Martha Abreu
In: Abreu, Martha e Soihet, Rachel, Ensino de História, Conceitos, Temáticas e Metodologias. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
Cultura popular é um dos conceitos mais controvertidos que conheço. Existe, sem dúvida, desde o final do século XVIII; foi utilizado com objetivos e em contextos muito variados, quase sempre envolvidos com juízos de valor, idealizações, homogeneizações e disputas teóricas e políticas. Para muitos, está (ou sempre esteve) em crise, tanto em termos de seus limites para expressar uma dada realidade cultural, como em termos práticos, pelo chamado avanço da globalização, responsabilizada, em geral, pela internacionalização e homogeneização das culturas.
Por outro lado, se cultura popular é algo que vem do povo, ninguém sabe defini-lo muito bem. No sentido mais comum, pode ser usado, quantitativamente, em termos positivos - "Pavarotti foi um sucesso popular" - e negativos - “o funk é popular demais". Para uns, a cultura popular equivale ao folclore, entendido como o conjunto das tradições culturais de um país ou região; para outros, inversamente, o popular desapareceu na irresistível pressão da cultura de massa (sempre associada à expansão do rádio, televisão e cinema) e não é mais possível saber o que é originalmente ou essencialmente do povo e dos setores populares. Para muitos, com certeza, o conceito ainda consegue expressar um certo sentido de diferença, alteridade e estranhamento cultural em relação a outras práticas culturais (ditas eruditas, oficiais ou mais refinadas) em uma mesma sociedade, embora estas diferenças possam ser vistas como um sistema simbólico coerente e autônomo, ou, inversamente, como dependente e carente em relação à cultura dos grupos ditos dominantes.
Para alguns historiadores atuais, como Roger Chartier, sempre
foi impossível saber (ou mesmo não interessa descobrir) o que é genuinamente do povo
pela
dificuldade ou mesmo impossibilidade de se precisar
a origem social das manifestações culturais, em função da histórica relação e intercâmbio cultural entre os mundos sociais, em qualquer período da História.
De qualquer forma,
Chartier está coberto de razão em alertar, com uma boa dose de denúncia, ser o conceito de cultura popular
uma categoria erudita, que pretende
“delimitar, caracterizar
e nomear práticas que nunca são designadas pelos seus atores como pertencendo à cultura popular”. Sempre há o risco, continua o historiador francês, de se ficar
incessantemente procurando
uma suposta idade de ouro da cultura popular, período onde ela teria existido “matricial e independente”, frente a épocas posteriores, onde a dita cultura popular teria começado a ser perseguida por autoridades eruditas ou desmantelada pelos irresistíveis impulsos da
modernidade
.
Apesar de todos os problemas apontados e dos diferentes sentidos
que a expressão
vem recebendo, insisto e costumo defender que o conceito é válido e útil para os profissionais de História.
Antes, porém, é bom não perder de vista que,
como todo o conceito, o de cultura popular também constrói identidades e possui uma história. Neste caso, várias histórias, que recuam ao final do século XVIII -
com o filósofo Herder - sempre ligadas aos sujeitos e movimentos sociais que o trouxeram a tona (ou o recriaram) e o elegeram como fundamental. Esta história é para mim a chave das dificuldades que são atribuídas ao conceito.
A chave para o encaminhamento da discussão sobre cultura popular.
Ao aprofundarmos a história do conceito de cultura popular, realizamos uma operação que subverte os seus sentidos universais, ahistóricos, ideológicos e políticos
que costumeiramente lhe são
atribuídos. Como afirma Nestor Canclini, deve-se desconstruir as operações científicas e políticas que colocaram em cena o popular
.
Sendo assim, um dos meus objetivos aqui é exatamente chamar a atenção dos profissionais de História para a importância de se pensar a história do conceito de cultura popular e dos significados políticos e teóricos que o conceito recebeu ao longo do tempo, sempre historicamente construídos ou inventados (por isso, o envolvimento com as questões políticas e ideológicas de seu próprio tempo).
Antes, porém, é bom deixar claro que não entendo cultura popular como um conceito que possa ser definido a priori, como uma fórmula imutável e limitante. Talvez possa ser visto como uma perspectiva, no sentido de ser mais um ponto (de vista) para se observar a sociedade e sua produção cultural. O fundamental, no meu modo de ver, é considerar cultura popular como um instrumento que serve para nos auxiliar, não no sentido de resolver, mas no de colocar problemas, evidenciar diferenças e ajudar a pensar a realidade social e cultural, sempre multifacetada, seja ela a da sala de aula, a do nosso cotidiano, ou a das fontes históricas. Não se deve perder de vista, entretanto, como já ouvi certa vez, que muito mais fácil do que definir cultura popular é localizá-la em países como o Brasil, onde o acesso à chamada modernidade não eliminou práticas e tradições ditas pré-modernas (se bem que todo cuidado é pouco para identificar estas práticas e tradições como populares).
Desde o final do século XIX, no Brasil, a expressão cultura popular esteve presente numa vertente do pensamento intelectual, formada por folcloristas, antropólogos, sociólogos, educadores e artistas, preocupada com a construção de uma determinada identidade cultural. Artistas, políticos, literatos, intelectuais tentaram responder a estas questões relacionando cultura popular com variados atributos, por vezes contraditórios: ora com a não modernidade, o atraso, o interior, o local, o retrógrado, o entrave à evolução; ora com o futuro positivo, diferente, especial e brilhante para o país, valorizando as singularidades culturais e a vitalidade de uma suposta cultura popular, responsável pelo nascimento de uma nova consciência, uma nova civilização, sempre mestiça.
A partir dos anos 1940/1950, cultura popular assumiu uma perspectiva política associada aos populismos latino-americanos, que procuravam oficializar as imagens reconhecidamente populares às identidades nacionais e à legitimidade de seus governos. O conceito também foi incorporado pela esquerda, principalmente na década de 1960, tendo assumido um sentido de resistência de classe, ou, inversamente, de referência a uma suposta necessidade dos oprimidos a uma consciência mais crítica, que precisava ser despertada O conceito poderia ser encontrado entre os intelectuais do cinema novo, da teologia da libertação, dos centros populares de cultura e entre os educadores ligados aos princípios de Paulo Freire.
Atualmente, uma tendência dos que lidam com indústrias culturais e comunicação de massa é pensar o popular em termos do grande público. Nesta perspectiva, seria possível encontrar uma hierarquia de popularidade – em função do maior ou menor consumo - entre os diversos produtos culturais ofertados no mercado, tornando menos evidente o sentido político que anteriormente marcava os usos da expressão “popular”. A despeito disto, não é incomum encontrarmos certas afirmações de que alguns jornais são feitos para o “povão”, apresentando um padrão reconhecido como popular.
