes de uma herança espiritual de senhores de engenho que se espraiou pela gente do Recife. De um ponto de vista factual e do ser, a opressão dos engenhos acompanhou a família pernambucana de Nelson Rodrigues até o Rio de Janeiro. Ou como ele próprio confessou, na entrevista a Hélio Pellegrino, do tema que lhe veio em sua primeira tentativa literária:
“Na Escola Prudente de Moraes, houve um concurso de composição na aula. Era, se não me engano, o 4° ano primário, e ganhamos o concurso, eu e outro garoto. O outro garoto escreveu sobre um rajá que passeava montado num elefante e eu escrevi a história de um adultério que terminou com o marido esfaqueando a adúltera. Creio que a professora dividiu o prêmio com o outro garoto como concessão à moral vigente, porque ela ficou meio apavorada, em pânico, com a violência da minha A Vida Como Ela É... Eu era olhado pelas professoras como uma promessa de tarado.
Eu tenho uma experiência, aliás, já citei isso, a minha primeira experiência erótica é anterior à minha memória. Eu não me lembro de nada e este fato só foi referido muito posteriormente. Um dia apareceu lá em casa uma santa senhora, vizinha, mãe de uma menina de uns quatro anos, para dizer que qualquer filho de minha mãe poderia entrar na casa dela, menos eu. O negócio teve um tal toque de inocência e de pureza que eu não me lembro de nada. De vez em quando faço um esforço, começo a escavar na memória e não tenho a menor noção do que eu teria feito para justificar a ira da santa senhora. O meu ambiente familiar era, sob este aspecto erótico, de um grande rigor. Eu disse o meu primeiro palavrão aos doze anos de idade”.
Tão breve assim não podemos encarar o gênero de fantasmas e formação de Nelson Rodrigues. Então sejamos mais rápidos ainda em outra cidade, antes do nosso destino, que nos grita desde ontem, “aqui te aguardamos”. Fora do específico destas linhas tem que ser mencionado, pelo menos de passagem nestes seus 100 anos de nascimento, o seu declarado reacionarismo. Dele, Antonio Calado falou em uma entrevista no Pasquim em 1971: “Nelson é o grande clássico das Forças Armadas”. É claro, os militares usaram de Nelson Rodrigues o que lhes convinha – os ditos satíricos contra as passeatas, contra Mao Tsé-Tung, contra Dom Hélder Câmara, e tudo mais que insinuasse socialismo. É claro, ainda, os militares não foram nada simpáticos à subversão do seu teatro, porque “imoral, obsceno, pornográfico”, nem à sua fecunda e criadora paixão pelo futebol brasileiro, do qual iremos nos ocupar mais adiante. De passagem, por fim, anotemos que a vida, a vida mesma como ela é, se encarregou de jogar o escritor contra a sua sátira, quando o subversivo Nelson Rodrigues Filho foi preso e torturado. O filho do escritor que parecia ser simpático à ditadura acabou por ser condenado pelo regime a mais de 70 anos de prisão.
Em carta publicada no Jornal do Brasil em 1979, Nelson Rodrigues se dirigiu ao ditador da República, João Batista Figueiredo, num tom que misturava lirismo e cáustica ironia, conforme seu estilo. E publicou o seu pedido de anistia:
“Ora, um presidente não pode passar por um amanuense. Há uma anistia. Tem que ser uma anistia histórica. O que não é possível, presidente, é que seja uma anistia pela metade. Uma anistia que seja quase anistia. O senhor entende, presidente, que a terça parte de uma misericórdia, a décima parte de um perdão não tem sentido. Imagine o preso chegando à boca da cena para anunciar: – ‘Senhoras e senhores, comunico que fui quase anistiado’ ”.
Isso posto, mal posto, já se vê, porque fomos breves, chegamos afinal a nosso porto e destino. Neste ponto, copio a frase do grande Ivan Lima, quando começava a narração do futebol nos rádios recifenses: “Abrem-se as cortinas do espetáculo”. E nós víamos pelos olhos da imaginação o estádio de futebol com essas palavras. Agora, também se abrem as cortinas do espetáculo, porque Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor e excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, mas sem as quedas demagógicas de baixar o nível para falar aos trabalhadores, que nem servem ao povo nem à literatura, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva.