Evidentemente, seria impossível resolver, ou mesmo aprofundar, todas as disputas em torno do conceito de cultura popular. Minha intenção neste artigo é explicitar algumas correntes que tiveram (e ainda possuem) muita influência na difusão, no meio acadêmico, artístico, jornalístico e escolar, de certos tipos de entendimento do conceito de cultura popular
1) O caminho do Folclore e dos folcloristas. A crítica da sociologia paulista.
Se o folclore e os folcloristas são palavras
muito desgastadas
e carregadas de
conotações pejorativas,
o pensamento dos folcloristas ainda está presente nas esferas políticas, educacionais e culturais. Várias comissões de folclore, inauguradas nos anos áureos da Campanha Nacional do Folclore, nas décadas de 1950 e 1960,
renovaram-se e são muito ativas (ver, por exemplo,
o site
www.folclore.art.br e o jornal da Comissão Maranhense de Folclore,
http://sites.uol.com.br/cmfolclore).
Embora, após estas décadas, os folcloristas tenham perdido espaço
no ensino universitário,
em função do descrédito que sua disciplina passou
a ter, muito em função das críticas que feitas pela escola de sociologia da Universidade de São Paulo (USP), obtiveram importantes vitórias
no ensino elementar, nas Secretarias de Turismo e Cultura, nas Escolas de Música e Educação Física.
Os folcloristas e a disciplina que criaram - o folclore - surgiram na Europa. Por mais que ultrapasse os limites deste artigo
uma análise profunda da
trajetória européia do folclore
, valem ser destacados alguns pontos importantes desta história.
Depois de os
iluministas, no século XVIII, terem visto os
camponeses e os homens comuns como incultos e carentes de tudo, muitos românticos, ao longo do século XIX,
procuraram conhecer os costumes populares, as expressões dos subalternos do mundo rural, elevando-as ao patamar das marcas da nacionalidade contra tudo que fosse
estrangeiro.
Herder, na futura Alemanha, no final do século XVIII, foi quem pela primeira teria utilizado o conceito de cultura popular (Kultur des Volkes) sem o sentido valorativo dos iluministas e com o sentido de alteridade. Segundo Norbert Elias, a criação do conceito de “Kultur” (Cultura), opondo-se ao conceito iluminista francês de Civilização, correspondia a um desejo de ascensão de pequenos burgueses que iriam cultuar a sinceridade, a natureza, os modos simples. Ligava-se à construção das bases da identidade cultural alemã, em oposição às outras potências européias. O movimento protagonizado por Herder e pelos irmãos Grimm buscou entre os costumes dos camponeses - seus poemas, músicas, festas, saberes, histórias e rituais - encontrar as marcas de uma essência diferenciadora e autêntica, o espírito coletivo de um “povo” em particular, base para a construção da futura nação alemã. Os camponeses pareciam, aos olhos destes intelectuais, ter guardado, desde tempos muito remotos, a tradição que precisava ser resgatada frente às ameaças da modernidade, da sociedade industrial e da civilização exteriores.
Os folcloristas propriamente ditos passaram a ser reconhecidos a partir de 1846, quando as denominações “folk” (que além de povo expressava a idéia de nação) e “lore” (que significava saber, mas denotava também seriedade, pois incluía os conceitos de educação e erudição) foram difundidas pela revista inglesa “The Athenaeum” por W. J.Thoms. As pesquisas e obras publicadas pelos folcloristas, ao longo do século XIX, construiriam a idéia de um “povo” portador de práticas e objetos culturais distantes do estrangeirismo das classes ditas superiores, e, por isso, depositário do que era o mais autêntico e essencialmente nacional. Desinteressados dos reais problemas sociais do campesinato e dos trabalhadores das cidades, ambos profundamente afetados com as transformações da revolução industrial, os folcloristas valorizaram as continuidades, as sobrevivências e as tradições que pareciam teimar em permanecer nas áreas rurais.
O folclore no Brasil, e também na América Latina, (ainda está para ser feito um estudo mais sistemático sobre a História do Folclore na América Latina), seguiu um caminho semelhante ao da Europa. Em geral, serviu para formar as novas nações, no final do século XIX e início do XX, resgatar a identidade do passado e os sentimentos populares frente ao cosmopolitismo liberal do período.
Desde Silvio Romero, no final do século XIX,
a
cultura popular, a poesia popular e mais entusiasticamente a música dita popular já eram apontadas por certos intelectuais
como expressão da
identidade nacional brasileira
. Influenciados pelas discussões sobre os caminhos do progresso e da civilização,
estes intelectuais folcloristas investiram na compreensão
e na avaliação sobre as possibilidades da nação
a partir destas especificidades próprias.
Em torno da qualidade e profundidade da poesia popular brasileira, por exemplo -
vigorosa, ou não, criativa ou apática -
procuraram diagnosticar as potencialidades da nação que projetavam,
buscando resgatar, preferencialmente, a produção dos sertanejos e dos caboclos do interior. Nas primeiras décadas do século XIX, além de suas avaliações
nunca terem sido muito positivas, em função das apregoadas deficiências das 3 raças formadoras do “povo brasileiro”, a mestiçagem (na alma e no sangue, como dizia Romero), quando valorizada, vinha associada a um futuro
branqueamento da nação que se pretendia construir.
O folclore e os folcloristas só ganharam mesmo expressão nacional a partir da década de
1930, quando
consagrou-se a estreita união entre identidade nacional, a miscigenação e a
positiva e rica cultura popular nacional. São apontados como maiores marcos deste momento a
obra de Gilberto Freyre, publicada em 1933,
e o próprio regime Vargas, que atrairia para a esfera do Estado as manifestações culturais populares, como, por exemplo, as escolas de samba
.
Segundo Luis Rodolfo Vilhena, que construiu uma importante história do que se chamou de o “Movimento Folclórico Brasileiro”, entre 1947-1964, os folcloristas brasileiros tentaram construir o caráter
da sociedade e cultura nacionais, investindo-se de um sentido de missão
. A construção nacional viria através da integração cultural.
O Movimento Folclórico, entre 1947-1964, produziu uma vertente significativa do pensamento antropológico (maioria dos livros de antropologia publicados na época) e se entendia relevante por seu objetivo de construção nacional. Grandes figuras, de diferentes tendências, destacaram-se dentro do folclorismo: Renato Almeida, Rossini Tavares de Lima, Artur Ramos, Câmara Cascudo e Edson Carneiro
Os folcloristas, também no Brasil, buscaram o “outro”, mas o “outro” dentro do próprio país, antes que, na sua concepção, ele desaparecesse pelos inevitáveis impulsos da urbanização e modernização. Valorizaram os registros obtidos a partir da cultura rural oral de seus informantes, e defenderam a concepção de que inexistiam autores entre as manifestações populares. Ambas perspectivas eram importantes para a construção de seus veredictos sobre a autenticidade do que definiam como cultura popular (posto que reprodutora de tradições de tempos imemoriais). A autenticidade da cultura popular era fundamental para que pudesse legitimar a expressão da verdadeira singularidade nacional.
Se o folclore valorizava o tradicional e o que permanecia, como traços de uma identidade cultural e étnica, marcada pela integração cultural sincrética das 3 raças (também conhecida como a “fábula da união das três raças”), a sociologia das décadas de 1950 e 1960, liderada pela Universidade de São Paulo (USP) de Florestan Fernandes, passou a ver as culturas populares no âmbito da modernização, da mudança social e das desigualdades sociais. Os folcloristas e o folclore passaram a receber críticas profundas por defenderem uma prática tida como não científica, em função de seu pretenso caráter mais descritivo que interpretativo, e por ficarem identificados às forças mais conservadoras de uma sociedade que rapidamente se transformava, cheia de conflitos sociais. Acabaram sendo marginalizados nas universidades e esquecidos pela intelectualidade de esquerda, como bem demonstrou Luis Rodolfo Vilhena. As críticas tiveram uma tal repercussão que a expressão folclore hoje possui significados negativos, assumindo até mesmo conotações ligadas ao anedótico e ao ridículo.
Para os sociólogos ligados à USP, dentre eles também Roger Bastide e Maria Isaura Pereira de Queiroz, a segmentação social e o preconceito racial não permitiram a criação de uma cultura nacional ou de uma sociedade e cultura integradas, pois o “povo”, nesta concepção,
não
mais poderia ser visto como o produtor de cultura autêntica, já que se
tornara
o proletariado. A integração nacional não se realizava via integração cultural, como pretendiam os folcloristas, mas através da dominação dos estratos dominantes. Não se poderia mais pensar em “integração cultural”, mas em como
“integrar os estratos sociais” marginalizados
.
O resultado de todo este debate, entretanto, foi muito além da desvalorização da produção acadêmica dos folcloristas e do folclore. Passaram também para segundo plano as discussões sobre os significados das práticas culturais ditas tradicionais, populares ou não (festas religiosas, por exemplo), e a reflexão sobre a dinâmica das intensas trocas culturais (interior/urbano; popular/erudito) na sociedade brasileira. Ganharam terreno trabalhos preocupados com a transformação do Brasil em uma moderna sociedade de classes e com a busca das razões econômicas da reprodução das desigualdades sociais.
Se a discussão em torno da cultura dos setores subalternos manteve-se acesa, atrelou-se, em grande parte, às avaliações sobre os aspectos que levavam à sua alienação ou consciência de classe, o que possibilitou a consolidação de uma série de visões preconceituosas sobre a cultura popular: cultura fragmentada, conservadora, presa às tradições, obstáculo às mudanças sociais, conformista e supersticiosa. As reflexões sobre as manifestações culturais dos homens e mulheres comuns acabaram ficando, mais uma vez, prisioneiras das armaduras ideológicas de seu próprio tempo.
Evidentemente, os estudos de folclore diziam muito pouco sobre como se processava a dominação. Não se preocupavam em conhecer os problemas e a real situação das classes populares em foco. Idealizavam um autêntico “povo rural” que não ameaçava a ordem social. Preferiam pensar as culturas populares como diferentes e não como partes que também eram (e são) de um sistema de dominação.
Desta última perspectiva, que incorporava reflexões sobre a dominação, participaram, principalmente a partir da década de 1970, intelectuais marxistas que receberam a reconhecida influência de Gramsci. As culturas subalternas, em sua perspectiva, seriam o resultado da distribuição desigual dos bens econômicos e culturais, ao mesmo tempo que poderiam oferecer uma forma de oposição à cultura hegemônica, dos setores dominantes. Criavam-se as bases de reflexão sobre o caráter resistente dos setores populares, oprimidos em suas condições de vida e cultura. Combinando os dois lados da questão, Marilena Chauí publicava, em 1986, o clássico “Conformismo e resistência, aspectos da cultura popular no Brasil”.
Entre sobrevivências, tradição, modernidade, globalização, luta de classes, alienação, dominação, resistência, visões que percorrem os livros acadêmicos, os livros didáticos, e o senso comum, onde fica, afinal, a cultura popular? Ainda vale a pena utilizar a expressão? Onde ficamos nós frente a ela?
2) Outras possibilidades: a vez dos historiadores
Seguindo o raciocínio de Nestor Canclini, hoje temos mais clareza a respeito das irresistíveis pressões da modernidade. Percebe-se com maior facilidade a existência de várias modernidades, através de diferentes formas de articulação entre o modelo racionalista liberal (considerado moderno) e as antigas tradições populares, étnicas, religiosas etc. A chamada modernidade não pode mais ser vista como homogênea, nem como um instrumento todo poderoso que reorganiza, necessariamente e da mesma forma, todas as práticas culturais. Evidentemente, não se pode também pensar em um isolamento completo, os grupos de alguma forma reagem (ou interagem) ao mercado transnacional que se apresenta.
O mundo da cultura e das práticas culturais é (e sempre foi) repleto de contradições e conflitos, que podem ser rapidamente observados na sociedade brasileira se lançarmos mão de velhos impasses, como a permissão, ou não, para os escravos batucarem e sambarem, e de novos desafios, como o convívio, ou não, com o funk. Esquecer estes conflitos, ou as interações e tolerâncias que sempre existiram, é perder de vista a possibilidade de compreensão das práticas culturais. Esta é a nossa proposta: pensar nesta perspectiva o mundo da cultura, especialmente entre os setores populares. É possível construir uma nova perspectiva do popular, do tradicional popular, da cultura popular a partir dos conflitos, intercâmbios e sincretismos com as chamadas cultura das elites, indústrias culturais e modernidades?
Resgatando
Carlo Ginzburg, que muito contribuiu para renovar os estudos sobre cultura popular na História, houve uma importante mudança ao se romper
com a posição de quem distinguia nas idéias, crenças, visões do mundo das classes subalternas nada mais do que um acúmulo desorgânico de fragmentos de idéias, crenças, visões do mundo elaborados pelas classes dominantes, provavelmente vários séculos antes.