Ao parágrafo acima poderia ser comentado: assim fala quem é muito ignorante, porque não conhece a literatura de todo o mundo e se põe a exagerar em um aniversário de 100 anos. De fato, e aqui me ponho esperto entre os mais eruditos pelo fenômeno da redução, não conheço a literatura de todo o mundo. Mas bem posso me associar a uma cultura científica, que se inscreve na experiência mais humana: ninguém precisa entrar de corpo e pés nus na superfície do Sol para concluir que ali, caramba, o Sol é muito quente. Ou de outra maneira: as luzes que vêm da sombra de um quadro de Rembrandt nos indicam, na sensibilidade curtida, que estamos diante de um cume da visão do corpo humano. Porque existe uma universalidade no conhecimento que não precisa da quantidade estatística. Há uma excelência que absorvemos, e processamos no íntimo e nos leva a um reino de encanto que nos fazem dizer: caramba, aqui há um sol de humanidade. E como é luminoso. Se pensam que me engano, olhem e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson Rodrigues fez sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do Mundo de 1958. Antes. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a sensibilidade, a genial arte de um escritor descobriu e revelou um fenômeno:
“Depois do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: – ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônia. Já lhe perguntaram: – “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu com a ênfase das certezas eternas: - “Eu.” Insistiram: – “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: – “Eu.” Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: – “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!” De certa feita, foi, até, desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe, ao encalço, ferozmente, o terceiro, que, Pelé corta, sensacionalmente. Numa palavra: – sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para brilhar. Não existia uma defesa. Ou por outra: – a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude seja, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente de que precisamos. Sim, amigos: – aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.
Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro times entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós”.
Abril de 1958: Pelé estreia, na Copa da Suécia, no jogo Brasil 2 x Rússia 0
Isso se deu em crônica de março de 1958. Poderia ser contraposto, retirada a previsão óbvia (como um ovo de Colombo), nada existe de magnífico na crônica que dá pela primeira vez o lugar de Rei para Pelé, antes da consagração mundial. Ela é algo assim como o primeiro nu frontal do cinema quando visto 100 anos depois. Que banal, poderia ser dito. Então avancemos mais fundo e certeiro. Tenho diante de mim o livro O Berro Impresso das Manchetes, que reúne as crônicas completas de Nelson Rodrigues na Manchete Esportiva, de 1955 a 1959. A tendência, de um leitor atento, se a gente não se cuida, é de sair grifando frases, crônicas inteiras. Se a epifania de Pelé antes do reconhecimento universal não causar espanto, olhem, mastiguem lento e com calma o que Nelson escreveu sobre Garrincha:
“Nos acrobatas chineses o que existe é o esforço, é a técnica, é o virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: - ‘Esse Garrincha é o maior!’. O ‘seu’ Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara”.
Garrincha e sua "orquídea rara"
Cultivar a bola como uma orquídea rara – isso já deixou de ser futebol e penetrou na delicadeza da arte, no mesmo passo em que vemos a fina e macia pétala que se toca com a percepção da vida fugaz. Mas é uma bola. É uma crônica. Nesta altura eu me sinto um escritor absolutamente desnecessário. O que disser parecerá acento circunflexo sobre o céu azul. Pode? Ser leitor dessas crônicas é tão agradável, que nossa única transmissão possível é copiá-la em trechos, porque o tempo urgente não permite a cópia inteira, o que seria um serviço de utilidade pública e educação estética. É irresistível.
Em O craque sem idade:
“A bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: — a pelota não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidade de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: — há na bola uma alma de cachorra.)
No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: — a partida foi um show pessoal e intransferível.”
Em Vitória Fla-Flu:
“O arqueiro Calos Alberto, que chegara a encostar a mão na bola, caiu de joelhos e, assim ficou, de joelhos e atônito, por muito tempo. Dir-se-ia que o gol de Índio era um altar, diante do qual ele se prostrava”.
Em O desfigurado Fluminense:
“A batalha definiu-se, contra o Fluminense, no primeiro minuto. Minto: nos primeiros trinta segundos, exatamente. Vejam vocês: - trinta segundos bastaram para liquidar o líder de sete dias. Mas examinemos o lance fatal. Foi assim: - na primeira carga do Bangu, Zizinho, de fora da área, atira. Foi, sem dúvida, um tiro violento. Mas, de longe, muito longe. Que fez Castilho? Apenas isto: - apanha a bola e larga. Devia, em seguida, agarrá-la, de novo. E, no entanto, o arqueiro tricolor parou, ficou só espiando. Conclusão: veio Wilson e empurrou, docemente. Era o primeiro gol do Bangu e, ao mesmo tempo, a derrota do Fluminense”.