Rompia-se com a idéia aristocrática de cultura, quando se passava a reconhecer
que os indivíduos outrora definidos como “camadas inferiores dos povos civilizados”
possuíam cultura, ou seja possuíam, na sua perspectiva, um conjunto próprio de “atitudes, crenças e códigos de comportamentos”. Em sua feliz frase, “a consciência pesada do colonialismo, que criou a antropologia cultural, se uniu assim à consciência pesada da dominação de classe”
.
A existência de desníveis culturais no interior das assim chamadas sociedades civilizadas foi, segundo o autor, sendo definida por várias disciplinas como o folclore, a antropologia social, a história das tradições populares e a etnologia européia. Só tardiamente, basicamente na década de 1970, esta perspectiva foi incorporada pela historiografia. Em seu trabalho sobre o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição na Itália, no século XVI (publicado na Itália, em 1976, e no Brasil em 1987), Ginzburg aprofundou questões que se tornaram fundamentais para os historiadores: a relação entre a cultura das classes subalternas (termo cunhado por Gramsci) e a das classes dominantes. Até que ponto há subordinação? Até que ponto é alternativa? Como entender a circularidade, ou, em termos tropicais, os sincretismos culturais e religiosos?
Esta discussão de Ginzburg, na década de 1970, foi parte integrante de um movimento maior de historiadores ligados à história social, que resgatava, não só a perspectiva do mundo da cultura na História, mas
a perspectiva da “história vista de baixo”: as culturas do povo e a multidão na História; “economia moral” dos pobres; experiência e cultura dos trabalhadores; circularidades culturais e apropriações de sujeitos históricos com uma dose variável, mas razoável de autonomia.
Como marcos deste movimento, em termos de discussão sobre cultura popular, podem ser destacados Peter Burke, Mikhail Bakhtin, Robert Darnton , E. P. Thompson, além do próprio Ginzburg
.
A obra do historiador inglês Peter Burke, de 1978, foi uma das primeiras publicações em português (1989) a tratar do tema cultura popular de uma forma global, na Europa, entre 1500- 1800. Consciente das dificuldades, Burke explicitou na Introdução da edição brasileira os impasses que acompanhavam os que se dedicavam à temática, sem abrir mão, entretanto, da opção que fizera de estudar a cultura popular no período moderno. Levantou os perigos do uso do termo, dentre eles o de dar a impressão de uma grande homogeneidade no tempo e espaço em termos culturais e o de favorecer abusos sobre a suposta oposição entre cultura popular e cultura erudita. Pensar a interação e compartilhamento entre estas culturas seria sempre uma boa opção. Visando encaminhar estes problemas, Burke cunhou o termo “biculturalidade” para expressar o quanto membros das elites, representantes da “alta cultura”, conheciam e participavam do mundo da cultural popular, ao mesmo tempo que preservavam a sua própria cultura. Também não deixou de chamar a atenção para a possibilidade de significados diferentes, quando práticas culturais eram compartilhadas, como festas ou feiras, entre membros do povo e das elites.
Peter Burke levou realmente a sério os questionamentos realizados por
Roger Chartier sobre os equívocos que acontecem quando se procura identificar cultura popular em determinados objetos culturais (como literatura de cordel ou ex-votos), já que
os referidos objetos eram ‘apropriados’ (termo de Chartier) “para suas próprias finalidades por diferentes grupos sociais, nobres e clérigos, assim como artesãos e camponeses”
.
Em resposta, Burke procurou mostrar que as críticas de Chartier não invalidavam o seu trabalho, na verdade seriam complementares, pois, além de ter definido as elites, no começo da Europa moderna, como “biculturais”, não definiu cultura popular em torno de objetos específicos. Para o autor, cultura seria “um sistema de significados, atitudes e valores compartilhados, e as formas simbólicas (apresentações – formas de comportamento, como festas e violência - e artefatos – construções culturais, como categorias de doença ou política) nas quais elas se expressam ou se incorporam”
.
Em trabalho mais recente,
Peter Burke parece ter amadurecido muitas de suas questões anteriores, ao definir o problema dos limites entre a “unidade e a variedade na história cultural”, título de capítulo de um de seus últimos livros
, como um dos maiores desafios dos historiadores interessados na questão. Defendendo a necessária, porém difícil,
resistência a uma visão fragmentada de cultura (seja por grupo social, região ou gênero), sem se retornar à suposição enganadora da homogeneidade de um período, o autor valoriza a busca dos processos de interação (definidos ora
em termos de troca, empréstimo, apropriação, resistência, sincretismo, hibridação etc) “entre diferentes subculturas,
homens e mulheres, urbanos e rurais, católicos e protestantes, dominantes e dominados”
. Em outro aspecto complementar, Burke incorpora as recentes preocupações com a formação de identidades culturais, fruto de apropriações e
opções dos próprios agentes sociais.
Para outro importante historiador inglês, E. P. Thompson, também preocupado com um período de intensas mudanças no século XVIII, a discussão sobre cultura popular deve ser inserida
no movimento das classes trabalhadoras em defesa de seus costumes (entendidos por muito tempo como cultura), frente às pressões exercidas pelos reformadores das mais variadas espécies (educadores, religiosos, por exemplo) e pelos capitalistas em geral, disseminadores de uma nova disciplina de trabalho e de um novo
domínio da lei. Em sua perspectiva, sintetizada na Introdução do livro ‘Costumes em Comum”
, publicado em 1991 na Inglaterra e em 1998 no Brasil, a chamada cultura tradicional (ou pré-industrial) dissociava-se, naquele contexto histórico, do que chamou da cultura da “gentry” (também denominados de “vigorosos capitalistas agrários”),
assumindo um nítido viés de luta de classes na defesa de seus costumes, que incluíam tanto condições de trabalho, como festas, feiras, vida em tavernas e ritos sociais. A visão de uma tradição entendida como sobrevivência do passado, foi bastante criticada por Thompson e compreendida em termos
políticos como um local de disputas e conflitos entre interesses opostos.
É exatamente neste sentido, no meu modo de ver, a maior contribuição de Thompson para os estudos de cultura popular. O autor
recomenda muito atenção para os perigos de se trabalhar com uma idéia de cultura popular com uma perspectiva ultraconsensual e simplificadora, que determinadas definições antropológicas podem sugerir, como por exemplo a que foi utilizada por
Peter Burke no trabalho de
1978 e citada parágrafos acima (nota 11)
. Na suas reflexões, cultura é
um conjunto de diferentes recursos, em que há sempre uma troca entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole. É uma arena de elementos conflitivos localizados dentro de específicas relações sociais e de poder, de exploração e resistência à exploração.