Em Derrota brasileira:
“Sábado, enquanto o Fluminense perdia no Pacaembu, eu assistia, no Maracanã pequeno, à luta Carlson x Leão de Portugal. E, então, o locutor do estádio, Jayme Ferreira, começou a anunciar os gols do Honved – primeiro, segundo, terceiro, quarto, cinco, meia dúzia...”
E aqui, me permitam por favor um parêntese no céu azul. Nelson Rodrigues fala de jogos a que não assistiu. E o leitor, se nota, não sente a falta da presença física do repórter. Onde já se viu isso na imprensa esportiva do mundo? Ele acha pouco e na crônica da semana seguinte, sob o título genial de A Derrota Triunfalescreve:
“O que mais admira, em nós, jornalistas, é a desenvolta irresponsabilidade com que escrevemos as nossas barbaridades. Por exemplo: a propósito do jogo Flamengo x Honved, um matutino de domingo escreve o seguinte: - ‘depois do segundo tento, o calor tomou conta da rapaziada magiar...’ Leio isso e mergulho numa desesperada meditação. Cabem duas perguntas. Primeira – ‘Só fazia calor para os húngaros e para o Flamengo, não?’ Segunda: - ‘Antes do segundo tento, fazia frio no Maracanã, nevava no Maracanã?’ ... Eu compreendo que a temporada húngara induz qualquer um a ser idiota. Façamos, porém, uma tentativa de inteligência. E, então, chegaremos à visão certa da batalha de sábado. É a seguinte: - não foi o Honved que venceu o Flamengo por 3 x 2. Foi o Flamengo que venceu o Honved por 2 x 3”.
Essa crônica esportiva, de gênero que os espanhóis diriam ser esquisito, e aqui recupero pelos sentidos de muito bom e raro, esse texto de Nelson a gente absorve com um prazer e com um sorriso, que posto na face não se desgruda mais, durante as sucessivas crônicas do livro. Como é que ele conseguia escrever tão bem, no meio de uma redação barulhenta, sob os tiros de mais de 40 metralhadoras das máquinas de escrever, e nuvens de cigarros, e gritos, e piadas, e explosões de raiva e confusão? Penso que seria como fazer amor em meio às arquibancadas de um estádio durante um Fla x Flu. Vocês já veem que a gente lê Nelson Rodrigues e fica meio contaminado pelo espírito dele.
“Os passes de Didi! São precisos, exatos, irretocáveis como um soneto antigo. Direi mais, se me permitem a comparação: - Didi é a mãe dos pernas-de-pau. Quantos companheiros vivem, e sobrevivem, à sua sombra? Ele não depende de ninguém e quantos dependem dele? Ao lado de Didi, o perna-de-pau já o é muito menos”.
Ele – Nelson Rodrigues em seus craques - arranca graça e humor em frases que guardam sempre os mesmos recursos, imagens, mas ainda assim surpreendem. Ele na crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson usa sempre o exagero, as expressões mais despudoradas, melodramáticas, truques de circo na hipérbole, com o maior despudor e cinismo, mas ainda assim o leitor era, é driblado, assim como os marcadores de Garrincha. Que encanto! Com a diferença que a gente é driblado, mas não se frustra, porque enche o peito da gente de felicidade.
“Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: ‘Como vai, colega?’”.
Na verdade, mesmo sem o seu teatro, Nelson Rodrigues seria imortal, se permitem mais um acento circunflexo no mar de suas crônicas. Dele pode ser dito o mesmo que ele escreveu sobre o romancista José Lins do Rego:
“Morto e, no entanto, parece mais vivo do que muitos que andam por aí, que circulam, que batem nas nossas costas e contam piadas. Não resta dúvida que ‘morrer’ significa, em última análise, um pouco de vocação. Já falei nos vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas ou de lhes atirar na cara a última pá de cal. Esses têm, sim, a vocação da morte.
Fomos, todos, enterrá-lo no chão muito doce de São João Batista. Mas é como se não existisse a mínima relação entre o funeral e Zé Lins, entre o caixão e o grande romancista.”
No país das chuteiras, ninguém escreveu sobre o futebol com tanta graça e gênio quanto ele. Descobrimos ao fim de cem anos.