O recurso ao contexto histórico específico, diretamente ligado à experiência dos trabalhadores (uma possibilidade de nos livrarmos do determinismo estrutural e do voluntarismo dos agentes sociais) é sempre visto por Thompson como fundamental, evitando-se generalizações universais, mecanicistas e vazias. No caso estudado pelo autor, a cultura plebéia inglesa do século XVIII não era independente de influências externas; assumia uma forma de defesa de suas tradições (nem sempre ligadas à igreja ou às autoridades) em relação aos limites e aos novos controles impostos pelos “governos patrícios” e pelas transformações do mundo industrial moderno. Podia também renovar-se e assumir um caráter rebelde em termos do que Thompson chamou de “economia moral da plebe”.
Nos limites deste trabalho, seria impossível um aprofundamento de todos os historiadores que abriram as portas para o debate em torno de cultura popular. A escolha de Peter Burke e Thompson deveu-se
ao fato de terem discutido e enfrentado as
principais questões em torno da relação entre história, historiadores, folclore e cultura popular. De alguma forma dialogando com estes autores,
os
historiadores brasileiros que se dedicaram ao tema já reúnem uma expressiva produção em termos de estudos sobre
protestos sociais,
festas e carnavais,
religiosidades populares e/ou afro-brasileiras,
práticas médicas, valores familiares e morais
4) Cultura popular hoje: ensino e pesquisa
Não há dúvida de que
entre os importantes
marcos da discussão sobre cultura popular destaca-se a compreensão da relação entre as culturas ditas tradicionais e populares,
e a avaliação sobre as
irresistíveis pressões e transformações supostamente impostas pela modernidade, em qualquer período histórico. Isto deu margem a algumas ironias por parte de
Roger Chartier sobre o eterno destino trágico atribuído à cultura popular por parte de alguns historiadores: ser abafada, recalcada e arrasada
.
Para a discussão que estamos aprofundando talvez sejam oportunas as palavras de Thompson, em uma palestra proferida na Índia, em 1977, quando valorizava os trabalhos de história que procuravam investigar o folclore e a tradição, como ótimas oportunidades para se estudar os costumes antigos e seus significados sociais:
“O folclore na Inglaterra é, na maior parte, uma compilação literária de resquícios dos séculos XVIII e XIX, testemunhos coletados por párocos e educados antiquários, que os reconheciam por detrás da fronteira de classe
da condescendência. No trabalho de um especialista indiano contemporâneo, constato que ele coletou, durante a pesquisa em dois vilarejos, 1500 canções populares, 200 histórias, 175 adivinhações, 800 provérbios e algumas simpatias. Fico roxo de inveja ao escrevê-lo...”
Pensar a pertinência do uso do conceito de cultura popular no Brasil hoje requer que se leve em consideração esta “inveja” de Thompson e se avalie até que ponto a cultura dita de massa ou a globalização encerraram as possíveis continuidades e/ou renascimentos da cultura popular – presente em canções, músicas, festas, valores, e expressões religiosas, por exemplo - em áreas ainda distantes do centro capitalista mais moderno ou em áreas que construíram caminhos variados de relação com as ditas modernidades.
Para períodos mais recentes, a análise do sociólogo mexicano Nestor Canclini sobre cultura popular pode ajudar, principalmente aos profissionais que trabalham com alunos pertencentes aos setores populares e enfrentam uma série de desafios nesta difícil empreitada.. Afinal, os professores que atuam nas escolas públicas brasileiras das grandes cidades, para além de suas funções profissionais, acabam tendo que abrir o diálogo (ou, ao menos pensar, nele) entre mundos às vezes muito diferentes e estranhos, o seu e o dos alunos - sendo que na maioria das vezes não estão preparados para isso. Ao tentarem o diálogo, aproximam-se forçosamente da posição dos folcloristas, pois precisam refletir sobre as diferenças culturais e as possíveis aproximações entre professores e representantes de setores populares (sem contar com as possíveis diferenças entre os próprios alunos!). Se esta relação é por vezes difícil e conflituosa, as discussões aqui realizadas sobre cultura popular podem ajudar os professores a lidar com as desafiantes sensações de estranhamento e, conseqüente, insegurança. Para os alunos, essas mesmas discussões podem ajudá-los a perceber e a construir identidades comuns entre eles, e entre eles e os professores. Podem, enfim, contribuir para que todos entendam que a luta pela igualdade de oportunidades e direitos inclui o respeito daquilo que talvez mais valorizem, os significados de suas músicas, jogos, festas e carnavais.
Segundo
Canclini, as
culturas populares conseguem ser, atualmente, prósperas e, ao mesmo tempo, híbridas
.
O desenvolvimento moderno não
teria suprimido as culturas populares. As culturas tradicionais desenvolveram-se e também transformaram-se por vários motivos. Podem
não ter sido inteiramente incorporadas à ação do Estado ou integraram-se parcialmente nos circuitos comerciais do artesanato, da festa, da música e do turismo. Por razões culturais e também econômicas, percebe-se a continuidade da produção cultural dos setores populares. O importante, então, diferentemente da perspectiva do folclorista, não seria buscar o que não muda. Mas por que muda, como muda e interage com a modernidade.
Em segundo lugar, Canclini defende que se deva levar em consideração que o popular não se concentra em objetos. O importante são as mudanças de significados, resultantes de interações. A arte popular, por exemplo, não seria uma coleção de objetos; nem a ideologia subalterna, um sistema de idéias, nem repertórios fixos de práticas. O popular não é monopólio dos populares. Não se pode mais buscar uma identidade de ouro da cultura popular no sentido de ter estado independente, sem contato de espécie alguma. Uma mesma pessoa pode participar de vários grupos e circuitos culturais. Nos fenômenos culturais populares, vistos como folclóricos ou tradicionais, intervém os ministérios, as fundações privadas, empresas de bebidas, rádios e televisão, agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, regionais, nacionais e transnacionais. Enfim, eles são multideterminados.
Em terceiro lugar, insiste na idéia de que o popular não é vivido pelos agentes sociais como uma manutenção melancólica das tradições. A transgressão da tradição é também, muitas vezes, vista com humor. Uma festa, por exemplo, pode não acabar com as hierarquias e desigualdades, mas promove uma relação mais livre e mais criativa com as tradições herdadas. A preservação pura das tradições não é sempre o melhor recurso popular para reproduzir-se e reelaborar sua situação. A integração econômica não necessariamente desagrega, como se pensava; pode haver melhoramento econômico e maior coesão da comunidade, pelo artesanato e festas. A continuidade (ou retomada) das tradições não inviabiliza, como se pensava antes entre modernizantes e tradicionalistas, a modernização. Esta é seletiva. Não há apenas subordinação do gosto popular às novas regras do mercado ou ao gosto dos consumidores urbanos e turistas. Os artesãos do México estudados por Canclini movem-se sem demasiados conflitos entre mais de um sistema cultural.
Com estes argumentos levantados pelo autor e com as perspectivas abertas pela historiografia, entendo que possam ser revistas as velhas oposições que norteavam os estudos de cultura popular, como por exemplo, entre o tradicional e o moderno, o popular e o erudito, o local e o estrangeiro. Segundo Canclini, é necessário desconstruir esta divisão entre o culto, o popular e a cultura de massa, e investigar o que denominou de hibridismo Em sua perspectiva, nada é puro, as culturas são híbridas.
Diante dessas alternativas, estariam resolvidos todos os problemas se substituirmos cultura popular por culturas híbridas? Não haveria mais lugar para o popular? Claro que sim, mas algumas explicações são necessárias.
Antes de tudo, é uma expressão que está disponível e muito presente em diferentes locais da sociedade: na produção acadêmica, nas secretarias de turismo, nas escolas, na mídia e entre os próprios agentes sociais identificados como populares. Por outro lado, a eliminação de sua utilização talvez requeira mais trabalho do que a sua defesa.
Há, certamente, uma posição clara, teórica e política - nada ingênua, diga-se de passagem - ao se defender a utilização da expressão cultura popular. O objetivo é colocar no centro da investigação as pessoas de baixa renda, geralmente identificadas e discriminadas socialmente pela cor da pele, pelo local de moradia, pelo modo de ser e vestir e pela pretensa criminalidade. No sentido político, seriam os desprovidos de poder. Se podem ser tratados genericamente por populares (sem a obrigação de suprimirmos as possíveis e grande diferenças entre eles, como as distinções de gênero, raça, idade, região e religião), isto deve-se ao fato de compartilharem certos aspectos, que devem ser demonstrados, tais como condições de vida, significados de festas e danças, gostos, e, de modo geral, assim serem considerados por autoridades policiais, professores, intelectuais e, muitas vezes, por eles próprios. Deve-se considerar que muitos organizadores de festas, membros de grupos folclóricos, músicos, artistas plásticos e artesãos auto-denominam-se “populares”.
Por outro lado, há um reconhecimento evidente de que estes sujeitos sociais pensam, agem, criam e transformam seu próprio mundo (valores, gostos, crenças), e tudo o que lhes é imposto, em função da herança cultural que receberam e de sua experiência histórica. Como agentes de sua própria história (e cultura), homens e mulheres das camadas pobres criam, partilham, apropriam-se e redefinem os significados de valores, hábitos, atitudes, músicas, danças e festas de qualquer origem nacional, regional ou social. Neste sentido, cultura popular não é apenas entendida como o conjunto de objetos ou práticas que são originárias ou criadas pelos setores populares.
Além de permitir o resgate ou a reconstrução da possível autonomia dessas
pessoas pensarem e agirem no mundo em que vivem (ou viveram), a expressão
cultura popular
mantém aberta, no meu modo de ver, a possibilidade de se pensar em um campo de lutas e conflitos sociais em torno das questões culturais,
já que, no mínimo,
existiriam culturas não populares,
mesmo que definidas, neste momento, em termos negativos.
Desta forma,
a expressão pode servir para se enfrentar a globalização, não no sentido de valorização das pretensas identidades nacionais, mas reforçando a perspectiva de existência de diferentes significados sociais
em torno das manifestações
culturais coletivas, como por exemplo, os carnavais e
festas de um modo geral
. Pode também estimular a criação
de identidades sociais/culturais e vínculos duradouros entre grupos de reconhecida expressão cultural ou religiosa, como, por exemplo, as
escolas de samba, os grupos que organizam folias de reis e
congadas.
Evidentemente, estas considerações não encerram todos os problemas e, pelo contrário, é exatamente nelas que se colocam os desafios. Como já afirmei em outra oportunidade, cultura popular não é um conceito passível de definição simples ou a priori. Cultura popular não é um conjunto fixo de práticas, objetos ou textos, nem um conceito definido aplicável a qualquer período histórico. Cultura popular não se conceitua, enfrenta-se. É algo que precisa sempre ser contextualizado e pensado a partir de alguma experiência social e cultural, seja no passado ou no presente; na documentação histórica ou na sala de aula. O conceito só emerge na busca do como as pessoas comuns, as camadas pobres ou os populares (ou pelo menos o que se considerou como tal) enfrentam (ou enfrentaram) as novas modernidades (nem sempre tão novas assim); de como criam (ou recriaram), vivem (ou viveram), denominam (ou denominaram), expressam (ou expressaram), conferem significados (ou conferiram) a seus valores, suas festas, religião e tradições, considerando sempre a relação complexa, dinâmica, criativa, conflituosa e, por isso mesmo, política mantida com os diferentes segmentos da sociedade: seus próprios pares, representantes do poder, reformadores, professores etc. Não se deve perder de vista a reflexão sobre as possibilidades destas manifestações encontrarem-se relacionadas com as lutas sociais e políticas mais amplas da sociedade a que pertencem (ou pertenceram).
Que a escola e a universidade criem boas oportunidades para realizarmos esta reflexão.
“Podemos tocar funk na festa junina?”
Uma oportunidade para se discutir identidade, tradição e cultura popular na escola
A pergunta – podemos tocar funk na festa junina? - já me foi feita várias vezes em encontros e discussões que participei sobre cultura popular. Em geral, costumo responder com novas perguntas: E a coca-cola, pode entrar? E o já tradicional “hot-dog”? Afinal quem estabeleceu a tradição? O que deve, ou não, entrar nas festas juninas, festas insubstituíveis no calendário escolar, estadual e nacional?
Antes de tentar buscar algum caminho de resposta a estas perguntas, é importante perceber que a que envolvia o funk expressava, além da preocupação por uma certa tradição junina, que não deveria mudar, o desconforto em relação a um novo gênero de música e dança que domina as novas gerações pobres da cidade, embora não apenas as pobres. É comum ouvirmos opiniões de desprezo e preconceito em relação ao funk, emitidas por certos setores cariocas, como intelectuais, que desqualificam as características musicais do funk, acusando-o também de uma importação empobrecida do co-irmão norte-americano; setores médios, que se incomodam com o barulho e com a pretensa violência dos bailes; e autoridades policiais, preocupadas com a presença do tráfico de drogas nestes locais.
Sem dúvida, as festas, sejam religiosas, sociais ou carnavalescas, ocupam um lugar especial na nossa sociedade e nas diversas formulações sobre a identidade dos brasileiros. Desde o século XIX é comum ouvirmos afirmações sobre o caráter festivo do povo brasileiro. Carnaval, samba e alegria seriam nossas marcas registradas. Estas afirmações, entretanto, devem ser vistas como uma versão (ou mesmo construção ideológica) sobre os encontros e intercâmbios múltiplos, que as festas proporcionam, entre os diferentes setores sociais, dando margem a acreditarmos que nos tornamos brasileiros nas comemorações carnavalescas.
É claro que esta imagem da festa ainda está longe de ser estendida e atribuída aos bailes funks, o que de alguma forma confirma o que vários historiadores já mostraram sobre as festas, desde o período colonial: poderiam ser locais de conflito, oportunidades para fugas e rebeliões de escravos e/ou caminhos de afirmação de identidades étnicas e/ou regionais de determinados grupos. As festas, reconhecidas como populares, ou não, em qualquer período, pertencem à história e, portanto, apesar das tentativas de seus organizadores ou das aparências formais de sua continuidade e unidade, transformaram-se, ganharam novos sentidos e possibilidades; podem ter servido para manter ou ameaçar a ordem reinante; podem ter sido perseguidas, reprimidas ou toleradas, dependendo da ocasião, como os batuques negros; podem ter recebido influências externas de outras regiões e países e, mesmo assim, serem consideradas como “coisas da terra”. As festas são, por todos estes possíveis sentidos, polissêmicas, apesar dos esforços de muitas autoridades e de muitos intelectuais de aprisioná-las na prática e nos seus significados.
Particularmente na escolas, as festas ocupam local de destaque.
Pode existir festa sem escola, mas escola sem festa é difícil encontrar. Este traço festivo das escolas foi muito estimulado a partir da década de 1950, quando organizaram-se as Comissões estaduais e federal de folclore. Na perspectiva dos folcloristas, como Renato Almeida, Amadeu Amaral e Cecília Meireles, os estudos folclóricos deveriam participar do processo educativo como um conteúdo curricular e como orientador da ação pedagógica socializadora dos professores. Eles precisavam ser vivenciados nas escolas, principalmente no ensino primário, como estratégia de valorização do que os folcloristas consideravam como
“nossas tradições nacionais”, uma espécie de “ensino cívico”, mas vinculado ao estímulo de um “sentimento comum” de pertencimento, como demonstrou Luís Rodolfo Vilhena
. Sentindo
e vivendo o que os folcloristas consideravam como
as tradições populares, base para a formação da identidade nacional brasileira, as crianças poderiam
enraizar-se na cultura de seu país, valorizando-o e respeitando-o . As festas e os folguedos,
por mobilizarem toda a comunidade escolar - especialmente as de São João,
uma das mais difundidas devoções no Brasil -
tornaram-se uma excelente oportunidade para a aplicação desta estratégia no ensino.
A história das festas juninas no Brasil ainda está para ser feita, mas alguns comentários podem ajudar no sentido de refletirmos sobre esta pretensa tradição. Decididamente, elas não possuem uma origem nacional, foram trazidas pelos portugueses e aqui, comemoradas desde os tempos coloniais, muito antes de se conceber uma nação brasileira. Reza a tradição cristã, nunca inteiramente livre de antigas práticas pagãs, no caso ligadas ao culto ao fogo, que as festas de São João são marcadas por fogos, fogueiras e mastros para recordar a lenda de Santa Isabel. Isabel teria acendido a fogueira ao lado do mastro para anunciar a Nossa Senhora o nascimento de São João Batista.
Os melhores e mais antigos relatos que consegui encontrar sobre as festas de São João no Brasil – no Rio de Janeiro e Sergipe – foram os de Melo Moraes Filho, escritos no final do século XIX. Descrevendo as festas que aconteciam em meados do século XIX, partes integrantes do chamado ciclo junino, que incluíam Santo Antônio e São Pedro, o autor destaca a grande animação da zona rural e das nas maiores cidades. No Rio de Janeiro, por exemplo,
“pretos ao ganho” eram vistos com “cestos carregados de foguetes e fogos de todo gênero, de canas e batatas-doces, de cará e milhos verdes, de galinhas, ovos e perus; de tudo, enfim, que dizia respeito à folia da noite e aos lautos jantares e ceias que então se davam”
.
Não podiam faltar os preparativos para as fogueiras, para todo o tipo de fogos – rodinhas, pistolas, foguetes, busca-pés, chuveiros, rojões, cartas de bichas, girassóis, bombas etc - para as mesas com os livros de sortes e para as danças com violões. A comilança ficava por conta das rezes mortas na véspera, do milho verde, da canjica, das canas, cocos, carás, inhames, melados e dos famosos bolos de São João. Muita coisa, como os carás e batatas, era assada na fogueira, onde os mais afoitos divertiam-se tentando pulá-la. As superstições eram um dos pontos altos da festa, como por exemplo a noção de que as brasas da fogueira eram bentas; de que o banho nos primeiros raios de sol do dia de São João traziam propriedades miraculosas e de que as moças solteiras podiam saber com quem iriam casar-se, depois de fazerem um bochecho com a água de um copo que havia passado sobre a fogueira em louvor a São João.
Este era um tempo, conta Moraes Filho, em que se acreditava no perigo de São João descer à terra para brincar no seu dia, pois tudo pegaria fogo. Era uma época em que se podia entender melhor a velha quadrinha cantada ao redor da fogueira e conhecida até hoje:
- Acorda João!
Aos que muitos respondiam, cantando:
São João está dormindo,
Não acorda não!
Dê-lhe cravos e rosas
Apesar das aparências, entretanto, as festas do mês de junho, nunca foram tão pacíficas assim. Um dos fogos mais inconvenientes, pelas batalhas que provocavam, parecem ter sido os
“busca-pés”, que perseguiam, pela deslocação do ar, quem procurava fugir deles. Também não eram incomuns, no Rio de Janeiro do século XIX, reclamações nos jornais ou em relatos de viajantes sobre os perigos dos fogos para os habitantes da cidade. Há notícias de que se jogava entrudo com foguetes, ferindo-se os transeuntes e causando-se incêndios irreparáveis, principalmente nas festas que aconteciam nos cortiços
.
Diversões de setores populares, sem dúvida, embora não apenas, as festas juninas com suas fogueiras e fogos foram aos poucos tornando-se alvo de restrições e controle por parte das autoridades municipais, que não se cansavam de tentar restringir as autorizações de fogos, permitidos somente em determinadas festas, organizadas por instituições responsáveis, ou em locais específicos, afastados do centro comercial da cidade. Em um edital de 1856, a Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro proibia o lançamento de fogos, juntamente com as fogueiras e balões, nas ruas e praças públicas, ou das janelas e portas que “para elas deitarem”. Um certo projeto de civilização dos costumes, festas e diversões iria se impor ao longo da segunda metade do século XIX, especialmente na capital imperial, cerceando certas atividades tidas como inconvenientes ou afastando-as do centro urbano, como os fogos, as fogueiras, os ajuntamentos, os batuques, as procissões, as danças, as grandes barracas de divertimentos e os pedintes de esmolas para as irmandades. As festas juninas na cidade do Rio de Janeiro devem ter sofrido este mesmo cerceamento, mas, sem dúvida, permaneceram, talvez com mais vigor em seus subúrbios e periferia, e transformaram-se. Novas formas de diversão e sociabilidade ganhariam a cidade, como os clubes dançantes, as sociedades carnavalescas, as casas de jogos e os teatros.
O que temos hoje em comum com estas festas do século XIX? Além da fogueira, fogos controlados e algumas comidas “típicas”? Para onde foram as “galinhas, os ovos e perus”, presentes nas ceias descritas por Mello Moraes Filho? E as superstições de São João? Onde e quando passaram a fazer parte das festas as quadrilhas, as bandeirinhas, os trajes e as músicas caipiras, o casamento na roça e as barraquinhas de comidas e jogos inocentes (de argolinhas, tiro ao alvo, corridas de carrinhos e leilões de prendas beneficientes)? Infelizmente estas perguntas ficarão sem resposta, mas podem nos ajudar a identificar que certas tradições não são tão originais e autênticas assim. Pelo menos não existiam no século XIX. Podemos arriscar até, como hipóteses para uma futura pesquisa, que certas marcas das festas juninas atuais – o traje e a música caipiras, o casamento na roça e as barraquinhas, por exemplo - teriam passado a fazer parte da festa entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, quando as maiores cidades, como a capital da República e São Paulo, passaram por inúmeras transformações modernizantes, afastando-se do mundo rural. Exatamente nesta época ganham expressão na literatura e nos textos teatrais as figuras do caipira ou matuto, do sertanejo ou caboclo, representando o interior e o atraso frente ao pretenso progresso das cidades. As festas juninas teriam se transformado em festas caipiras.
Até mesmo as festas do mundo rural teriam passado por
transformações.
O conhecido “casamento na roça”, segundo
Mariza Lira, em trabalho de 1956, em pleno auge do movimento folclórico brasileiro, teria sido introduzido “recentemente”, segundo a autora, nas
zonas rurais próximas ao Rio de Janeiro. Na sua opinião,
a “macaqueação do casamento caipira é tudo o quanto pode haver de mais inexpressivo nessas festas de encanto poético e místico”
. Se Lira havia presenciado casamentos e batizados de verdade nas antigas festas de São João, chegara o tempo dos casamentos figurados. Para a autora, na cidade do Rio de Janeiro de sua época, São João não era mais festejado com todo o esplendor de antigamente. Havia chegado a época dos “ridículos bailes caipiras”, em sua avaliação. Outro grande folclorista, Edison Carneiro, avaliou no início da década de 1970,
que nas cidades grandes havia um falseamento das festas juninas, quando a população fantasiava-se, como no carnaval, de matutos, sertanejos e caipiras
.
Voltando às festas juninas de hoje, entendo que os seus organizadores possuem muitos problemas. Que tradição devem manter? Ou que características das festas de São João precisam preservar para que essas festas continuem simbolizando uma pretensa identidade nacional (ou regional)? As do tempo de Mello Moraes? Do tempo de Mariza Lira ou as do tempo de nossa infância (que provavelmente devem ser outras)?
Tradições são assim mesmo,
freqüentemente inventadas e reinventadas, como mostraram Hobsbawn e Ranger
, pois visam consolidar determinadas continuidades em relação ao passado, frente às constantes transformações do mundo moderno.
Cabe aos professores ficarem atentos a elas, tentando conhecer a sua história,
mesmo daquelas que dão a impressão de serem mais
genuínas ou mais autênticas que outras,
como é o caso das tradições das festas de São João. Posturas como as de Mariza Lira, no passado, de condenação às mudanças – desqualificando-as - por ameaçarem uma certa autenticidade e espontaneidade, decorrentes de sua pretensa origem popular,
precisam ser repensadas. As festas pertencem à História e às lutas dos homens e mulheres de seu próprio tempo. Discutir os vários sentidos e possibilidades das festas, no passado e no presente; ou, ainda melhor,
procurar identificar os sujeitos sociais que costumam estabelecer e divulgar certos
significados das festas, recuperando, muitas vezes, os conflitos que se constroem em torno destas definições,
são estratégias promissoras
para começarmos a trabalhar com as festas nas escolas, e na História.
Particularmente, se nossos jovens querem tocar funk nas festas juninas, não vejo como respondermos negativamente, baseados numa pretensa tradição destas festas. Talvez seja mais importante nos perguntamos sobre os significados das transformações que eles querem levar às ditas tradicionais populares festas juninas. Deixemos o funk ser tocado nestas festas, da mesma forma que um dia as quadrilhas, a música e o traje caipiras, as barraquinhas de comidas/brincadeiras e os casamentos na roça ali conseguiram encontrar espaço e fizeram sentido para as pessoas que compareciam e se divertiam nas muito antigas festas de São João, apesar dos opositores e críticos como Mariza Lira. Entre tradições e continuidades, as festas juninas, como não poderiam deixar de ser, estão sempre transformando.
CANCLINI, Nestor. Culturas Híbridas, São Paulo, Edusp, 1997.
Ver CAVALCANTE, M. L.V. e VILHENA, L.Rodolfo, “Traçando fronteiras: Florestan Fernandes e a marginalização do folclore. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas, vol. 3, n. 5, 1990.
BURKE, Peter, Variedades em História Cultural. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.
Ver, por exemplo, os trabalhos de João José Reis, Jorge Ferreira, Marina de Mello e Sousa, Maria Clementina Pereira Cunha, Rachel Soihet, Ronaldo Vainfas, Sidney Chalhoub, dentre outros.
CANCLINI, Nestor, “A Encenação do popular”. In: Culturas Híbridas.São Paulo, Edusp, 1997.